quarta-feira, junho 13, 2007

Tenho o Curso Todo

Vivemos numa época conturbada. Não que isso tenha alguma coisa a ver com o que vou aqui escrever de seguida, mas fica bem dizê-lo, faz-me parecer atento e crítico em relação à sociedade onde me insiro. Mas, no fundo, eu sou apenas mais uma alma atrás de um balcão, sujeito a mil e uma maleitas que podem (e irão, certamente) atingir-me, para gáudio de quem está desse lado, sentado em frente a um monitor. Ou em pé, todo nu, barrado com nutella (Nunca se sabe). Assim sendo, torna-se imperativo relatar o acontecimento seguinte, tentando sempre evitar o temível pensamento de que o senhor em questão não foi enviado por algum de vós, sequiosos que estão por mais relatos aqui do vosso escriba.
Estava a ser uma tarde calma. O gerente tinha ido tratar dos seus assuntos de gerente, e eu e o grande Santo aqui estávamos, em amena cavaqueira. Até que o senhor Santo decidiu ir encher o bandulho com o seu lancezinho, deixando-me aqui à mercê de qualqer maníaco que pudesse aparecer.
Quase de imediato surge um senhor de cabelo grisalho, barba por fazer, dentes a variar num bonito tom entre o preto e o castanho, um distinto e acolhedor bafo a tinto de garrafão e uma vestimenta a combinar.
“Eu é que sou o dono disto!” – Grita ele, ao entrar na loja. – “Eu tenho cartão daqui! Não me conhece?”. Muito bom, pensei eu, logo agora que estava sozinho apanho com um senhor que tem alguns problemas de dicção, qual presidente da junta. Ele aproxima-se do balcão, encosta-se nele e diz: “Eu queria folhas daquelas cortadas, assim folhas! Do costume!”. Expliquei-lhe que não vendíamos folhas. Ele parou de falar, olhou à sua volta, circunspecto, levou as mãos à cintura e disse: “Tão mas isto não é a papelaria Fernandes?”. Aparentemente não, e pensei que tinha acabado aqui. “Olha esta! Mas eu também sou vosso cliente!”. Estava enganado. “Já que aqui estou quero um livro, até é editado por vocês, chama-se Conhecer!”. Tentei obter mais informações, não me soube explicar melhor. Pesquisei, não surgia nada. “Afinal não é conhecer, é Viver! Sim, Viver! É sobre animais!”. Eu já via a pesquisa a dobrar com o cheiro do álcool, mas tentei continuar. Em vão. “Então, é Viver, sobre animais, em inglês. Sobre animais em extinção! É isso! Life Animals. Life. Animals, Life, mas ao contrário!”. Além de enólogo é poliglota. Tinha-me saído o jackpot. Continuei sem encontrar nada. “Sim quero os livros em inglês porque tenho o curso todo!”. Life Animals = Animais em Extinção? As coisas que se aprendem atrás de um balcão. “Tenho o curso todo, veja lá que até tive para ir para os Estados Unidos!”. Pena não ter ido já, pensei eu. “Sabe, eu sou o melhor capista em Portugal. Faço capas. E até já me convidaram para ir para os Estados Unidos. Mas não fui. Não gosto. Aliás, já fiz capas para vocês e tudo. Não tenho é máquina.” E parafusos também não… “É que é o seguinte: eu até comprava uma máquina, mas não me cabe em casa. Se entrasse a máquina, eu tinha de dormir na rua, e com a chuva é mau. E a máquina, apanhar chuva também estragava-se logo não é?” Nem mais, nem mais.
Nesta altura o Santo, já farto de rir à minha conta, faz uma chamada interna, para que eu fingisse que atendesse o telefone e ele se fosse embora. Em vão. Eu fingia que falava ao telefone e ele não se calava. Fui até à secção infantil, fingir que ia buscar um livro e ele veio atrás de mim.
“Sabe que sou o melhor capista em Portugal? Já me convidaram para ir para os Estados Unidos, mandaram me uma carta! Mas eu não vou, aquela merda é só porrada.” É uma perspectiva sociológica digna de ser aprofundada. Eu continuava a procurar um livro qualquer e ele continuava a falar. “Eu podia ir para os Estados Unidos, porque tenho o curso de Inglês todo. Já lhe disse?”. Acho que já tinha falado assim por alto disso… “Até recebi uma carta para me convidarem!” Nisto, tira do bolso um monte de papéis e desdobra uma carta, efectivamente escrita em inglês. Eu já estava a pensar que talvez ele não fosse assim tão alucinado. Mas quando ele me põe a carta à frente dos olhos leio o seguinte: “Your VISA card hás been canceled due to illegal…”. Estes americanos têm maneiras deveras estranhas de convidar uma pessoa para o seu país. “Está a ver? Convidaram-me, mas eu não vou, é só porrada”. Este deve andar a ver wrestling a mais. Voltou à conversa dos livros, perguntou-me onde poderia encontrá-los, eu indiquei-lhe que tentasse na zona do Chiado, porque lá há várias livrarias antigas. O que eu fui dizer…
“Chiado? Bairro Alto? Fui ontem ao Bairro Alto, cantar ao Chico! Conhece o Chico?!” Ainda não tive esse prazer, infelizmente. “Tem de ir, tem de ir. Para cantar lá ou aguentas ou não! Eh Touro! Eh Touro!” Dizia ele, enquanto fingia ser um forcado. Depois cantou (?) um bocado e continuou: “Fui cantar ao Chico! Ou aguentas ou não!”.
Aparentemente não aguento, não…