quarta-feira, agosto 18, 2004

Equívocos

Se porventura existe algum dogma do comerciante, seja ele de que ramo for, é que o cliente tem sempre razão. Quando lidamos com clientes portugueses, aí o termo razão é insignificante para exprimir o que os clientes portugueses possuem. O português não tem razão, o português é o supremo detentor de toda e qualquer verdade presente no nosso universo. E não há nada a fazer ou dizer... Se um cliente português disser que Os Maias foram escritos por um eremita neozelandês, com apenas um braço, que se alimentava de algas é porque é a mais pura verdade, nem vale a pena tentar argumentar. O português tem sempre razão. Apresentarei em seguida alguns casos para sustentar a minha tese.
Certa manhã, um senhor com aspecto rural, parecendo ter saído de uma qualquer propaganda do estado novo, comparece na loja. A minha primeira impressão não estava errada: era mesmo um agricultor. E mais, queria livros sobre agricultura. Surpreendente. De imediato guiei o senhor pela nossa vasta loja até à zona da agricultura. Ao chegarmos o senhor começa a olhar surpreso à sua volta, como se procurasse algo. Então pergunta: "Mas onde é que estão as escadas?". Esta é daquelas perguntas em que nós, incrédulos com o que acabámos de ouvir, não sabemos como reagir. Educadamente pedi ao senhor que repetisse. Ele voltou a perguntar pelas escadas, acrescentando: "Mas... A agricultura não é lá em cima? Eu costumo buscar livros de agricultura ao cimo das escadas, no corredor à direita". Está bem, este deve ser vinicultor – pensei eu, tal a minha incredulidade perante o seu desvairado discurso. Expliquei ao senhor que não existem e nunca existiram quaisquer escadas nesta loja, que deveria estar a confundir com outro estabelecimento. "Desculpe" responde o senhor, "eu aposto que venho a esta loja há muitos mais anos, e havia ali uma escada, subia-se, depois no corredor à direita, e aí estava a agricultura! Tenho a certeza!" Tornou-se claro que era um caso perdido, e como tal seria melhor deixá-lo ir sem qualquer tipo de alarido. Não havia o livro que queria (nem sequer a secção que procurava, o que pelos seus rigorosos cálculos deveria ser algures dentro de uma loja de roupa) e por isso seguiu o seu caminho, com a convicção de que aquela loja tinha uma escada. E que ninguém tente provar o contrário.
Neste caso, poderia estar horas a tentar convencer o agricultor de que nunca tinham existido escadas. Mas, não tinha qualquer forma de o provar. Isto iria tornar a minha senda inglória, pois o português, como disse anteriormente, não se demove com facilidade. Felizmente há casos em que eu posso provar que estou certo. Agora se o cliente aceita ou não, é outra história.
É pratica comum os clientes aproximarem-se do balcão, assim como quem não quer a coisa, e apresentar um papel, sempre muito mal tratado, com um nome de um livro. Claro que não me espantaria que o papel contivesse outros pedidos. Basta dizer que recentemente umas senhoras perguntaram a uma colega se vendíamos malas, ou era mesmo só livros... Uma cliente mostra-me um desses característicos papéis, desembrulha-o. Nele lia-se o seguinte: Palavras Que Nunca Te Direi. A cliente diz: "Queria este livro (se faz favor não, porque isso é descer ao nosso nível, e olhem que nós somos a ralé). É de uma autora portuguesa." Algo não batia certo. Palavras Que Nunca Te Direi é mais um mega-sucesso lamechas do rei da pieguice Nicholas Sparks, e não de uma autora Portuguesa. Quando confrontada com esse facto, a resposta foi a seguinte: "Desculpe, mas estou lhe a dizer que é de uma autora portuguesa, tenho a certeza!". Perguntei à cliente se estava segura do título do livro, poderia ter visto ou percebido mal. Ficou ofendidíssima: "Ouça, o título é este, a autora é portuguesa, tem o livro ou não?". Fui buscar o livro do Sparks para a senhora consultar e ver-se era mesmo esse que ela queria. Pega no livro, vê o título, vê o autor. Não fica satisfeita. Reclama novamente, afirmando que não foi aquilo que pediu. Pedi, cuidadosamente, à senhora que vislumbrasse o resultado da pesquisa efectuada no computador, para verificar que com esse título só existia um livro, e era deste autor. Obviamente que a resposta da senhora foi: "Isso deve estar enganado, deve estar estragado!" Mais um caso perdido pensei eu. Como última tentativa, tentei variar um bocado a pesquisa, e eis que encontro isto: O Que Nunca Te Disse. Saí de trás do balcão e fui buscar o livro ao local onde habitualmente jaz, e entreguei-o em mãos à senhora. Ao olhar para a capa exclama: "Ah! É isto mesmo! Eu não lhe disse que era uma autora portuguesa?". Chamei respeitosamente a atenção da senhora, e expliquei-lhe que o título não era o mesmo. Quando estava convencido que a cliente iria dar a mão à palmatória, eis o que ela diz: "Pois, isto é sempre a mesma coisa! O Jornal estava enganado, é incrível, que falta de profissionalismo... Enfim...".
Mas há muito mais casos. Temos clientes que afirmam pela alma dos seus antepassados que viram determinado livro nas nossas prateleiras quando ou não o vendemos, devido a não trabalharmos com essa editora, ou nunca o tivemos na loja. Outros asseguram que as secções foram alteradas. Há teimosias para todos os gostos e feitios. Outro caso estranho, e até frequente, é as pessoas dizerem que a Paula Bobone tem um livro intitulado Etiqueta e Boas Maneiras. Sempre que explico que no nosso sistema o mais remotamente parecido que aparece é Socialmente Correcto, os clientes ficam sempre furiosos. Não percebo porquê, mas eles insistem. E quanto mais percebem que estão errados, mais teimam na sua ideia inicial. Muitas vezes chegam a ser indelicados, roçando mesmo a má educação. O que não é nada Socialmente Correcto.

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