sábado, julho 31, 2004

O fim de uma era...

Nesta semana que passou, e que não mais voltará, foram vendidos os dois últimos bastiões desta livraria. A sua alma foi-se, talvez para jamais regressar. Uma atmosfera soturna e amargurada enche agora as quatro paredes carregadas de livros, outrora vivas pela alegria e luminosidade dos seus filhos pródigos. Eram eles Spartacus, o mui nobre e bravo cavaleiro homossexual, e Ronda de África, 800€ brutos em dois volumes de magia africana.
Spartacus. Uma palavra. Várias aventuras e desventuras. Um sentimento. Saudade. Para alguns, apenas mais um guia abichanado. Para outros, um modo de vida. Este livro, se é que se pode chamar isso porque a sua esplendorosa essência era maior que cada um de nós e que a soma de todos nós, ficará para sempre marcado na história desta livraria. Este pequeno guia teve encomendas em nome de todos os funcionários da loja. Sempre que ninguém estava a ver, fazíamos encomendas fictícias no nome de um colega, na esperança que a pessoa que trata das encomendas, quando ligasse a avisar que o seu Guia Gay tinha chegado, não reconhecesse o número ou o nome, colocando assim o colega numa situação embaraçosa. Várias vezes colávamos papéis com o nome de colegas, na tentativa de os enganar. Eram feitas apostas para sobre quem venderia o livro, e a quem. Várias vezes colocávamos o livro num local de destaque, totalmente merecido, para, com um pouco de sorte, ver parti-lo, para continuar a sua vida. Mas, a esperança tinha desaparecido, pois ninguém parecia ter interesse no solitário Spartacus. Até esta semana. Aí, tudo mudou. Curiosamente, e porque o destino é irónico e certeiro, foi o nosso colega com mais afinidade com o livro (colega este que tinha a alcunha merecida de Sparta, devido à sua dedicação com o livro) que o vendeu. Foi ele que segurou Spartacus na hora da despedida. Foi ele que o pôs no saco, a caminho de alguma estância homossexual algures na Europa. Comovido como nunca, Sparta ficou bastante nervoso. Todas as brincadeiras e partidas vieram lhe à memória naquele ensejo. E ele, trémulo, só imaginava o que poderia acontecer se algum colega tivesse a partilhar aquele espaço naquele momento. Seria deveras embaraçoso e constrangedor, pois não iriam suster o riso. Já Sparta, teve de pensar em cada diminuto e meticuloso passo que dava ao processar a venda, como se de uma pequena sessão de meditação se tratasse, pois sabia que o riso subia lhe impiedosamente pela garganta e forçava-lhe violentamente os lábios. O riso chamava-o, não devido aos clientes, ou à sua preferência sexual, mas a tudo o que o ligava ao livro, e todos os bons momentos de galhofa que passou devido ao livro. Spartacus, onde quer que estejas, um bem-haja! Mesmo depois de vendido, Spartacus continua no imaginário dos livreiros… Ainda ontem, Sparta imprimiu novamente o talão com o nome de um dos colegas como sendo uma factura, e colou no monitor do computador que ele habitualmente usa…
África. Terra Mãe. Aqui nasceu a história de Ronda de África, esse mastodonte da literatura portuguesa, verdadeiro pilar de cultura. Em meados de 1900 Henrique Galvão, esse paladino da caça grossa, embaixador da espingarda, terror dos animais indefesos, seguiu para África, e, munido de uma máquina fotográfica, capturou os momentos marcantes da sua viagem pelo continente negro. Este livro não estava na nossa posse, devido a ser um livro com uma tiragem muito reduzida. Mas, certo dia, entra uma senhora que se dirige a mim, com uma conversa delirante sobre um livro há muito perdido e que é procurado por muitos, mas poucos são dignos de o possuir. Ronda de África era o seu nome. Ao pesquisar no nosso avançado sistema, encontrei o livro outrora perdido. Estava em Aveiro. E custava 800€. Avisada desse facto, a senhora parecia não se importar com o montante do livro. Queria o livro a todo o custo. E por razões familiares. Segundo ela, o seu avô ou bisavô teria seguido as pisadas de Galvão na sua empreitada assassina, e estaria presente no livro, sentado em cima de um elefante morto. Porque mortos são mais calmos e fáceis de usar como cadeira para uma foto, especialmente porque o material fotográfico da época era algo rudimentar. A senhora estava segura da sua compra, e mandou vir o livro. Avisei a novamente, que eram 800€, e que no caso de ela desistir, isso significaria um rombo tremendo no orçamento da loja, e quem ouviria era eu. Mas, ela, rija como o seu avô, não recuou. Da viagem de Aveiro para cá pouco se sabe. Ronda de África chegou em todo o seu esplendor, deixando toda a gente que o vislumbrava petrificados de estupefacção perante tamanha magnificência. A cliente foi prontamente avisada, e deslocou-se à loja para adquirir o livro. Mas, chegada à loja, parecia insegura. Viu o livro. Uma e outra vez. De trás para a frente. Examinando meticulosamente cada foto, cada página, cada recordação eterna impressa naquele livro. E, mais de 30 minutos depois, dirigiu-se a nós com um ar desiludido, afirmando que o seu avô não se encontrava no livro. E segundo ela, sem avô não havia livro. Prontamente me ofereci para desenterrar o senhor e montá-lo num elefante por 800€, mas a senhora já não estava interessada. Foi o desespero. Um duro golpe nas contas da loja. E tudo devido ao senhor e ao elefante. E assim, Ronda de África ficou pela loja, tornando se rapidamente numa cara familiar, num ombro amigo. E acolhemo-lo com se fosse nosso, ficando connosco. Até hoje.
Estava a processar calmamente uma venda, quando o senhor me pede para parar porque queria mais qualquer coisa. Sem demoras, acedi ao seu pedido. Pediu-me então algo relacionado com África. Logo aí, pensei no Ronda de África. Mas, achei que estava a sonhar demasiado alto, e não queria ser um Ícaro de livraria. Trouxe-lhe o Vendedor de Passados, de Agualusa. E ao ver o livro, o senhor começou a discursar sobre África com um ar saudoso. Seria agora ou nunca, tinha de arriscar tudo. E, ao pegar no livro, o senhor exclamou: “Ah, ia agora mesmo pedir lhe isso, deixa cá ver isso!”. Ao pousar o livro na mesa, e antes de o consultar, o senhor bateu no livro, exclamando: “LEVO JÁ!”. Uma súbita alegria encheu-me a alma. Contudo, lembrei-me que ainda não tinha revelado o preço ao cliente. Ao disparar: “800€…” o senhor responde com um rigoroso: “LEVO JÁ!”. Parecia um milagre. A recuperação do orçamento, e a venda de algo que pesava na minha consciência, pois tinha sido eu a encomendar o livro. Ronda de África partiu, assim, para mais uma viagem. E nós, por aqui, perdemos mais um dos símbolos desta singela loja…
Os livros passam, a livraria fica… Mais cedo ou mais tarde novo heróis surgirão, provavelmente do nada. Por hoje, ficaremos a recordar os heróis passados…

sexta-feira, julho 30, 2004

Orgias, comida e passeios...

Não estava a pensar em escrever hoje, mas alguns acontecimentos recentes ditaram esta súbita mudança nos meus planos.
Algo que acontece com moderada frequência são os clientes simpatizarem com os funcionários. O meu colega de serviço teve agora um caso desses. Uma cliente, persistente e resistente, inquiria o meu colega sobre livros de um tal Ziraldo, poeta brasileiro. Durante longos minutos, a senhora delirou sobre astrologia ("os signos são verdadeiros, encontro afinidades em todos eles") e outros assuntos, desde poesia a filmes, passando por música. Quando voltou aos livros de Ziraldo, falava febrilmente sobre o Livro do Maluquinho. Referia-o incessantemente, como se possuída por ele. E cada vez que o dizia, o meu colega acenava com a cabeça, com um ar circunspecto e profissional, tão característico dele. Eu, pelo contrário, tinha de fugir lá para dentro de modo a não perder a postura. Depois de mais alguns minutos infindáveis a debitar informação sobre o grandioso Ziraldo, a senhora diz ao meu colega, num tom, diria mesmo, alcoolizado: "Eu trago lhe o livro de Ziraldo, e vamos aí curtir os dois". É o desvario, o deboche, a estroinice imparável. Uma cliente, um funcionário, o Ziraldo. Uma ménage à trois de pesadelo.
Outro caso recorrente é o do cliente que vai enfardando enquanto entra na loja, faz um pedido, compra o livro e se vai embora. Ininterruptamente a enfardar. Desta vez, o cliente veio acompanhado do seu filho, e dois gelados. Chegado ao balcão, pede o livro enquanto o seu cone se desfazia e caía pela sua indumentária abaixo, tombando desamparado no chão. Em seguida, limpa com a manga de seda o gelado no canto da boca. Há que salientar que até este momento o seu discurso nunca cessou, apesar das evidentes contrariedades. É um verdadeiro lutador, que inspiração. E o seu filho, bom, o que se pode dizer dessa cópia em miniatura do pai, um verdadeiro mini-me bodegão. A criança ia devorando o gelado, com o dito espalhado pela cara, enquanto, à imagem e semelhança do pai, ia deixando a gravidade fazer o seu trabalho, fazendo com que as migalhas fossem caindo inocentemente, quais gotas de chuva, para o soalho reluzente da loja. Pobre Dona Branca, que tem de limpar tudo. Haja respeito por quem trabalha.
Tivemos igualmente a visita de outro personagem caricato. Ao arrumar uns livros, volto me para trás ao verificar que está alguém junto ao balcão. O bater do pé no chão e do dedo no balcão não engana. Ao caminhar rumo a mais uma tarefa, o cliente estica o dedo mindinho e afaga gentilmente as partes baixas. Gracioso. A Paula Bobone teria ficado orgulhosa. Depois, enquanto passava as mãos pela cara ia pedindo livros sobre a Europa. Ao levá-lo ao local dos mapas, disse a seguinte e enigmática frase: "Espero que tenha um bom mapa, porque quero ir pelo melhor caminho quando for para a Europa". Bom, já ouvi muita e boa gente dizer que nós somos um país retrógrado e terceiro mundista, mais daí até considerar-nos fora da Europa… Pensei em dizer-lhe que quando passasse pelo Congo, virasse à esquerda, depois subisse até Marrocos e chegaria à Europa. Mas, temi que não percebesse a piada e mantive o meu silêncio sepulcral acompanhado do meu ar solene, tão característico destas situações. Rigor profissional acima de tudo.
Apareceu também um senhor de meia-idade, acompanhado da mãe com quem vive desde que nasceu, e que estava com sérias dúvidas em entrar na loja. Segundo a senhora sua mãe, este estabelecimento só vendia livros distribuídos por esta empresa. Ele, pela primeira vez na vida, desafiou a mãe e descobriu um mundo novo. Um mundo onde nem só as lojas têm produtos da sua própria marca. Ficou mudado para todo o sempre.
Já ao fim do dia fui abordado por um senhor que queria um mapa de Portugal. Quando questionado sobre que tipo de mapa queria (estradas, político, militar, etc) responde “Ora aí está um bela pergunta… Não sei”. Muito bem. Depois, passa a explicar me o seu caso: “Sabe, é que eu vou atravessar Portugal. Vou fazer uma caminhada. Sabe, a pé? (e faz com os dedos os gesto de caminhar). Devo demorar, 3 ou 4 dias. E não pretendo seguir pelas estradas.” As coisas que se aprendem numa livraria, nunca pensei ser detentor de tamanha e tão poderosa sabedoria. Uma caminhada significa a pé? Fantástico. Nunca me lembraria de tal coisa. Sim, porque depois de 16 anos de ensino, era de estranhar que eu soubesse o que uma caminhada seria. Certa sabedoria só está ao alcance de poucos, e só aos escolhidos ela é transmitida. Sinto me abençoado com esta dádiva.
Agora dêem me licença, que vou fazer uma caminhada até aos livros de turismo que tenho de arrumar umas coisas. Caminhada, mas a pé claro.

quinta-feira, julho 29, 2004

O último?

Não percebo porque é que as pessoas têm ideia de que as folgas são para repousar. Quando tenho folgas faço tudo menos descansar, e não param de acontecer imprevistos desagradáveis. Deste modo, o meu regresso ao ambiente de trabalho não poderia ser mais chato. A minha paciência para lidar com má educação estava num nível extremamente baixo hoje, mas, há que fazer um esforço. Pelo lado positivo, o dia foi fértil em situações caricatas.
E por onde começar? Bem, primeiro vamos conhecer a história de um indivíduo que teve um daqueles momento ridículos, passível de acontecer a qualquer ser mais distraído. Quando digo ridículo, refiro me a ridículo tipo anúncios XAU, não a ridículo tipo "ESTA SOU EU, ESTA SOU EU COM MAIS 4000€". Ainda não presenciei nada tão ridículo e tenho sérias duvidas que algum dia venha a testemunhar algo desse gabarito. O senhor chega à caixa para pagar, segurando a auto-biografia de João Paulo II, "Levantai-vos! Vamos!" na mão direita, e, com o dedo indicador da mão esquerda bem apontado para o II na capa do livro. E então pergunta: "olhe, quero levar este, tem cá o primeiro?". Eu fiquei sem perceber, fiquei, diria mesmo, catatónico por uns segundos, e finalmente perguntei a que primeiro é que se referia. "Ao primeiro. Á primeira parte." Eu elucidei o senhor, e disse lhe que a auto biografia de Sua Santidade era composta apenas por um livro, um único e sagrado volume. "Mas está aqui um II, eu quero a primeira parte, não levo só a segunda!", retorque ele, apontando vigorosamente para o II da capa. Quando expliquei delicadamente que esse II fazia parte do nome do Papa, o senhor bateu com o livro na cabeça, exclamando bem alto: "QUE ESTUPIDEZ!". Temos que admitir que o cliente reconheceu a qualidade do seu acto, merecendo os nossos maiores e mais sinceros parabéns. Ao contrário da grande maioria, este apercebeu-se que não esteve bem. Os outros continuam a achar se os maiores.
Em seguida, temos a ocorrência da senhora que chega ao balcão, e sem demoras murmura para mim: "vou lhe dizer uma coisa, provavelmente não lhe vai fazer sentido nenhum, mas vou dizer". Aí, eu tremi. Qual confidência divina, maldição egípcia ou esconjuro grego estaria prestes a ser revelado para mim? E porquê a mim? Seria eu digno? "Onze minutos" diz a senhora. E olha para mim durante um longo, quase eterno, segundo. "Faz algum sentido?" pergunta ela. "Ouvi isto em qualquer lado, gostava de ter este livro. Não sei o autor, não sei nada." Quando abandonou a loja, com o seu livro pela mão, uma negra tristeza abateu-se sobre a minha pobre alma. Por breves momentos, pensei ser o escolhido para uma revelação. Mas não, contínuo a ser apenas e só um pobre livreiro.
Falando em falta de paciência, uma cliente, depois de não ser atendida 15 segundos após ter entrado no estabelecimento, brama “OH FAZ FAVOR, ALGUÉM ME PODE AJUDAR?”. Por momentos, pensei que o nosso crocodilo de estimação (Auster de seu nome, em honra de um colega) tivesse voltado a atacar, já estava preocupadíssimo. A senhora estava aflitíssima. Mas não, a senhora só queria um pouco de atenção. É que o meu colega estava a atender 2 pessoas e eu estava lá atrás a ordenar e colar etiquetas num monte de livros, ou seja, estávamos na pândega. É que não se trabalha mesmo naquela casa.
Isto leva-me a outro tema, quiçá controverso. A carência de espaço. Os funcionários têm de ser verdadeiros mestres da arrumação, técnicos das gavetas, engenheiros espaciais ou até mesmo mágicos do desaparecimento para arrumar esta livraria. Hoje foi exemplo disso. Imaginem uma estante, com capacidade de 100 livros. Ora, chegaram cerca de 300 para essa estante (no total foram talvez mais de 500). Confesso que não sou nenhuma Manuela Ferreira Leite, mas algo está errado aqui. À primeira vista a loja está cheia. Muito cheia. E chegam caixas e mais caixas de livros. Parece me bem. É bom arrumar. Especialmente quando estamos concentrados a arrumar algo e somos constantemente a ser interrompidos porque uma senhora não encontra “Conversas com Deus” de Alexandra Solnado, ou porque o único exemplar do livro do Cláudio Ramos está ligeiramente sujo. Claro que nós, funcionários, arrumamos com gosto e determinação, nomeadamente porque sabemos que a qualquer altura nos pode calhar o bónus, esse Santo Graal do arrumador de livros: bolas de cotão do tamanho de bolas de ténis. É um assombro, um justo prémio para tão vigoroso esforço. Como diria o nosso colega: “Há tanto cotão que dava para fazer uma camisola!”. Nem mais.
Outro evento curioso, vendeu-se o segundo livro do Pauleta. É verdade, venho com enorme tristeza anunciar que alguém comprou o livro desse grande dínamo goleador do ataque nacional. E, obviamente, a venda de livros está a ganhar em comparação com o número de golos que o aríete luso apontou no Euro2004(2-0). Portanto, com estes dois fãs e com o Scolari, o Pauleta já vai em 3 admiradores. Força rapaz, és o maior.
Sendo eu um livreiro, não posso terminar sem deixar de mencionar a estreia literária de José Castelo Branco, na TV7. Aqui ficam alguns excertos desta pérola literária, cortesia de O Período. Depois de ler algo tão profundo e genial, fico francamente com pouca de vontade de redigir seja o que for. José Castelo Branco, será você o responsável pelo fim d’O Livreiro?

domingo, julho 25, 2004

Pode repetir?

Ah, domingo. Novamente domingo. Quando pensamos que todo o mal já passou, eis que chega o domingo. Tão perto da folga e ainda assim, tão difícil, tão pesado. Com este calor abrasador, a loja está literalmente às moscas, estão invariavelmente mais empregados do que clientes. Mas, como não podia deixar de ser, há clientes que se esforçam para figurar neste singelo espaço. E, com toda a frontalidade, não posso deixar de homenageá-los nem que seja só pelo seu esforço em cair no reino do rídiculo, no rio da estupidez, no céu da idiotice. A estupidez é quando homem quiser. Já pensei sinceramente em criar uma linha de autocolantes. Estes diriam: "EU COLABOREI N'O LIVREIRO!" e eu teria o maior prazer em colocá-los em sítios bem visíveis das personagens que já mereceram a sua eternidade neste blog.
Hoje, já vários clientes mereciam ser galardoados com o dístico d'O Livreiro.  Reparem, agora, ao vivo e em directo, enquanto escrevo estas palavras, chega uma cliente que em voz bem alta pede o livro do Paulo Coelho: "OU SÃO ONZE MINUTOS OU ONZE EUROS, NÃO SEI BEM". Pimba, autocolante contigo. Quem entra numa loja aos berros sem sequer ter a certeza do nome do que quer, é candidata. Secalhar estava à espera de ser elucidada pelo resto dos clientes, ou mesmo pelos transeuntes que passeavam lá fora. Depois, ao pagar, fica chocada porque o livro custa 13,5€. E lá foi ela para a zona do esoterismo, a falar de uma forma completamente imperceptível. Por falar em imperceptível, devíamos ter um aviso na porta que limitava a entrada a clientes com elevado nível de alcoól no sangue. É que não é só pelo distinto bafo a vinho, qual cave do Douro, é pelos altos níveis de dificuldade na compreensão.  Ainda à pouco um cliente (?) antes de sequer por um pé na loja já vinha aos berros a perguntar onde é que era a TMN. Claro que a única parte compreensível para o apurado ouvido humano foi ONDE e TMN, o resto pareceu uma língua extraterrestre, e tive de deduzir o que seria. Eu acho que devíamos mudar o nome da livraria para INFORMAÇÕES. É que passo o dia a fazer trabalho cívico. Uma boa pena para delitos menores seria a permanência numa livraria, imagino os protestos dos condenados. Perguntam-nos tudo. Desde sites na Internet, como comprar pela Amazon, onde é que se arranjam saltos dos sapatos, onde se fazem cópias de chaves, onde é que vendem posters dos jogadores da selecção, onde é que há alfarrabistas, como é que se passam dados duma caneta usb para uma diskette, etc, etc, etc, etc... O meu dever para com a sociedade está cumprido.
Outro caso em que tenho de usar o meu poder de dedução é quando pedem para procurar um livro no computador, mas eu não percebo nada do que me dizem. Respondo com um seguro e confiante: Concerteza, só um segundo. Mas a cada tecla que vou pressionando lentamente vou pensando: Não percebi nada do que a mulher disse, só espero que estas palavras sem nexo que estou a pesquisar deêm qualquer coisa e depressa. Torna-se bastante constragedor ter de perguntar novamente ao cliente. E mais constragedor e aflitivo se torna quando voltamos a não perceber nada! Aí podemos sempre passar o caso a um nosso experiente colega, artista da poesia e formado em Irirologia. Ele sabe tudo. 
A meio da tarde, entra uma senhora na loja e vem directa ao balcão. Estão três pessoas atrás do balcão. Uma foge, a outra é chamada por um cliente. Sobro eu, olho incessantemente para os lados, mas não tenho fuga. "FAZES ME FALTA?" perqunta a senhora. Acho que não, tenho pouca utilidade. Não percebo a problema das pessoas em chegar ao balcão e dizer um cordial "bom dia", seguido de um normal "podia me dizer se tem disponível o livro Fazes Me Falta da Inês Pedrosa?". Porquê? A preguiça ataca, nem para falar as pessoas gostam de se esforçar. Para quê dizer 10 palavras quando se podem dizer 2? Este livro por acaso nem tem um título especialmente curioso. Agora livros como, e aviso desde já que há registos de isto ter acontecido, "Vai Uma Rapidinha?" "Vai Uma Queca?" podem levar a situações verdadeiramente embaraçosas. Tal como a frase, e dita para mim, "PODE ME EMBRULHAR?". Desculpe, mas não tenho papel que chega, vai ter que ir assim. Se quiser um saco cama ou um "body bag" pode se providenciar.
Para terminar, assisti a uma cena verdadeiramente peculiar. Duas jovens brasileiras entram animadas na loja, mas ao lerem livros sobre amizade, saudade, tristeza, amor, vão ficando gradualmente menos contentes, até começarem com uns leves toques, passando depois por tímidos abraços com risos puerís, até que finalmente abraçaram-se como se não houvesse amanhã e choraram, choraram, choraram... Não posso esconder que fiquei um pouco comovido, mas, tive de intervir: "Olhe, desculpem, a novela ainda demora muito? É que eu quero ver a bola..."


quinta-feira, julho 22, 2004

Esqueci-me...

Desta vez, venho por este meio apresentar às massas dois problemas que parecem assolar uma parte considerável do povo português. Diversas vezes sou confrontado com pessoas que chegam ao balcão e pedem determinado livro. Até aqui nada de anormal, mas é a partir daqui que surgem os problemas.
Por vezes, os pedidos contêm algo de estranho na sua fonética: a troca do “i” pelo “e”.
“Olhe, se faz favor, tem aí o livro ReikE Essencial?”
“Tem o Código Da VincE?
“Tem o Poder InfEnito Da Mente?”
“Já chegou Os Mistérios de OsírEs?
“Onde encontro livros da Julliete BenzonE?
É verdadeiramente curiosa esta situação, especialmente se tivermos em conta o facto que o a televisão favorita de grande parte destes clientes é a TVI. Aposto que VIDAS REAIS, BATANETES e MORANGOS COM AÇÚCAR dizem eles sem trocarem letra que seja... O “i” está a perder a sua supremacia para um “e” que parece não dar quaisquer tréguas.
O outro problema é, sem qualquer margem para dúvidas, bastante mais preocupante: a falta de memória. Não é raro chegar um cliente ao balcão e pedir um livro. Mas, não se lembra do autor. Nem do título. Nem da editora. Nada. “É um livro assim (faz um rectângulo com as mãos) e é amarelo, sabe qual é?” Perfeitamente, vou já buscá-lo. Aliás, a nossa sorte é que os nossos livros são assim (faço o gesto do triangulo com as mãos), e são todos vermelhos, logo o amarelo rectangular não deve ser difícil de encontrar! Temos também clientes que dizem coisas como “Não sei o título, mas sei que o livro foi escrito por dois americanos”. Não vejo qual poderá ser o problema. Existem apenas cerca de 200 milhões de americanos, não deve ser difícil encontrar os autores. "A autora é jovem", "Acho que é um homem. Ou secalhar é uma mulher", "o autor é espanhol" são frases que ouvimos vezes sem conta, e todas elas bastante elucidativas. Também temos clientes que querem um livro, do qual não se lembram de nada, mas acham que nós, mergulhados numa imensidão de obras, com dezenas e dezenas de lançamentos todos os meses, temos o dever de conhecer todos os livros e todos os autores. Se Miguel de Sousa escrever uma tese sobre o Óráculo de BellinE e a sua relação com o facto de Manuel Luís Goucha ser de origem extraterrestre, é bom que nós saibamos onde está, sobre o que fala, qual a data da 1ª edição, número de páginas, etc, correndo o risco de sermos apelidados de, e passo a citar um afável cliente, “maus profissionais!”
A falta de memória acontece não só em relação aos livros, mas também em relação à própria localização espaço-temporal do cliente. Temos clientes que entram aqui às 23 horas de óculos escuros e dizem bom-dia, ou então chegam às 10 da manhã com um sonoro e vigoroso “Então uma BOA NOITE sim!?”. E, ainda hoje, a meio da tarde, entra uma senhora na loja e desde logo começa desvairada a disparar perguntas em voz alta desde a porta, qual Manuela  Moura Guedes em pleno Jornal Nacional, e eis que senão quando pára mesmo no meio da loja, e pergunta a si mesma: “MAS, ESPERA, EU ESTOU NA LIVRARIA? AH! POIS, ESTOU!” O ar filosófico e de quem estava com uma profunda dúvida existencialista é verdadeiramente inenarrável.
Obviamente existem as mais variadas explicações para estes lapsos de memória. A mais credível e merecedora dos mais altos galardões da comunidade científica foi a seguinte: carregando consigo uma cara carrancuda, certa senhora entra lentamente na loja dirigindo-se a mim. Fala num autor, e quer o novo livro dele. Levo-a à zona onde se encontram as obras desse autor, e peço que veja os livros, na tentativa de reconhecer o livro desejado. O esforço é inglório, a senhora não encontra o livro. Aí, sem qualquer tipo de alternativa ou subterfúgio, vejo me na iminência de questionar a pobre alma sobre o título do livro, sabendo que posso mesmo correr risco de vida. A senhora explode, gritando do fundo dos seus pulmões:”MAS VOCÊ ESTÁ PARVO? ENTÃO NÃO VÊ QUE ESTOU COM DOR DE DENTES? ACHA MESMO, MAS ACHA MESMO QUE ME CONSIGO LEMBRAR DO QUE QUER QUE SEJA COM ESTA DOR DE DENTES?!?!?!?”. Claro que  tive de me retratar e pedir mil perdões à senhora, pois é uma falha inacreditável eu estar rodeado de tanto conhecimento e não saber que a dor de dentes provoca falhas na memória. Eu próprio, sofrendo de uma terrível dor de dentes, por vezes esqueço me que sou livreiro, indo diversas vezes pagar pelos livros que deveria ir arrumar, ou então indo mesmo perguntar aos meus colegas se este ou aquele livro estão disponíveis.
Agora mesmo sinto uma leve dor nos meus queixais. De que é que eu estava mesmo a falar?

quarta-feira, julho 21, 2004

A Encomenda

Depois de duas mais que merecidas folgas volto confiante para enfrentar mais uma semana de eventos mirabolantes, dignos de figurar no Mr. Ripley's Believe It Or Not. E, mal chego, deparo me logo com uma situação que muitas vezes descamba em algo muito estranho. Correndo o sério risco de me tornar repetitivo, qual Margarida Rebelo Pinto dos blogues, é inacreditável as situações que ocorrem vezes sem conta neste respeitavél estabelecimento. Tantas vezes penso que foi o último acontecimento digno de figurar neste blog, mas, todos os dias, sou novamente surpreendido pelas pessoas. Penso que muitas delas leem assiduamente este blog, vêm à loja e pensam: "Não, aqueles ainda não eram suficientemente estúpidos, acho que consigo melhor". O Homem sonha, a estupidez nasce. E lá vêm eles todos confiantes, loja adentro,  com a firme convicção  de que vão conseguir o novo expoente máximo de estupidez. 
Pois bem, desta vez vou me debruçar sobre o nosso brilhante sistema de encomendas, e tudo o que roda à volta desse sistema. Primeiro, há que focar a nossa atenção no facto de ser tudo manual. O cliente pede um livro. Depois de horas a tentar explicar que só podemos encomendar livros que estão no catálogo, que eles demoram cerca de uma semana, que ligamos quando o livro chegar, aí passamos a tomar nota (manualmente, numa bonita ficha) dos dados do cliente. E aí começam a surgir os problemas. Nomes desde Cudibamba Dadinha, a Lubelinda Costa, Alcindete Maria, e por aí fora, fazem parte do quotidiano da nossa loja. Verdadeiros desafios herculianos de soletração. Mas, há que vencê-los a todos. Depois o cliente parte feliz da vida com o talão comprovativo da encomenda, e nós, depois de contactarmos as nossas lojas, encomendamos os livros. A partir daqui o destino do livro deixa de estar nas nossas mãos.  As lojas da nossa área são servidas por uma imensa, rápida e bem munida frota de... um estafeta. Sim, um estafeta. Reparem: além de não haver um sistema informatizado de encomendas, só há um estafeta para uma área metropolitana e arredores. Genial. Melhor mesmo, e fica desde já a minha humilde sugestão, era mandarmos as encomendas por Pombo Correio, e os livros vêm por  carroça movida a burros. Eventualmente (e há que sublinhar e dar ênfase a este eventualmente) os livros chegam na data prevista. 
Muitas das vezes, os clientes, apesar de avisados várias vezes que as encomendas demoram cerca de uma semana a chegar e que serão prontamente avisados quando o livro chegar, vêm à loja saber do seu livro. Primeiro procuramos. Não encontramos. Depois perguntamos amavelmente se já foram avisados. "Não".  Típico. Depois temos o habitual caso do cliente que chega e diz: "Vim buscar a minha encomenda!". Mas, ao pedir o talão da encomenda, não tem. E mais, não sabe o que encomendou. Não se lembra, mas claro, fica extremamente incomodado quando algum livreiro não se lembra dele. Há que dar toda a razão ao cliente, visto que nesta loja, só temos três clientes, estamos à beira da falência. Realmente é vergonhoso como é que não nos lembramos de cada cliente e cada encomenda. Um castigo justo seria uma chibatada nas costas.  Para a próxima já não acontece.
Claro que também temos casos em que o livro chega ligeiramente, mas apenas ligeiramente,  atrasado. Quando avisado da chegada do livro, o cliente diz "Mas já não quero o guia da Malásia, já lá tive há já um mês".  No reverso da moeda temos o caso em que o cliente vem buscar o livro com um pequeno atraso, apenas para descobrir que o seu livro encomendado foi vendido. Duas vezes.  
O acto de ligar ao cliente para o avisar da chegada do livro apresenta perigos inerentes. Senão vejamos: podemos ligar em má altura, interromper algo, ligar com um mês de atraso, arriscando-nos assim a ser bombardeados com todos os nomes e mais alguns que possamos imaginar. Acontecem situações caricatas, como ouvir famílias aos berros, gatos a saltar para  o telefone, mulheres com voz de homem, homens com voz de mulher, nunca terem ouvido falar do livro e da pessoa que deixou o nome, pessoas que ouvem mal e outras que não querem ouvir. E como eu odeio falar ao telefone. Muitas vezes somos severamente repreendidos por clientes, e consequentemente enviados para o canto da loja durante duas horas, por termos dito uma semana, e terem passado três dias e o livro não ter chegado. Haja vergonha.
Outros clientes fazem encomendas aqui, mas querem o livro noutras lojas, ou ainda em casa delas. Se forem simpáticas, ainda oferecemos umas bolachas e um cházinho, bem como uma manta e uma lareira, para ler o seu livro da Cristina Candeias e poder invocar o Diabo na paz e sossego do seu lar. Têm todo o direito...
Até à próxima...

segunda-feira, julho 19, 2004

O Peso Do Dinheiro

Passando os meus dias atrás de um balcão cheguei rapida e facilmente à conclusão que a avareza e a fome pelo dinheiro são directamente proporcionais ao tamanho da conta bancária e provavelmente inversamente proporcionais ao tamanho do orgão sexual. Quanto maior a conta, maior a avareza, menor o dote. É no mínimo curioso constatar que só as pessoas com um DR, ENG ou um último nome indicativo de boas famílias no seu cartão de crédito é que clamam por DESCONTOS.  Ainda não assisti a nenhum caso de alguém que aparente ou seja de classes sociais menos favorecidas a exigir um desconto.
Temos vários casos e várias aproximações, mas todas com o mesmo fim: o desconto.  Assim, uma situação que ocorre com frequência é a tia com o Gold Card do marido pegar num livro que custe 10€ e chegar ao balcão, e em vez de responder ao meu bom dia ou boa tarde, a primeira frase que lhe sai dos seus lábios queimados de passar o dia ao sol é: "TENHO DESCONTO." Ora bem. "TENHO DESCONTO.", enquanto bate com os cotovelos na mesa e começa a olhar à sua volta.  Que delicadeza, que subtileza, olhe que se fosse um nadita mais discreta eu não a entederia. Das primeiras vezes, eu não sabia bem como o que fazer. Até que decidi questionar o porquê do desconto. Foi o drama, o horror, a tragédia. A tia não sabia como reagir, primeiro fez um ar de extrema e profunda indignação. "OLHE, TENHO DESCONTO PORQUE TENHO DESCONTO" .  Mas tem desconto porquê? É advogada? Médica? Professora? Tem algum cartão que a habilite a um desconto? Cartão jovem não, só se for mesmo cartão da terceira idade. A sua indignação inicial deu lugar a um certo mal estar, acompanhada de um notória falta de jeito. A senhora não sabia o que fazer. E aí, a senhora responde: "OLHE, EU NÃO TENHO CARTÕES, NÃO ANDO COM CARTÕES PORQUE NÃO POSSO CARREGAR PESOS". Brilhante. Fantástico. Mas, tenho que ser sincero, como a compreendo, senhora. Sempre que recebo um cartão de crédito a tendência é mergulhar no chão, tal a força gravitacional que é exercida sobre ele. Einstein teria ficado maravilhado como um cartão de um tamanho tão pequeno e com uma massa mínima exerce tamanha força gravitacional. Um verdadeiro X-FILE (FICHEIROS PARA-ANORMAIS). Obviamente que não levou o desconto. Claro que depois, o arrependimento escureceu me alma e tornou o meu coração num pequeno bloco de carvão. Sem o 1€ de desconto que eu não dei à senhora, ela vai certamente passar fome, tal como os seus 20 filhos e 40 netos, na sua pequena barraca da Quinta da Marinha.
Depois temos o caso do cliente que pede o desconto entre dentes: "É este livro, e o descontinho do costume."  Há clientes que têm desconto, devido não só há sua habitual presença, mas também à sua não diria simpatia, mas ao seu respeito com que tratam os que trabalham para o servir.  Mas quando surgem pessoas que eu nunca vi de lado nenhum, que nem uma simples e cordial saudação dão,  que as únicas palavras que se ouvem são "TENHO DESCONTO 10%", sinceramente, não há nada a fazer. Não há se faz favor. Não há obrigado. Não há nada. Eu nunca vi ninguém chegar à Fnac, Continente, Ensitel, etc etc, e exigir um desconto. É que eles não pedem. Não sugerem. Exigem! Não os ensinaram a ter respeito? Se eu fosse gerente era logo ali, um cartaz, NÃO HÁ DESCONTOS. E cada vez que alguém pedisse um desconto, era um acréscimo de 10% no livro. Mais nada. Onde é que anda o Salazar quando se precisa dele? E mais, vou mais longe. Era a ex-ministra Manuela Ferreira Leite, esse ícone e ídolo do povo português, para a caixa. Aí queria ver quem tinha o desplante de exigir um desconto. Pagavam, e inda pagavam mais uns impostos, e mais IVA, e mais uns trocos para a Segurança Social.
Por vezes inventam desculpas como "AH, EU TENHO DESCONTO LÁ NA OUTRA LOJA, FAÇA LÀ O JEITINHO". Ou então, "FALEI COM O SEU GERENTE, TENHO DESCONTO" (o gerente nem sequer estava na loja). Neste casos há que louvar a tentativa pela creativade, pelo menos entretem-nos. Acho que a maior parte das pessoas não se apercebe da figura rídicula que faz. Alguns até fazem um choradinho para o desconto.  Depois pagam com uma nota de 100€.
E há que não esquecer, que agora em campanha de verão, temos 10% de promoção em alguns livros. Obviamente que não acumulamos descontos. Mas, um senhor, certo e seguro que merece e precisa do desconto, insiste. "TEM 1o%? AH BOM, ENTÃO META AÍ MAIS 10%!" Peço imensa desculpa, mas não é permitido, retorqui eu. O cliente insiste. E insiste. Até que desiste. Não leva o livro, vira costas e vai ver a loja. Contínuo a atender pessoas, até que o senhor volta mas desta vez com outro livro na mão, com ar confiante e triunfante. "ESTE TEM DESCONTO?" pergunta ele, visivelmente satisfeito consigo. Não, respondo eu. "AH, ENTÃO LEVO ESTE! E NÃO SE ESQUEÇA DOS 10% DE DESCONTO!". E lá vai ele, loja fora, feliz da vida.
Agora que penso nisso, só faltava vir alguém com o cartão FNAC e pedir o Santo Graal do consumidor, o DESCONTO...




domingo, julho 18, 2004

A Oferta

O Homem é um animal (racional, mas só de vez em quando) que está sempre a aprender. Como tal, vou aprendendo bastante acerca da condição humana. E algo que rapidamente aprendi é que a inocente pergunta: "É para oferta?" é das piores ofensas que se pode fazer aos estimados clientes do nosso estaminé. As reacções a tamanha falta de respeito são as mais variadas, indo desde irados "VOCÊ ACHA? É PARA MIM", até sonoros "NÃO! É PARA MIM". Estou sempre à espera do momento em que um cliente que esteja a ter um mau dia descarregue em cima de mim com um "LÁ QUE ME CHAME DE QUADRUPEDE SODOMITA COM LEVES TENDENCIAS MASOQUISTAS E COM AR  HOMOSSEXUAL TUDO BEM, MAS ISSO DA OFERTA PASSOU DOS LIMITES, CHAME JÁ O SEU GERENTE!!". Eu até entendo que certas pessoas ficam ofendidas quando estamos claramente a atentar contra o seu poderoso intelecto. Obviamente que o livro "Fantasias Eróticas" é para o caro senhor! Claro, temos também o caso dos clientes, que eu estudarei com o merecido pormenor noutra ocasião, que não emitem qualquer tipo de som. Eu sei que não se deve gozar com pessoas que tenham deficiências, mas este tipo de casos não pode passar em claro. Ao perguntar se é para oferta, a resposta é um doloroso silêncio, quase sempre acompanhado de um olhar de condenação e um abanar forte da cabeça, da esquerda para a direita. Quanto mais pequeno  o cérebro, mais eles se abanam. E se eles se abanam. E como não podia deixar de ser, quando não pergunto se é para oferta tenho sempre a sorte de o cliente querer que embrulhe e diga "ENTÃO? É PARA OFERTA!!!" também de maneira pouco amiga. Depois temos aquelas pessoas que querem embrulhos estranhos, ou querem 10 livros um em cada embrulho, ou com a capa para trás e ou outro para a frente. Temos clientes que acham que dizer "é para oferta" é muito banal, o que faz com que surjam frases como "dê aí um jeitinho", ou "capriche nisso ok?" ou o mítico "faça me aí qualquer coisinha por favor". Há também aqueles que são de uma simpatia que me ilumina a alma e aquece o coração, que insistem ferozmente que não tirei o preço, só desistindo quando lhes espeto o  preço à frente dos olhos. Mas, se por acaso tive a triste ideia de deitar o preço fora é melhor preparar me porque não seria a primeira nem a última vez que teria de abrir um embrulho para a senhora verificar que afinal o preço não está lá. Claro que o português tem sempre razão (tema que irei também abordar posteriormente) e então é capaz de jurar pela alma da sua mãe que Deus nosso senhor tenha e que repousa  no céu que eu não tirei o preço e que o preço estava lá e que eu tirei agora sem ela ver, ou consegui tirá lo através do embrulho. É, isso mesmo, eu tiro preços de embrulhos fechados. O Olá Portugal até já me convidou, mas gostava mesmo era da ir à Praça da Alegria. E a falta de laço... "E NÃO HÁ LAÇO NÃO HÁ NADA? QUE POBREZA!". Santa indignação! Realmente é vergonhoso, um atentado ao bom gosto, não colocarmos nem sequer dispormos de laços para os embrulhos. Não se espantem se virem um cliente rasgar o embrulho e dizer "NÁO QUERO EMBRULHO NENHUM DÊ CÁ ISSO!!" Ou então também há aqueles embaixadores do bom gosto que franzem a sobrancelha, lançam o braço para o lado e para a frente, dobram a mão para trás (tipo José Castelo Branco) e dizem: "SÓ TÊM ESSE PAPEL? QUE HORROR!" É, de momento só temos mesmo este, o papel ARMANI e o VERSACE já tá esgotado, peço imensa desculpa. Se vier cá amanhã pode ser que já tenha chegado o JOÃO ROLO.
Será que não entendem que eu não gosto e não tenho mesmo jeito para fazer embrulhos? Quando eu pergunto se é para oferta, é uma pergunta retórica, é meramente protocolo. Eu não quero, nem gosto de embrulhar. O mais provável ao tentar fazer um mísero embrulho é sair um coelho de Origami.
Obviamente que há sempre alguém que quer passar os limites da estupidez, que pensa que consegue ir mais longe na anormalidade, que sonha em ir mais além no ridiculo, e consegue. A raça humana é maravilhosa. Testemunhado por um colega, certo senhor entra na loja de livro em riste. Chegando ao balcão, sai  a seguinte  frase: "OLHE, COMPREI ESTE LIVRO NA FNAC, IMPORTA-SE DE EMBRULHAR? É QUE ESTÁ MUITA GENTE NA FILA DA FNAC" Meu amigo, os meus mais sinceros parabéns, você ganhou o prémio. Merecia ser fotografado e colado numa placa comemorativa que diria ANORMAL DO ANO.
Outra coisa também relacionada com as ofertas são as trocas. As pessoas sabem de antemão que têm de trazer o talão para troca. Mas não, saiem-se com respostas como: "OH MEU AMIGO OUÇA LÁ, ISTO FOI OFERTA, ACHA MESMO, MAS ACHA MESMO QUE TENHO TALÃO?" E ficam tremendamente ofendidos. Claro, aí tenho de lhe explicar sobre a incrível invenção que são os talões de oferta, ou então em último recurso tenho de lhes dizer que inevitavelmente, se vão trocar um livro , vão ficar a saber o preço. Ora isto é como dizer a uma criança que o Pai Natal não existe, e já vi adultos lavados em lágrimas por bem menos...                                                         






quinta-feira, julho 15, 2004

Onde é que está a camara?

Sinceramente, com toda a honestidade, do fundo do meu pequeno coração literário, eu por vezes penso que vou figurar na próxima edição dos apanhados. É que ocorrem situações que simplesmente são peculiares demais para serem realidade. Estou sempre à espera de, depois de mais um cliente maravilha, ver saltar de trás de uma bancada o Júlio César e o seu companheiro travesti, qual Batatinha e Companhia dos anos 90, ou então o Guilherme Leite, esse paladino do humor em Portugal. Sim, é assim tão irreal.
E porquê? Eis a razão...
Tarde sossegada. Demasiado sossegada para o meu gosto. Quando assim é, sentimos que algo nefasto se aproxima. E não podíamos estar mais certos. Entre uma senhora de meia idade. Folheia pausademente o novo livro de Nicholas Sparks, que está numa pilha de mais de 100 livros na entrada. E eis que, bruscamente, pousa o livro e dirige-se a mim. "Queria levar o novo livro do Nicholas Sparks, por favor", vocifera a senhora enquanto olha para os lados. Aí está, é nesta altura que eu penso: onde é que está a camara para dizer adeus? Alguém me explica o que vai na complexa e impenetrável mente de tal criatura que desfolha um livro durante 5 minutos, o pousa, e em seguida o vem pedir a mim, para o ir buscar ao mesmo sítio onde o pousou? É só de mim ou isto é um pouco Kafkiano?
Outra razão são as várias, e quando digo várias é porque são mesmo muitas, pessoas que pedem um livro, e por acaso o livro não existe na base de dados, ou está esgotado, e as pessoas fazem a seguinte, enigmática e porventura bíblica, questão: PODE VER SE HÁ O LIVRO NA FNAC? Eu não sei, mas eu sou um simples livreiro, sem qualquer voto na matéria, mas eu nunca vi ninguém no Continente a perguntar, quando certo produto está esgotado, se o senhor pode ver se existe no Jumbo. É que uma coisa, seria as pessoas perguntarem se eu achava que poderia haver na Fnac. Mas isto? Concerteza esperam que eu diga para esperar um momento e vá eu próprio até à Fnac ver, é que não me admirava nada se alguma ave rara me pedisse tal coisa. Mas não há limites? Da próxima quando me questionarem sobre isso, vou por as mãos nas têmporas, e como se entrasse em transe, digo à senhora que estou mentalmente a viajar pela Fnac, à procura do seu livro.
Depois, temos o caso das pessoas que pedem as mais variadas coisas que, vá-se lá perceber porquê, não pertencem a uma livraria. Desde posters a jogos, a cartões de telefone, a material de escritório, papel de embrulho, lupas, etc... E claro, jornais. Neste caso não vendemos jornais, apesar de outras livrarias venderem. Mas, reparem, quando hoje indiquei o caminho para a livraria mais próxima com os seguintes termos: A tabacaria é aqui à esquerda, junto aos elevadores, a resposta foi: "AQUI À ESQUERDA? MAS PERTO OU LONGE?" Perto, respondi eu. "MAS PERTO? PERTO, MAS QUANTO?". Oh minha senhora, deixe me já sacar da fita métrica que trago no bolso juntamente com as ferramentas e a tesoura de podar relva que eu meço lhe já isso. Sabe, o shopping tem cerca de 5km, portanto é melhor apanhar o autocarro até lá, não vá apanhar uma cãimbra.
E claro, não posso deixar de referir a senhora que quando recebe o Equador, de Miguel Sousa Tavares, se abraça ao livro como se a sua vida dependesse disso e solta um grito orgásmico. Não se preocupe, se quiser eu arranjo-lhe um cantinho e já pode consumar a sua relação com o livro. Aposto que o Miguel Sousa Tavares iria ficar deliciado.

terça-feira, julho 13, 2004

O Senhor Dos Livros

Ah, segunda-feira. É como os domingos, mas menos movimentado e com percentagem de personagens maior.
Hoje, apresento-vos a história do Senhor dos Livros. Esta história, já um clássico épico-rocambolesco, divide-se em três partes... Preparem-se que isto vai ser grande. E aconteceu tudo, esta segunda-feira...
A IRMANDADE DO MOSCATEL
Tremam. Fujam. Corram. Escondam-se. Mas ouçam. Cerca das 17h locais entra na excelsa loja um grupo de senhoras com idades compreendidas entre os 60 e os 70 anos. Bonita idade. Ao vê-las entrar, cambaleantes, pensei estar perante mais um caso de reumatismo ou outros problemas infelizmente tão associados à terceira idade. Mas não. Quando a principal personagem da Irmandade do Moscatel abre a boca para dizer de sua justiça, o forte cheiro a alcóol por pouco não me deixou KO. Então a senhora discursava, num estilo semelhante à grande São José Lapa, sobre Neruda dizendo, enquanto esbracejava teatralmente, coisas como: "OHHHHHHHHHHH NERUDA, esse grande Neruda. Neruda, poeta, Neruda Homem. Grande poema, grande obra. O poeta, o homem, Neruda". E por aí em diante. Levou dois livros. Nada do Neruda. A segunda personagem, limitou-se a cambalear tonta pela loja, qual criança que acaba de dar 100 voltas sobre si mesma. A única vez que falou foi para responder a um provocador "Querida, o Neruda, não leste o Neruda? Sim, Neruda, Confesso que vivi. Ele e eu. Vivos." da sua amiga. A terceira, manteve se perto da zona dos livros eróticos, levando depois um bem apropriado "Guia do Sexo Fantástico". Que belo início para esta saga.
AS DUAS TIAS
Uma mulher + Um homem = Duas tias. Sim, porque mais bicha que este tio é impossível. Depois de uma pequena pesquisa por um livro, a senhora despacha a bicha e começa a reclamar porque uma encomenda sua de um livro que queria oferecer ao seu marido (que irá em breve algures para África) ainda não tinha chegado. O discurso era o seguinte, e atente-se a beleza do mesmo: "Sim, porque isto não pode ser. Então se o meu marido vai embora amanhã tem de ter prioridade (sim, porque as pessoas que encomendaram antes dela não interessam). Vocês têm de definir as prioridades. Este país não anda porque as pessoas não se mexem (o livro que a senhor quer está no Picoas Plaza, a 40m de Cascais. Um mundo de distância para a senhora o ir buscar. Mas acho que o motorista está de férias, compreendo o sofrimento da senhora), é uma vergonha e não fazem nada e quero o livro." Depois acalmou-se, quando percebeu que só há um estafeta para todas as livrarias da nossa companhia da àrea de Lisboa. Obviamente, uma afirmação como estas acalma até o animal mais feroz, porque até o animal mais irracional vais achar uma completa anormalidade existir apenas um estafeta para tanta loja. Não há problema, nós é que ouvimos as reclamações. Subitamente, a senhora viu a luz. O seu discurso irado e inflamado tornou-se miraculosamente num discurso de paz e amor, sobre o afecto e a falta de afecto no povo português e no mundo ocidental em geral. Em África, os "pretos" é que tinham afecto (Cito: "Os pretos, sim pretos, porque eu lido com eles, não sou racista, eles tratam me por mademoiselle, vou às compras com eles, falo com eles, sou amiga deles, por isso chamo-os de pretos."). Segundo ela, chamavam-lhes ingénuos para os denegrirem. Eles não são ingénuos. São inocentes (profundo). E depois voltou a falta de afecto neste mundo e na alma, e o lado espiritual das pessoas e o calor da alma. Amén.
O REGRESSO DO GAY
Mais tarde, surge um estranho homem. Com um olhar estranho e desconfiado. Para na loja. Olha. Mexe. Toca. Revolve. Volta a olhar. Até que chama um colega para o auxiliar. E aí, subtilmente roça-se nele. Uma e outra vez. Como se o colega fosse um poderoso íman gay, e ele um ferro homossexual. O meu colega ficou (e com toda a razão) traumatizado com tamanho e tão escandaloso assédio. Eu agora atendo os clientes com metro e meio de distância. Homem prevenido vale por dois. Não vá o diabo tecê-las...

Até breve, e nas palavras da Tia, UM GRANDE BEM HAJA

segunda-feira, julho 12, 2004

Odeio os Domingos...

Se há dia chato para estar numa livraria é seguramente o Domingo. O Domingo é aquele dia em que saiem à rua as mais variadas espécies de personagens. O que dá azo, por sua vez, a um rol quase infidável de situações estranhas, que mais tarde enumerarei. Só para terem uma ideia, num dos Domingos que passaram, ainda durante o Euro2004, certa senhora com os seus bons 80 anos veio pedir me o seguinte livro: "Mulher procura homem impotente para relacionamento sério". Bom, a história até podia ficar por aqui, já é um pouco estranho. Mas não. No acto do pagamento, a senhora questionou me sobre o resultado do jogo França - Grécia, tendo eu respondido 0-1. Qual é o meu espanto quando, aquela senhora de tanta idade começa a fazer um pequeno comentário, qual artigo de opinião de um qualquer comentador desportivo, sobre a má forma do Zidane. "E o Zidane não está ao seu nível, já mostrou ser melhor e mais útil, fruto de alguma má preparação física" etc etc. E a isso seguiu-se uma opinação sobre o destino da selecção portuguesa e sobre os restantes jogos dos quartos de final e possíveis meias finais. Genial a senhora, qual Gabriel Alves de saias, mas com mais uns anos. E menos Whisky claro.
Neste Domingo estava eu descansado a ler um livro (O Pequeno Livro do Big Bang, de Craig Hogan. Para os tarados aí a lerem, não, não é um livro porno e não, não tem imagens nem gajas boas. É sobre a origem do universo.) quando uma senhora me interpela com a enigmática frase: "Tem nádegas firmes?" Depois de uns breves segundos de reflexão, pensei responder que sim, mas depois lembrei me que trabalho numa livraria e que saiu um livro com esse nome. Assim, corro o risco de na mesma onda, ser questionado sobre os meus abdominais delineados (teria de responder: pois é sabe, isto vida de casado, já não é a mesma coisa e tal...), pernas firmes, e sabe-se se lá mais o quê...
Nunca mais é Terça...

domingo, julho 11, 2004

Realmente sou um individuo com sorte...

Lido diariamente com pessoas cujo QI é algo de extraordinário. É verídico, fico por vezes verdadeiramente deslumbrado com a inteligência que as pessoas demonstram. Senão vejamos: estou atrás do balcão a processar uma venda, ou a mexer no dinheiro ou a passar um cartão, quando chega um senhora de meia idade, típica telespectadora dos programas da tarde TVI, que pergunta: O SENHOR TRABALHA AQUI? Não, porque é que pergunta isso? Estou só aqui atrás a mexer no dinheiro e a processar vendas mas é mesmo só por desporto. Meia horinha disto todo dia nem sabe o bem que lhe faz. Ou então, temos o típico caso de estar em cima de um banco a repor livros nas prateleiras mais altas, quando outro candidato ao Nobel surge e pergunta: TRABALHA AQUI? Não amigo, eu só vim aqui ver as vistas. Estou aqui em cima a repor livros mas é só mesmo para ver melhor, o ar aqui em cima até é mais puro. Depois, temos também o caso de eu abordar uma pessoa e pedir se precisa de ajuda e ela retorquir: TRABALHA CÁ? Oh, não, porque a leva a questionar-se de tal coisa? Este identificador com o meu nome e profissão, bem como o logo da empresa é só mesmo para disfarçar, eu faço mesmo é parte de uma seita secreta, tou aqui a tentar manipular a mente dos mais incautos... Assim, caro leitor, fica mais uma demonstração das altas mentes com que eu lido... E do que é e será a vida d'O Livreiro.

sexta-feira, julho 09, 2004

E agora, para algo completamente diferente...

Pois bem, parafraseando os gloriosos Monty Python, vamos aqui assistir a algo completamente diferente. Chamem lhe crónicas, desabafos, chamem lhe o que vos bem apetecer. Regularmente assistirão aqui ao surgimento de histórias épicas passadas naquele poço de cultura a que chamamos livraria. Qual livraria, e onde, isso fica no segredo dos deuses. O que interessa agora são as personagens que diariamente populam este espaço. Temos mulheres barbadas, hermafroditas, e claro, a especialidade da casa, clientes sem cérebro (ou com este pouco desenvolvido).
Até breve...

O Livreiro