domingo, agosto 29, 2004

Surf's Up

Ah! O ar fresco da manhã de Domingo… Que, infelizmente, em breve será trocado pelo ar condicionado de uma loja pequena, atafulhada de livros poeirentos e clientes mentalmente empoeirados.
O primeiro artista do dia é um senhor estrangeiro, mas com algum domínio do vernáculo luso. Queria um livro relativo à alimentação e tipo sanguíneo. Este livro tem sido um sucesso, encontra-se sempre esgotado. Bom, encontrei um livro sobre o mesmo tema, e entreguei ao senhor, que o folheou demoradamente. Lia, virava o livro para ler os quadros, voltava atrás, como se tivesse a memorizar o texto. Após a consulta, pousa o livro e diz-me: “Muito interessante, agora só me falta descobrir o meu tipo de sangue!” e ri-se. Antes sequer de eu poder dizer qualquer coisa, rematou: “Por acaso não posso tirar sangue aqui não? (e mal termina a frase estica o braço esquerdo, com a mão direita faz o sinal da seringa junto do braço e solta o som CLOCK. Duas vezes). E olha para mim, à espera duma resposta. CLOCK? Isso nem com medicamentos lá vai, é melhor tratamento de choque.
Domingo, sinónimo de eventos estranhos. Uma senhora de meia-idade, aparentemente da alta sociedade, aproxima-se do balcão. Pergunta se vendo envelopes. À minha resposta negativa, diz: “E sabe onde posso comprar aqui dentro? É que eu não sou daqui…”. Pois, não é de espantar, eu conheço poucas pessoas que tenham nascido num centro comercial, ou que tenham nele a sua residência. Não está sozinha, estimada cliente, não desespere. Falando em envelopes, certa vez, um cliente (não sei porque lhes chamo clientes, quando eles apenas vêm à loja para pedir informações, nada mais) aproxima-se do balcão e diz: “Desculpe, têm aqui um marco do correio? Posso deixar esta carta?” Sim, deixe ali entre a máquina de selos e a máquina de preservativos. Por vezes também pedem para que coloquemos os livros dentro de envelopes, e ficam chocadíssimos porque não temos envelopes para o efeito. Às vezes, pedem para levar o papel e embrulham em casa. Mas, segundo me contaram, até já chegaram a pedir o papel e um rolo de fita-cola para embrulhar em casa. E claro, há sempre uma desilusão relativamente ao papel. Muitas vezes até pedem para virá-lo ao contrário. Obviamente que não resulta.
Livros para crianças. Sempre um problema. “Olhe, faz favor, tem livros para crianças de 1 ano e meio?” ou então “o meu sobrinho tem 13 anos, tem qualquer coisa para ele?”. Muitas vezes, ainda tento estabelecer uma linha de comunicação com o cliente, e tento saber os interesses da criança, se gosta ou não de ler. A resposta é invariavelmente a mesma: “Não sei nada”. Já saber que é seu sobrinho é uma sorte, há alguns que demonstram algumas dúvidas. E depois claro, é inacreditável como é que este país está na cauda da Europa quando 99% das crianças são sobredotadas. Senão vejamos: cada vez que proponho um livro para uma criança, recebo muitas e muitas vezes a resposta: “Ah não, isso não isso é muito atrasado para ele.” Mostro por exemplo o livro Uma Aventura para uma criança de 8 anos, e a resposta da mãe é: “Isso é para bebés comparado com o que ele lê”. Ou um daqueles livros para iniciar a leitura e ensinar a contar a uma criança de 2 anos: “Não, isso não, porque a minha filha já lê perfeitamente.” Se fosse a si propunha-a para oradora. O futuro do país está assegurado. Há sempre também aqueles clientes que não percebem nada, mas mesmo nada, de livros. Nem de crianças. O que torna o trabalho bastante mais simples e divertido. E depois nunca gostam de nada: “Harry Potter? Mas alguma criança gosta disto? Isto vende? Tenho dúvidas.” E depois temos o caso da senhora, a quem eu recomendo vivamente os livros de Uma Aventura, que pega nos livro, olha para a lombada e diz: “Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada, Caminho”. Pega no outro, diz: “Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada, Caminho”. Ao terceiro, diz exactamente a mesma coisa, acrescentando bastante espantada: “Porque é que eles têm todos o mesmo nome? Chama-se todos Caminho?”. Expliquei-lhe que era apenas o nome da editora. O nome do livro está mais abaixo. Não pareceu esclarecida, tenho que melhorar impreterivelmente a minha capacidade de persuasão.
Mal cheguei hoje para iniciar mais um dia de trabalho duro, deparei-me com um cenário à muito desejado: a venda da grande Enciclopédia do Surf. . E porquê a minha aversão a esse livro? Tudo começou quando o livro chegou, e não havia qualquer interesse nele, e uma rapariga com o seu namorado quis reservá-lo. Perguntou-me quanto tempo guardávamos o livro, mas disse logo imediato que vinha de certeza amanhã. E frisou isso várias vezes durante o processo de reserva. E que vinha, e de certeza, e que se não viesse, mas vinha de certeza. Nunca mais veio. O livro, entretanto, foi para a montra. E aí piorou tudo. Diariamente, várias vezes, vinha alguém pedir para ver o livro do Surf. E lá ia eu, para a montra, todo encolhido, espalmado contra o vidro, buscar o livro. À terceira vez desisti e pus o livro na ponta da montra, já estava a ver que ia continuar o martírio. E as pessoas, o que dizer? Viam o livro, folheavam, diziam obrigado e punham-no em cima do balcão. Constantemente. Não percebo o que é que as pessoas esperavam do livro, se esperam encontrar algum segredo mágico ou alguma fórmula especial. Mas não, é a desilusão total. Um cliente chegou mesmo a pousar o livro no balcão e dizer: “Ah, obrigado, mas é só uma enciclopédia”. Jura. Pelo título não chegava lá. É essa a decepção das pessoas. Lêem Enciclopédia do Surf e pensam em emoções fortes e raparigas semi-nuas usando bikinis reveladores. Mas não. É apenas uma Enciclopédia. Com entradas e uma outra foto. Uma enfadonha Enciclopédia. Até o Gervásio, o macaco da reciclagem, conseguiria perceber que se o livro se chama ENCICLOPÉDIA é porque é uma enciclopédia.
Os nossos clientes não.

1 comentário:

Anónimo disse...

E de repente entra um cliente já com os seus 68 anos e pergunta:
Tem aquela revista....mmmmmmmmm(pensativo)mmmmmmmm A Maria?....

e tu só não te ris porque é feio
mas no teu interior ris-te à gargalhada.

Macaquinho