quarta-feira, agosto 25, 2004

A loucura

A loucura voltou. Não, não estou a falar do regresso dos Ídolos ou mesmo da Quinta Dos Famosos. O livreiro está de volta depois de um mais que merecido interregno na sua actividade. Por falar em Quinta dos Famosos adivinha-se mais um sucesso da TVI. Penso que o público está ansioso de ver uma vaca ordenhar a Elsa Raposo ou uma ovelha tosquiar José Castelo Branco. Será que sairão crónicas literárias como as vistas após os Big Brother? A ver vamos, mas teme-se o pior. Sinto me tentado a proibir o ensino da leitura aos meus descendentes para não haver o risco de lerem tais livros. Voltando ao mundo literário que é bastante mais interessante, uma aparente calma apoderou-se da loja. Não sei se será o fim de Agosto, o início da época futebolística de alguns clubes (o Glorioso ainda não começou, mas tenho tido uns pesadelos estranhos com jogos do SLB, mas quando começar tenho fé que vai ser bom) ou a continuação do bom tempo, apesar dos avisos em contrário. Mas, para bem da humanidade, há sempre aqueles que lutam contra a corrente, que teimam em marcar a diferença. E é esses, que vão da lei da morte se libertando, que vou falar em seguida.
Porque é que as pessoas teimam em contrariar o que eu digo? Em não confiar na minha palavra? Terei assim um ar de mentiroso tão grande? Se eu digo que não temos o livro, é porque não temos. Ponto final. Há necessidade de dizer: “Ah, então deixe estar que eu vou procurar.”? Dará assim tanto prazer contrariar-me? Qual será a parte de “Não temos esse livro, de momento está esgotado” que as pessoas não entendem? Bem sei que eu estou a juntar mais que duas letras, que não falo meramente com monossílabos, o que para uma boa fatia da população revela-se delicado, mas, que diabo, pensei que fosse mais fácil compreender-me! Muitas vezes, os clientes olham para mim como se tivessem a ouvir um Servo-Croata a falar. Parece que apanham uma ou duas palavras que lhes soa familiar, mas o resto parece resumir-se apenas a um zumbido. Ou outros, enquanto discurso, parecem estar a pensar noutros assuntos. Enquanto olha para mim e acena a cabeça enquanto falo, imagino o cliente a pensar: “hmmmmm. Cores… luz… Livro. Li----vro…”.
Depois temos a intima relação cartão de crédito – dono. O cartão de crédito, como bom animal de estimação, está sempre à mão para resolver os problemas. E o seu dono, implacavelmente, não tem qualquer pejo em passá-lo para a mão do primeiro que lhe oferecer algo. No entanto existem donos possessivos, donos que não suportam ver o seu cartãozinho nas mãos de qualquer um. Quando passo o cartão para finalizar a venda, geralmente coloco ao lado da máquina, para depois entregá-lo juntamente com os talões. É uma prática comum. Mas tentem explicar isso a certas pessoas. Mas passo o cartão e coloco-o no seu sítio de repouso habitual, solta-se logo um “DÊ ME O CARTÃO!”, ou “PODIA ME DAR O MEU CARTÃO?”. Os tons irados chegam por vezes a assustar-me. Outros, esticam-se rapidamente e resgatam o cartão das garras da máquina, apressando-se a guardá-lo de novo na carteira. Não vá a máquina fazer mal ao cartão. Também temos casos em que os clientes atiram o cartão para cima da mesa, como quem chega à tasca do Ti António e quer um tinto do garrafão e atira para cima do balcão uma nota de 5€ cheia de terra da horta. É uma tremenda demonstração de poder e classe o acto de atirar com enorme desprezo o cartão para cima da mesa, apesar de eu estender a mão para o acolher. Estou à espera ansiosamente que algum cliente mais atencioso o atire para o chão para eu apanhar. Por vezes, os cartões não passam. É normal. Enquanto alguns clientes ficam amedrontados, como se tivesses algo a esconder ou apenas fruto de alguma vergonha, outros ficam furiosos: “NÃO PASSA? MAIS AINDA AGORA PASSOU NA OUTRA LOJA! ISSO DEVE ESTAR ESTRAGADO!”. E há sempre insinuações de que nós estamos a fazer algo errado, como não podia deixar de ser. Tal como nas pesquisas, há sempre a desconfiança relativamente aos nossos procedimentos. Das duas uma, ou não estamos a fazer bem ou não queremos fazer bem.
Uma situação bem elucidativa do que nós passamos aconteceu aqui, segunda-feira. Uma cliente chega-se ao balcão. Eu e o meu colega estávamos cada um no seu lado, junto aos computadores, ainda procurando livros para outros clientes. E a quem é que ela se dirige? A mim. Às vezes penso que existe um sinal da porta a dizer: EM CASO DE DÙVIDA OU NECESSIDADE RIDICULA E TREMENDAMENTE TRABALHOSA, DIRIJA-SE AO SENHOR DA ESQUERDA. Que sou eu. É (quase) sempre comigo. Agora que voltou das férias o nosso colega tenho que admitir que as coisas estão bastante mais equilibradas. Personagem para mim, personagem para ele. Parece me justo. Mas esta, esta calhou-me e de que maneira. Vinha acompanhada de um tipo de empecilho. Outra mulher, que não falava e não se mexia muito, dando poucos sinais de vida. Vim a saber que era a sua assistente. Queria livros de Psiquiatria. Qualquer um. Sobre qualquer coisa. Tipo: “Quero livros de psiquiatria. Qualquer um. Regressão? Tem? O Psico-Drama Menstrual Nas Raparigas Vietnamitas? Tem? E a Esquizofrenia Paranóico-Induzida? Não tem? Que é que tem?”. Eu lá expliquei à senhora onde se encontravam os livros que queria, respondendo ela um vigoroso “ENTÃO MOSTRE ME!”. Levei-a ao local onde podemos encontrar normalmente os livros da especialidade que procurar. Pelo caminho pediu me desculpa de falar pouco e ser pouco perceptível, pois segundo ela “Sai agora do dentistas, não consigo falar, estou toda anestesiada”. Isto para quem falou durante 5 minutos, não está nada mal. A anestesia, vim a comprovar durante todo o encontro, afectou não a boca mas sim o cérebro. Ia lhe mostrando livros, tarefa que se veio a provar devera difícil visto não haver uma zona isolada para a Psiquiatria. Pensei lhe dizer uma piada “Pois, nós temos a psiquiatria misturada com o resto. Gostamos de misturar os malucos com o resto”. Acho que ela não iria achar piada, eu sou muito rebuscado. E cada livro que lhe apresentava, ela dizia “Não, não me interessa”. Ou “Não. Acha mesmo?”. Ou ainda: “Não, nada a ver, nadinha mesmo.”. Que desafio, pensei eu. De vez em quando encontrava algo que lhe pudesse encontrar. Folheava rapidamente e dizia: “Não, este é história, quero coisas científicas, não romances, não histórias”. Há que frisar que os livros que a senhora via eram relatos médicos de doenças e patologias. Romances, portanto. Até que, passados uns largos minutos, talvez resultado de um aparente recuo na anestesia, começou a encontrar livros que lhe interessavam. E começou a depositá-los em mim. Sim, porque o meu cartão de identificação não diz Livreiro, mas sim carrinho de compras. Metam-me 1€ na boca e lá vou eu. E tirava da prateleira e punha nas minhas mãos. Quando já estava perto da altura do meu queixo, disse: “Não se preocupe, a minha assistente já carrega isso.” Fez um gesto como se estalasse os dedos, mas não saiu nenhum som. Novamente a anestesia. Chamou a assistente, como se estivesse a chamar um escravo, e lá veio ela. Depois, ao ver o interesse da senhora, comecei a sugerir livros e a perguntar outras áreas de interesse. Ela não se continha. Tudo o que lhe mostrava levava. De repente parou, perguntando-me se podia guardar os livros, porque não usava cartões Multibanco, e achava que não tinha trazido dinheiro suficiente. Aceitei, reticente… Enquanto ia acumulando livros, ia discursando: “Sabe, é que eu compro tudo de psiquiatria. E não só. Gasto imenso dinheiro em livros. Até compro livros repetidos à vezes. Gasto tanto dinheiro.” E repetia incessantemente isto. Por vezes divagava sobre o seu interessa na psiquiatria, pelos vistos uma autodidacta. E o seu objecto de estudo podia ser ela mesma. É uma vantagem. Quando chegou a altura de pagar, voltou a frisar o facto de não possuir cartões, e que provavelmente não tinha dinheiro. Depois de lhe indicar o valor, tirou da carteira dois maços de notas de 20€ e um de 50€. E não tinha dinheiro. Ficou agradavelmente surpreendida com o valor final, pois, segundo ela, “PENSAVA QUE IA SER MAIS CARO QUE O DENTISTA!”. E a anestesia, pelos vistos, era da boa. E barata. A assistente esperava muda atrás dela. Depois de pagar, solicitou a factura, com o propósito de: “NÃO ME ESQUECER DO QUE COMPRO, PORQUE JÁ COMPREI MUITAS VEZES LIVROS REPETIDOS!!!”. Pensámos que seria o fim da odisseia, mas não. Pediu para pesquisarmos mais temas. E em cada tema, centenas de livros. E queria tudo. Conhecia poucos autores. Mas queria saber todos os que tínhamos e o que tratavam. Mal lhe dizia um tema, perguntava: “TEM? DO QUE É QUE TRATA?” Ainda nem tinha sequer acabado de clicar sobre o título do livro, já ela disparava rapidamente a questão. Quando ficou satisfeita, lá foi, não sem antes levar as listas dos livros impressas, para continuar a sua demanda.
Quando a anestesia passar e vir quanto gastou em livros talvez vá precisar mesmo de um psiquiatra.

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