quarta-feira, outubro 27, 2004

Quero um post só para mim!

Atenção. Preparem-se. Não, não é o Bush que vem aí roubar o vosso petróleo. Pelo menos ainda não. Digo eu. É algo de muito maior e mais importante. Ajoelhem-se perante a maior personagem que alguma vez colocou o pé no nosso estabelecimento.
Faltavam apenas 10 minutos para as 23 horas da noite. Já conseguia avistar ao longe a hora de me ir embora, e corria para ela com todas as forças. O dinheiro contado, a caixa pronta a fechar, em 5 minutos estaríamos longe dali. Mas, eis que aparece algo que vai arruinar todos os meus grandiosos planos de fuga. Nem sei bem o que lhe chamar, é algo maior do que tudo o que já vi naquela loja. Ainda hoje à tarde pensei estar a alucinar. Olho para a secção de literatura estrangeira e vejo um gigante louro a puxar a cadeira para se sentar lá. No mínimo estranho. Depois, ao olhar melhor, vejo um gigante louro que parece me ser o Peter Schmeichel, famoso guardião do Manchester United e que teve uma passagem pelo Sporting. Aí pensei: Preciso de descansar, ando a trabalhar e a ver futebol a mais. Mas não, era mesmo ele. Bom, pensei que aqui já tinha ganho o dia, mas nada me podia preparar para o que veio ao fim da noite.
A senhora chega ao balcão com um livro na mão, já meio cambaleante. Pergunta por livros de acupunctura e o sempre profissional Greenpeace acompanha-a até à secção correspondente. Começam numa conversa animada sobre idades e idades dos pais. E ali fico eu, a contar a caixa, sossegado da vida. Quando eles voltam começa o espectáculo. Primeiro, começa a atacar violentamente e, há que dizer com toda a frontalidade que a cliente merece, com muita piada, chegando mesmo a imitar perfeitamente expressões corporais levando o público (eu e o Greenpeace) ao delírio. Os ataques verbais à colega eram violentos e incisivos, e toda e qualquer tentativa de defesa da nossa parte tornava-se imediatamente infrutífera. Desde focar o seu lado intriguista, a falar do que ela fez noutra loja, das confusões todas, da falta de sexo, e de haver probabilidade de ela se fazer a todos, ela estava em toda a parte. Não falhava uma, tremendamente implacável. Aí, começa a falar da sua vinda a este centro comercial. Dizia ela: “Olhem, eu, eu andava aí a passear e só dizia: mas esta merda cheira a frango, este centro comercial cheira a PODRE. Olhem, fui a ver era eu, é o frango que trago dentro deste saco!” Tenho que salientar o facto de que metade das coisas que dizia eram acompanhadas de um enrolar teimoso da língua e uma diminuição do volume e intensidade da voz à medida que ia falando. Eu lá ia contando o dinheiro e ela ia dizendo: “O seu colega está a contar o dinheiro. Está com pressa. Deve estar a pensar: esta gaja vem me para aqui falar e nunca mais se vai embora. E imagino. Eu vou me embora e vocês desatam a dizer: Já me viram aquela louca? Sim, porque eu trabalho no Egas Moniz, já estou louca.” Mais uma declaração acompanhada de um riso impossível de conter. Depois falou do seu hospital, como o governo quer que os hospitais dêem dinheiro e não prejuízo. Mostrou-se totalmente contra: “Eu disse ao meu chefe: olhe, se isso é verdade então eu empurro-me da janela. Os colegas perguntaram-se estava louca, disse que sim.” Por diversas vezes demonstrou o seu desagrado com a sociedade em que vivemos: “Esta vida está uma merda. Este país, está uma merda. Vocês jovens e formados e estão aqui. Acham justo? Eu não!” Nós assentimos, ela continuou. “E há muitos jovens perdidos, e o casamento. Olhem eu casei me com 21 anos. Com um homem 20 anos mais velho!” Nós sorrimos, dissemos que não havia problema nisso. Ela respondeu: “Há pois, ele morreu à 3 meses, teve um enfarte.” Silêncio… Ela continuou, como se não fosse nada. “A diferença não se notava. Eu ia com ele e com as minhas filhas, ainda nos carrinhos de bebé para as discotecas. Se calhar é por isso que ela odeia discotecas. Por falar nisso, já viram aquelas velhas de saltos e mini-saias nas discotecas? A engatar homens mais novos, miúdos! Depois Caiem e partem-se todas mais as artroses e o carago.” Não parava: “Já se faz tarde e vocês querem fechar isto, dê-me lá a Farah Diba e um livro de Ioga e Acupunctura. Sabem, os americanos têm pistolas de acupunctura. E fazem tudo sozinhos. Self made man. Não posso quando os homens de 30, 40 anos andam para aí a chamarem MAN uns aos outros, parecem uns putos. Mas os americanos é que sabem, fazem tudo sozinhos. Aqui se somos mais inteligentes que os outros somos fornicados pela sociedade!”. Nos íamos sempre dizendo que sim, na ânsia que a senhora se fosse embora. Mas não. “Você tem cara de sono” Dizia ela para o Greenpeace. “Eu estou aqui a dizer parvoíces e nem se ri. Você tem um olhar meigo”. Eu acrescentei, disse que ele era um bom profissional, ao que ela retorquiu: “Não, ele tem um olhar meigo, você tem um olhar sério!”. Sou o livreiro, não há mais nada para dizer. Consigo trouxe também um livro de Tai Chi. Olhou demoradamente para a capa e disse: “Olha a figura de parva desta! Parece uma anormal de braços levantados. Se isto dá felicidade vou ali já venho. Olhem, tenho um amigo oftalmologista, que queria reformar-se, então fingiu que era louco e chegou um paciente e disse lhe ah dou.. eu.. .sei.. não.. Uma nuvem e… sint… olho… mal… sabe?” Isto foi exactamente o que ela disse, nós também não percebemos. E continuou: “Bem, quando os pacientes diziam isto, ele respondia que também tinha muitos problemas. Assim, arranjou, em vez da reforma, um processo disciplinar. Devia-se atirar da janela” O que é que isto tem a ver com Tai Chi? Nós também não sabemos. “Mas olhem bem para ela, parece uma mongolóide (e imitava as poses da mulher!). Parece é a vossa amiga! Eu sei que vocês estão desejosos de ir.” Não, não diga isso… Finalmente conseguimos passar o livro, depois de muita conversa e ela diz: “Tanto dinheiro? Tão me a mexer na carteira! Este país está mesmo mal. Os jovens não têm dinheiro para nada. Tem de levar uma vida horrorosa. É só comer, dormir, trabalhar e ir à casa de banho. Acham essa vida boa? E essas notícias, que dizem que o mundo está em crise, é tudo mentira. TUDO. Eu estive na Europa, e até na vizinha Espanha não é assim! Portugal é o país da Europa com mais psicoses! Lá em casa, quando dão as notícias digo: DESLIGUEM ESSA MERDA! Têm televisões no quarto, usem-nas. Mas eu sei. Quando são jovens não gozam, depois não reparam, mas quando chegarem a velhos vão ver!” Isso é tudo muito interessante, pensava eu, mas agora posso fechar a caixa? Ao fechar a caixa disse: “Lá está ele a contar o dinheiro. Então isso está bem? Se não estiver bem, diga ao seu gerente que estiveram a aturar uma maluca necessitada e com problemas, uma maluca. Bem, o que até é verdade, eu sou maluca. Querem um conselho? Nunca se exponham demasiado, como eu fiz aqui agora. Mantenham-se discretos.” Depois voltou ao Tai Chi: “Sabem o que quer dizer Tai Chi?” O Greenpeace saiu-se com uma boa: “Não, o que é?” e a senhora: “Não sei, por isso é que perguntei” e ele: “AH. Pensei que fosse explicar!” ao que a cliente responde: “Não, não perguntei a si, perguntei a alguém que me explicou. E é o seguinte: Significa caminho para a energia, através da mão e do pé. É.” Depois olhou para o livro de acupunctura e diz: “Olha para este homem Se isto é saudável vai lá vai! Que feio!” Depois centrou a sua atenção no livro de Yoga: “Epah, estas orientais são mesmo bonitas.” Greenpeace não se conteve mais uma vez e chamou a atenção da senhora para o facto de a rapariga da capa não ser oriental. A reacção foi a que passo a descrever: “Pois, não me admira. Elas são todas bonitas assim. O meu irmão uma vez dormiu com uma mulher e quando acordou no dia seguinte disse: O QUE É ISTO!!! E só lhe apetecia saltar pela janela. Daí em diante disse me que quando saísse com uma mulher queria que ela se lavasse primeiro, para ver como ela realmente é. Disse que ele era louco, que elas não fariam isso.” Temos portanto um problema congénito. E já vimos também que a cliente tem um fetiche com atirar-se ou alguém se atirar das janelas. Ao caminharmos para a porta, ela sempre a acompanhar-nos disse o seguinte: “Desculpem estar aqui sempre a falar, só não me cai a dentadura porque não é placa!” E riu-se. Nós ficámos serenos. Ela abana o braço do Greenpeace e exclama: “NÃO ME CAI PORQUE NÃO É PLACA! PERCEBEU? É UMA PIADA! PI-A-DA! VOU DIZER OUTRA VEZ: NÃO ME CAI PORQUE NÃO É PLACA!” Depois, contou um bonito caso da vida real: “Por falar em dentadura, lá uma rapariga que é assistente social foi a casa de uma senhora de idade, e ela tirou a peruca, a prótese do olho e a dentadura. Quando a assistente social a viu saiu a correr pela porta!” Aí está, eu era para acrescentar que ela tinha se atirado pela janela, mas desta vez não. E riu-se, perdidamente com a sua história. Há que frisar que neste momento já eram 23:45, já a maior parte das portas do centro comercial se encontravam fechadas, o que me obrigou a dar uma grande volta. E eis que, finalmente, largou-nos e foi à sua vida. Mas deixou um bocado dela, e nós agradecidos. Volte sempre, o meu blog necessita de si!

domingo, outubro 24, 2004

Inserir bolinha vermelha aqui.

Certamente, os mais atentos, já ouviram falar da polémica em torno do livro AS MULHERES NÃO GOSTAM DE FODER. Por uns míseros 2,5€ podemos descobrir esse mistério que preocupa a humanidade desde o seu nascimento. Escrito por um tal Alvarez Rabo, o livro foi, e segundo o autor, escrito em 21 horas, 23 minutos e 3 segundos. Uma eternidade, portanto… Em Viseu, o livro foi retirado da montra de uma livraria devido a ter sido considerado impróprio. Como não podia deixar este episódio contribuiu e de que maneira para o aumento da popularidade e consequentemente das vendas do livro. A simples presença do livro no estabelecimento, colocado entre os demais livros que vendemos, suscita situações curiosas.
Temos o caso mais comum, que é o do cliente que chega e diz: “Olhe, tem aquele livro?”. Claro que, não sabendo de que livro é que o senhor se estava a referir, a resposta só podia ser uma: Que livro? O cliente continuou: “O senhor sabe, AQUELE livro. E eu continuava a explicar ao senhor que se não me dissesse o título ou o autor que não saberia que livro era. “Aquele livro, que se fala muito agora, aquele…” Depois afastou-se, fez uns telefonemas. E voltou. “Boa tarde…” diz o cliente, e eu respondo na mesma moeda. “Tem aquele livro?” Este cliente deve ter graves problemas, pensei eu. E continuou “Aquele, aquele que tem aquele título, o senhor sabe…” Não, não sei. Não sou adivinho. “É aquele título, eu não posso dizer, não se diz”. Mas que belo contra senso: não se diz, mas lê-se. Adoro os falsos pudicos. Até que me fartei da brincadeira e lhe fui buscar o livro. Ele agarrou o livro como se tratasse da sua salvação. Obviamente que o título fica virado para si, para ninguém ver as imundices que ele anda a ler. Aparecem também alguns clientes que dizem: Quero o livro As MULHERES NÃO GOSTAM DE QUALQUER COISA. Realmente até seria um título apropriado, porque as mulheres não gostam de muita coisa.
Depois temos os clientes a sério, que chegam ao balcão e dizem: “AS MULHERES NÃO GOSTAM DE FODER, por favor.” O por favor no fim da frase, apesar de sinónimo de boa educação, dá um tom extremamente estranho à frase. Ou então: “Vim cá buscar a minha encomenda, AS MULHERES NÃO GOSTAM DE FODER. A sua colega que ligou foi extremamente profissional. Disse o nome com todo o brio e profissionalismo, nem se engasgou ou vacilou. Os meus parabéns.” Pelos vistos adorou ouvir uma mulher a pronunciar o título. Outros ficam maravilhados com o preço. 2.5€. Para uns rabiscos que parecem feitos por um miúdo de 8 anos e um texto por um miúdo de 12., parece me bem.
Como não podia deixar de ser, há sempre um cliente que quer ser maior e melhor que os demais. Chega ao balcão, atira o livro para cima deste e diz: “Agora é que vou perceber porque é que elas não querem!” Sem obter qualquer tipo de reacção, o cliente prossegue, triunfante: “Onde é que se paga, é aqui?!” e continuou “Bem, mas isto é tudo mentira, porque elas querem!”. Como se vê, o senhor era versado na arte das relações e, resta-nos aguardar e observar atentamente, na vã esperança de aprendermos qualquer coisa. “Elas gostam. Quando são bem fodidas gostam! Não acha?” Assentimos e limitamo-nos a aprender, enquanto o homem continuava: “Claro, quando chegam a casa bêbados e a cheirar a vinho elas não querem!”. Frase verdadeiramente sábia, digna de figurar num livro da Arte Plural. Depois, atira o dinheiro para cima da mesa. Muitas e variadas moedas. Em seguida, aponta e diz: “Quanto custa? Pode escolher, tire à vontade!” E lá foi ele, todo feliz da vida, pronto a descobrir um dos maiores e mais bem escondidos mistérios da nossa vida terrena.
E aí está, agora mesmo, mais um cliente na senda do conhecimento universal, chegou ao balcão e interrompeu as conversas que decorriam com os clientes e inquiriu, fanaticamente: “Vendem a playboy americana???” Não, não vendemos, provavelmente, com muita pena da maior parte dos nossos clientes.

quinta-feira, outubro 21, 2004

Hilda Furacão

O Natal aproxima-se a passos largos, e com ele vem todo o caos e aumento no fluxo de pessoas, livros e dinheiro. O que é uma boa notícia. Pelo menos para alguém. Este caos vai aumentando lentamente, quase sem se dar por ele, provocando assim alterações na nossa vida profissional, até se apoderar totalmente de nós. Este aumento no fluxo de pessoas e livros abre também todo um novo mundo de possibilidades. Mais pessoas, mais variedade de pessoas, provavelmente um novo rol de situações caricatas. Aguardamos com expectativa.
Mais uma vez, a minha profissão provou ser uma fonte infindável de conhecimento. Numa noite calma, quase tão calma como a noite de Natal, fiquei a saber o porquê de os furacões terem nomes de mulher. Com a loja completamente vazia (o que neste caso, diga-se de passagem, foi extremamente benéfico porque de outra forma teria sido complicado) entra uma mulher com a mala na mão direita e o cartão de crédito em riste na mão esquerda. Andava rápida e decididamente, com um olhar esgazeado e raivoso, enquanto se abanava como uma cana ao vento. Mal pôs um pé na loja (e ao que tudo indica, já assim era antes de entrar) começou um berreiro infernal. Bem, berreiros na loja até é uma coisa compreensível, mas depois de acontecer algo que, com ou sem razão, despolete reacções mais fortes nos clientes. Desta vez não. Mal entrou desatou aos berros, deixando-me completamente estupefacto. E aviso desde ja que não é fácil. As primeiras palavras dela foram: "A GAJA NAO ME QUER FAZER O VISA MANUAL! EU FAÇO AQUI E DOU LHE COM O CARTAO NA CABEÇA!" Uma entrada no mínimo original. Dirigiu-se para o balcão, e como seria de esperar, bate com a mala violentamente na mesa e diz: "QUERO UM LIVRO! UM LIVRO QUALQUER!". Apesar de ter visto muita coisa, tal como pessoas não saberem o nome do livro que querem e coisas afins, devo dizer que fiquei surpreendido com este pedido, especialmente devido ao que a senhora acrescentou, antes sequer que pudesse tentar falar: "DE ME UM LIVRO! RAPIDO! QUERO IR ALI E DAR LHE COM O LIVRO NA CABEÇA!". Portanto, alem de querer um livro qualquer, queria o livro não para ler, mas para dar com este violentamente na cabeça de alguém. Imparável esta mulher. Na altura não tive o discernimento necessário, mas agora que penso nisso podia ter dado à cliente um livro bastante caro, podia ser que ela não se tivesse importado. Além disso, sendo um livro caro provavelmente seria bastante maior, o que viria a ser crucial para a bonita intenção de dar com o livro na cabeça de alguém. "QUERO UM LIVRO, UM LIVRO QUALQUER, RÁPIDO!" continuou ela, sem sequer nos ter dado tempo para nos mexer. Perguntámos o que queria, ela continuava a insistir que queria qualquer coisa. Em seguida, prosseguiu as reclamações, mas desta vez explicou o porquê de tanta raiva: "ISTO É UMA VERGONHA! A GAJA DA LOJA NÃO ME QUER PASSAR O CARTÃO! NÃO QUER FASER MANUALMENTE NA MÁQUINA! E AGORA DESMAGNETIZOU ME O CARTÃO A CABRA! VOU LÁ E VOCÊ VENDE ME UM LIVRO E FAS MANUAL E EU DOU LHE COM O LIVRO EM CHEIO NA CABEÇA!" Manual na máquina é algo estranho pensei eu. De qualquer forma, não convêm contrariar o bicho, não vá eu ser atacado. Então, com o objectivo de esclarecer tudo isto, ligámos para a UNICRE, para indagarmos da possibilidade de fazer então um VISA manual utilizando o terminal de Multibanco. O curioso (apenas para quem não está habituado a este tipo serviços) é que o jovem que atendeu do outro lado negou peremptoriamente a existência deste serviço, remetendo nos assim para a utilização do velho visa manual. Claro que, no dia seguinte, o venerável e sábio mestre livreiro elucidou-me e mostrou-me como se faz. Depois de explicarmos isso com tremenda dificuldade à senhora (enquanto tentava falar ela só mencionava as palavras LIVRO e CABEÇA de forma repetida, desconexa e, diria mesmo, assustadora), ela lá acedeu em fazer o Visa manual. Enquanto preparava o engenho, ela deslocou-se para ir buscar um livro qualquer, vociferando: "DE ME UM LIVRO! UM QUALQUER! E RÁPIDO, PORQUE QUANDO ESTOU NERVOSA FICO PERIGOSA". Acho que isto era desnecessário, porque alguém que menciona diversas vezes a sua vontade imparável de bater na cabeça de alguém com um livro não necessita propriamente de avisar que é perigosa. Acho que se nota. Não sei, se calhar sou só eu, mas eu sou demasiadamente atento e picuinhas com os detalhes. "NA ÁFRICA DO SUL ISTO NUNCA ACONTECE E ELA VAI VER!" Claro, na África do Sul já tinham dado um tiro ao comerciante, especialmente a um português. Por sua vez, ela saia e levava ela um tiro. Ficava tudo bem. Depois de ter pegado num livro de Margarida Rebelo Pinto, essa Bíblia da violência, dirige-se para o balcão. "AQUELA GAJA.. O MEU CARTAO TEM UM PLAFOND DE 10 MIL EUROS! E ELA NÃO ME ACEITA! É UMA VERGONHA! AQUELA GAJA, TOU FARTO DE ESTRANGEIROS! FAÇA ME LA O VISA ENTAO E EU VOU LA! E DESMAGNETIZOU ME DE PROPÓSTIO". Devo acrescentar, para fazer justiça, que, obviamente, o cartão não estava desmagnetizado. Lá fechei a conta, ela pagou, guardou as coisas, e lá foi ela, livro em riste numa mão, mala e cartão noutra, tão rápida como entrou. A seguir, ficámos a observá-la na loja em frente. Ela gritava e gesticulava como uma maníaca, e a senhora da loja estava assustada. Nós deste lado sempre à espera do momento em que ela desse com o livro na cabeça, como tanto prometeu. E por uma ou duas vezes temi o pior, pensei que ela fosse mesmo partir para a agressão, pensei que fosse tirar de esforço a empregada. Mas não, ficou-se pelas intenções. E foi se embora, tão chateada como nunca.
Quando pensámos que tinha sido o fim da passagem do furacão, uns dias mais tarde, e aparentemente mais calma volta à loja. E para quê? Para trocar o livro da Margarida, porque o achou entediante. Ou, para citá-la "Boring...". Quando me deu o talão para efectuar a troca, verifico que o talão não corresponde ao livro. Então, explico-lhe o sucedido e pergunto se tem o talão certo. A mulher, até então calma e civilizada, esplode novamente: "O QUE? ESTA A DUVIDAR DE MIM? EU COMPREI AQUI O LIVRO! ESTA A VER O SACO? O PREÇO? EU COMPREI AQUI! NÃO, ISTO É UM ULTRAJE!" Com os berros, o meu cabelo foi violentamente projectado para trás, deixando o de tal maneira que ainda hoje não se move dessa posição. Talvez seja medo. Não o censuro. Expliquei-lhe, calmamente, como deve ser, que não era isso que eu estava a dizer, que apenas queria saber se tinha o talão para saber se tirava um talão novo ou não. Ela assentiu com a cabeça, mas o olhar violento e lunático continuava. Depois de efectuada a troca, ela foi embora, sempre a reclamar com qualquer coisa, seja a má impressão da factura, o preço do livro, o papel do livro, o ar condicionado estragado. Deve ser da oposição. Digo eu, mas eu não percebo nada disso. Alias, nem sei bem de que é estou a falar. Até breve, espero eu!

quinta-feira, outubro 07, 2004

Eixo do Mal

É sobejamente conhecida a minha aversão pelos telefones. Seja pela senhora que quer livros em Inglês e cujas palavras são completamente imperceptíveis para o ouvido humano ou pelo senhor que reclama desesperadamente porque o seu livro não chegou, não gosto de atender telefones. Numa das tardes que passou, ia eu no meu oitavo dia consecutivo de trabalho, o telefone toca, como se fosse uma sereia perdida no alto mar que me enfeitiça com o seu canto misterioso. Dirijo-me para ele quando verifico que não se encontra ninguém nas minhas imediações, e pego no telefone. A chamada é automaticamente atendida, e ouço do outro lado: “TOU CHIM? OLHE, ESTA AI UMA CHENHORA QUE ESTABA A CUMPRAR UNS LIBROS?” Bom, pensei eu, deve ser um colega de outra loja, talvez nortenha, que deve ter encontrado algum livro de alguma encomenda que tenha sido feita. Perguntei-lhe que senhora era e qual era o livro, a resposta foi: “ESTA AI A CHENHORA? CHIM, ELA FOI CUMPRAR LIBROS, QUAL É QUE ERA JACINTA?” e ao longe, ouve-se, com uma voz como se fosse de um rancho foclórico: “ACHO QUE ERA UMA CHEBENTA!”. O senhor continua: “OLHE, COMPROU UMA CHEBENTA, AINDA ESTA AI A CHENHORA?”. Disse lhe que não estava ninguém na loja, e a reacção foi: “NUM ESTÁ? ENTÃO POR FAVOR CHAME A PELO ALTEFALANTE!” Perguntei ao senhor o que desejava da senhora, pensando ser uma cliente, e obtive a seguinte resposta: “CHAMA-CHE ANA PAIVA, FALE NO ALTEFALANTE E DIGA PARA VIR PARA CACHA!”. Disse educadamente ao senhor que não podia fazer isso, que a senhora não se encontrava na loja. “MAS QUE LIBROS LEBOU HM?” Não lhe sabia responder, ele continuou. “CHAME NO ALTEFALANTE, POR FAVOR.” Expliquei que não podia fazer isso, que tinha que ser alguém da família a efectuar tamanha façanha. A resposta surgiu rapidamente: “MAS EU CHOU DA FAMILIA!!” gritou o senhor, inflamado. Tive que elucidar o senhor e explicar que eu é que não era da família. “AH POX, TEM RAZÂO…” disse ele, conformado, despedindo-se em seguida.
Agora apresento-vos uma das personagens mais caricatas que já entrou nesta loja e já figurou neste blog: BIN LADEN. E quem é bin Laden, perguntam vocês? A resposta surgirá em breve. Num dos meus primeiros dias como Livreiro, contaram-me a lenda de um senhor africano, que fala algo entre o crioulo e o português, que chega à loja e procura o bin Laden e livros sobre ele. Ora, pensei rapidamente que fosse uma partida destes malandros, estes fuinhas que são os meus colegas. A verdade é que, uns dias mais tarde, curiosamente, a maneira como vejo o mundo mudou radicalmente. Numa manhã sossegada, abandonado ao balcão como de costume nas manhãs de sábado, entra uma personagem, andar embriagado e olhos encarniçados. Chegado ao balcão vocifera: “EH AJJFAMFAIOHFAPLÇLLMFLÇAJIEFE BIN LADEN? ONDE ESTA? ENCOMENDA?” Sem saber o que dizer, pedi que repetisse. Só obtive isto: “BIN LADEN, BIN LADEN (aumentando de tom) ”. Disse lhe que o livro estava esgotado, e lá foi ele, repetindo a frase BIN LADEN até sair da loja. As visitas vão se repetindo, sempre ao sábado, e o nosso amigo Bin Laden é já uma relíquia do estabelecimento. Na sua última aparição, vinha visivelmente chateado, para além da embriaguez normal. “BIN LADEN, ONDE ESTA, JÁ CHEGOU ENCOMENDA? BIN LADEN!” Disse lhe que está esgotado ainda, que está difícil. Ele diz: “ESGOTADO? ESGO-TA-DO?” Mas, não contente com a exibição pensei em mostrar-lhe o livro sobre a Al-Qaeda. Assim o fiz. Quando lhe passei o livro para as mãos, ele olhou o livro, virou o ao contrário, voltou o novamente e disse, espantado: “Ehhhhhhh…” Depois, colocou o livro na mesa, com a capa para cima, e com o dedo começou a ler o título: “A-L Q-A…………”. Volta a virar o livro e diz: “TEM O SEGUNDO?”. Que segundo, ainda estamos para saber, só ele sabe do que fala… Depois, não contente abriu o livro e exclamou: “XIIII FOOOOODA-SE!” Seguiu-se uma pausa e depois: “NÃO QUERO. ADEUS, BOM TRABALHO”. E assim se despediu como sempre, com o desejo de bom trabalho e um vigoroso aperto de mão.
Bin Laden, onde quer que estejas, que Deus te acompanhe na tua busca, e que encontres o vilão líder do eixo do mal

sábado, outubro 02, 2004

Lenda Viva

Há situações realmente curiosas. E pessoas realmente inacreditáveis. Não me canso de repetir, aliás, não posso fazer outra coisa. É verdadeiramente irreal muito do que se passa neste estabelecimento denominado comercial.
Temos clientes, que, quer pelo andar cambaleante ou indeciso quer pelo ar tresloucado ou desligado da realidade, mostram logo que quando abrirem e moverem os músculos da sua boca não vai sair coisa boa. Mas, caros amigos, estes não são os piores. Nem de perto nem de longe. Os mais perigosos são aqueles que se apresentam como sendo pessoas sãs e equilibradas. Por exemplo, vejam este caso. Uma mulher, 30 e poucos anos, vêm comprar um livro. Tudo normal. Escolhe o livro, demora o tempo que tem a demorar sem exageros, leva o Código Da Vinci. Muito normal. Quando vai pagar, pousa os sacos em cima da mesa, juntamente com a sua mala. Aí, começa a desvirtuar-se. “Olhe, pode me tirar a carteira da mala?” Seria uma pergunta com rasteira? Teria que responder afirmativa ou negativamente? Com muitas questões em mente, decidi seguir à risca as instruções da cliente, tirando a carteira da mala. “Agora, pode tirar-me o dinheiro da carteira?” Devo ter feito um ar espantado, e ela continuou: “Tire, por favor, é que eu tou chea de verniz e não posso mexer em nada.”. Bom… Muito bom… Os pedidos seguiam-se: “Guarde o troco”; “Ponha a carteira na mala”; “Feche a mala”. E depois o melhor. “Espere, espere! Eu agora estico as mãos, e o senhor enfia me os sacos nos dedos, mas sem tocar nas unhas, pode ser?” Vamos a isto, disse eu, nunca virando a cara ao desafio. Então lá estava ela, manápulas esticadas, unhas vermelhas e compridas apontadas na minha direcção, quais punhais afiados, e eu cheio de sacos de lojas de mulher na mão. Aí, lentamente para não enfurecer o animal, fui colocando um a um dos sacos nas mãos da senhora. Tarefa difícil e que requeria demasiada perícia. Depois de estar tudo colocado, lá seguiu ela, mãos paralelas ao chão com os sacos pendurados. Entrou como uma pessoa normal, saiu como uma louca.
Existem comportamentos que eu não consigo mesmo explicar. Quando estou atrás do balcão e me pedem um livro que eu sei que se encontra na loja, ou que já pesquisei e vou confirmar se temos, eu digo para esperarem um momento e começo a dirigir-me para o local do livro. Agora reparem: o balcão encontra-se no canto superior direito da loja, o que significa que não há quase nada junto ao balcão. Mas, ainda assim, quando começo a sair detrás do balcão, as pessoas que estão à minha frente, dirigem-se na mesma direcção que eu, encurralando me na única sáida do balcão. Agem como se tivessem um íman poderosíssimo a ligá-las a mim. Eu movo-me para a direita para sair do balcão e posteriormente procurar na loja, e as pessoas, em vez de esperarem quietas, começam também a mover-se para a direita, encurralando me entre a mesa e o balcão. Mas porquê? Porquê? Querem saltar às minhas cavalitas enquanto procuro? Ir para o meu colo? Porem se de quatro patas para eu as cavalgar triunfantemente até ao livro? Não entendo. E nem sei se quero entender. Há coisas demasiado complexas para o meu pequeno e ignorante ser.
Um destes dias recebi a visita de uma personagem no mínimo genial. Baixo, gordo, meio careca, com óculos redondos e com um apetite por arquitectura, mas não era arquitecto. Faz vos lembrar alguém? Os iluminados, discípulos de Seinfeld, saberão do que falo. Aproximou-se do balcão, e naquele estilo envergonhado e desconexo pediu-me revistas Arquitectura, porque segundo ele: “Apesar de não ser arquitecto, gostava muito de ser…”. Eu tive de olhar duas vezes para ele, para me certificar que não era mesmo o George. Lá o levei para ver a revista, mas ele ficou um bocado desiludido com a nossa oferta. Saiu, desapontado da loja. Uns largos minutos depois, enquanto atendia mais um cliente, aparece ele, de revista na mão, colada ao peito com a cara virada para mim. Entra quase a correr pelo estabelecimento a dentro, interrompendo o cliente que estava a falar comigo e diz: “Vê? Vê? É esta!” Enquanto ajeita os óculos, mesmo como o George. Por momentos, tenho que admitir, arrepiei-me. Parecia que estava defronte duma lenda viva. E saiu, tal como entrou, correndo, revista junto ao peito, todo desconexo e trapalhão.
Estou definitivamente de volta…

sexta-feira, outubro 01, 2004

O Regresso do Livreiro

O Livreiro Contra-Ataca, Um Novo Livreiro, O Livreiro Fantasma, O Ataque do Livreiro, etc, já perceberam a ideia. Voltei. Depois de um interregno (demasiado longo, em abono da verdade) eis que volto a teclar, que é o que faço melhor. Aliás, é única coisa que faço. E agora que penso nisso, não faço nada bem. Raios.
Pois bem, porquê a minha ausência? Mudança é a palavra que melhor define a situação. Saiem pessoas, entram outras, mas o sentimento de ausência não desaparece. Boa sorte, LFL, és grande. Depois surgiu um novo período de ambientação, e agora tudo correr pelo melhor. E o trabalho tem sido tanto que nem tem dado para estar atento às personagens do balcão. Mas que existem, existem. A minha relutância em escrever estava a tornar-se deveras incomodativa. Até que hoje, uma senhora mudou o meu destino...
Depois de um início de tarde caótico, com três nobres e bravos trabalhadores atrás de um balcão, chegou a calma mais que merecida. Então, depois de alguns minutos em que a loja permaneceu quase tão vazia como a galeria de troféus do Sporting, entrou uma tia e a sua filha juntamente com uma amiga. E lá estavam elas, junto às novidades a debitar informação e conhecimento literário. Até que se decidem pelo Bosque dos Pigmeus. Nada mal. Ao aproximar-se do balcão, a senhora parece começar a coxear, e acompanha os passos vacilantes com uns sonoros: "Ai.. Ai.". Fiquei ligeiramente assustado, tenho que confessar. Ao chegar ao balcão, diz, gemendo e por entre dentes: "Tem um penso?". Nesse momento, acho que terei feito a maior cara de parvo da minha vida, pelo olhar da senhora. "Tem um penso?" Repetiu ela "Ai.. É que estou a sangrar". Bom, pensei em ir à carteira buscar o Evax para emergências, mas a senhora interrompeu-me, dizendo: "Ai.. Tem um lenço de papel, ou um pano? Ai." E eu respondia sempre negativamente. Ela insistia: "Ai. Mas não tem nada?". Respondo negativamente novamente, e é aí que entra em cena a filha. Chegada perto da mãe, olha para esta, leva as mãos à boca, talvez para suster o vómito e diz: "AAAAAAAH, mãe que é que lhe aconteceu? Que horror mãe!". A resposta foi célere: "Filha, bati com o pé em algum lado, estou a sangrar muito, muito, ai. Ai.". A filha, assustadíssima retorquiu: "Sente-se mãe!" Ao sentar-se, a senhora, como se fosse o seu último desejo pede: "Filha, vai aí à loja da frente (Vista Alegre) e traz me um pano, vai." Pensei que ia acrescentar que se morresse, que nunca deviam esquecer a mãe, mas ficou por ali. Depois, a muito custo, lá se levantou e se dirigiu cambaleante para o balcão, de livro em punho. Quando pego no livro para passar na máquina, diz me: "Olha, deixe estar, já cá volto, estou AGONIADA." E saiu. Obviamente que não voltou. O sangue perdido deve ter sido demasiado. Que Deus a tenha. E, muito obrigado, onde quer que esteja, pelo trabalho a que se deu para eu voltar a escrever no meu blog. Estou infinitamente agradecido, mas não era preciso chegar a tanto.
As loucuras continuam. Enquanto arrumava a secção do turismo, devido a factores internos, e depois de cuidadosamente ter removido um por um dos livros da prateleira e me encontrar em cima do banco a colocá-los novamente um a um, e usando orgulhosamente o meu distintivo de livreiro, eis que surge da bruma um homem que sem qualquer tipo de aviso dispara: "trabalha aqui?" O não ecoou a minha cabeça, olhei duas e três vezes para a criatura, mas decidi ficar pelo sim. Ele ficou surpreendido. Já hoje, enquanto carregava uma pilha de livros, uma senhora perguntou-me simplesmente: "É funcionário?". Simples, mas terrivelmente eficaz na idiotice. O oposto voltou a acontecer, com uma jovem loura que parecia perdida numa meio da loja a ser abordada violentamente por uma professora que procurava a Agenda do Professor. Ela levantou os braços, e dise: "Não, não, não trabalho!". E fugiu amedrontada da loja. É para sentirem na pele o que nós sofremos no dia a dia.
Nem tudo é o que parece, e o seguinte caso que passo a relatar mostra mesmo isso. Um homem, talvez ainda abalado por ter ultrapassado a barreira dos 30, queria um livro para uma menina de 10 anos. Bom, lá fui eu com ele até ao local onde tais livros crescem, e indiquei-lhe alguns. Como sempre, não pareceu minimamente convencido. Aí, pensei em puxar dos galões, e assim fiz. Dei-lhe o Diário da Princesa. É um diário, é cor-de-rosa, tem uma princesa. Parece-me bem. Ele olha cuidadosamente para o livro, examina-o detalhadamente, primeiro perto e depois longe dos olhos. Até que me entrega o livro e diz: "Não, este não. É muito perigoso." Claro, quando disse que o título era o Diário da Princesa, queria mesmo dizer que o título é Diário da Princesa Assassina e Terrorista Que Tenta Conquistar o Mundo Através de Atentados Em Nome de Satã e Do Batatoon e Que Demonstra Têndencias Homicidas e Suícidas e um Amor Doentio Por Bananas". Se fosse para uma menina minha conhecida também não comprava.
Para finalizar, atendi um casal já quase a entrar na 3ª idade que queria roteiros de Lisboa. Ao levar-los ao local e entregar-lhes o respectivo livro, tentaram pagar-me ali, no local, longe do balcão. E não saíam de lá enquanto não aceitasse o dinheiro. "Quanto é? Quanto é jovem? Diga lá quanto é." E eu expliquei-lhes que tinha de passar o livro na máquina, mas nem isso os demoveu. Nem sabem o quão persistentes podem ser, estes velhinhos inocentes.
Ah... É bom estar de volta...