sexta-feira, dezembro 15, 2006

Conselhos

O Natal já está mesmo à porta e é a loucura total. O Gulbenkian está apaixonado e anda todo simpático para toda a gente. O Santo anda todo mal disposto (dizem que por ciúmes) o que traz um certo equilíbrio à loja.
Neste mês a presença no balcão é uma constante devido ao aumento das vendas, o que faz com que a probabilidade de encontrar algo de estranho também aumente. Vejam o caso de um senhor, talvez com 75 anos, de panamá azul, cachecol cinzento, bem vestido. Chega ao balcão e lê o meu identificador, primeiro o nome, depois o nome e apelido. Boa, pensei eu, sabes ler. “Diga-me lá se tem aí uns calendários!”. E eu apontei-lhe os calendários de parede o que obviamente não lhe agradou: “Não jovem, eu quero daqueles que se dobram e ficam tipo pirâmide na mesa!”. Eu expliquei que não tínhamos, que tentasse a Papelaria Fernandes. E quando pensava que a conversa tinha ficado por ali, ele encosta-se ao balcão e aproxima-se de mim e diz, em voz baixa: “Oh jovem, então e gajas boas? Assim boas, gajas nuas, tem?”. E eu às vezes cometo a falácia de dizer que já vi tudo, que nada me surpreende. Eu não respondi e ele continuou: “Assim calendários de gajas boas, mostre-me lá onde tem isso escondido!”. Eu expliquei que todos os calendários que tínhamos estavam expostos e fui lá mostrá-los. Ele começou a ver o calendário enquanto dizia: “Aqui não há gajas, quem compra isto é só bichas, só bichas!”. E depois foi-se embora.
Há clientes, repito mais uma vez, que não têm noção do ridículo a que se prestam em público. Veja-se o caso do senhor que maltrata constantemente a sua esposa, sempre que esta lhe propõe um livro para oferecer. Quando ela lhe propõe o livro sobre D. Sebastião ele explode e diz: “ACHAS MESMO MULHER?! ESSE GAJO! ESSE GAJO ESPANHOL É FACCIOSO E DIZ QUE OS ESPANHÓIS É QUE SÃO BONS E QUE ELES SAIRAM DE PORTUGAL PORQUE QUISERAM E QUE OS PORTUGUESES SÃO TODOS DOIDOS!”. Olhando para ele concordo na parte dos portugueses doidos.
E depois temos clientes que têm ideias que pensam que iam ajudar ao melhor funcionamento da loja. Uma senhora sugeriu que, já que distribuímos um catálogo de Natal, os livros do catálogo deviam estar numerados e assim os clientes, para poupar o trabalho de dizer um nome composto por umas ou duas palavras, apenas diziam o número. Tipo restaurante chinês. Isso facilmente daria azo a uma pessoa pedir o número do Saramago e receber um Pato com Ananás.
Um conselho: se não sabem, não inventem. Não finjam que sabem. Dá mau aspecto. Um cliente queria livros de ficção científica. Primeiro disse-me que não gostava muito de FC porque achava aquilo complicado para ler. Estranho, mas não comentei. Então lá lhe indiquei a secção da FC e ele lá ficou a ver os livros. Quando volta, traz o livro “O Carteiro De Pablo Neruda”, de António Skarmeta. Pousa o livro no balcão e diz: “Eu já li este livro e gostei muito. Não sabia era que era de ficção científica!”. Eu expliquei que o livro estava lá ao pé, em baixo, porque alguém o deixou lá. E que não era FC. Tudo bem que alguém que não conhecesse podia ver lá o livro e até pensar (apesar do título, sinopse e capa nada indicarem) que podia tratar-se de FC. Obviamente que ele não leu o livro, senão nunca diria que não sabia que era FC. Se bem que a ideia é interessante, imagino um carteiro inter galáctico, numa super nave a destruir alienígenas enquanto levava os poemas de Neruda. Ou melhor, destruía os alienígenas enquanto declamava Neruda.
Depois temos os problemas com o cartão de cliente cujo supra-sumo é a senhora que não se lembra do cartão, não se lembra se perdeu o cartão (o que é uma noção gira para debater, o não se lembrar se perdeu) e melhor não se lembra que nome deixou no cartão (geralmente é o primeiro e último, mas isso são as pessoas normais). Então pediu um cartão novo. O meu conselho: esqueça o cartão novo e vá ao médico, porque essa memória já teve certamente melhores dias.
E há clientes que teimam em inovar. “Bom dia, tem biologias de atletas famosos?” O que há a dizer numa situação destas? Temos ali a perna do Lance Armstrong, o pulso do Valentino Rossi e o pé do Liedson (gostávamos de ter a espinha, mas consta que ele não a tem...). Último conselho: tentem pelo menos acertar no que pedem. Biologias, biografias, não é bem a mesma coisa.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Canta Comigo

Daqui a nada estamos no Natal. Aliás, pelos enfeites e pelas músicas qualquer pessoa acordada de um coma profundo poderia jurar que já estávamos a poucos dias do Natal. Claro que quando soubesse que é Fernando Santos o treinador do SLB, voltaria rapidamente ao coma. E aqui pela livraria, vai tudo na mesma. Pilhas e pilhas de livros a acumularem-se no back Office, mil e uma invenções para conseguirmos arranjar espaço para os livros na loja, é o pandemónio total. E a entrada e saída de pessoas continua, desde o meu último post saiu mais uma pessoa, e entrou hoje outra. É o Benfica dos anos 90, é o que vos digo. Eu gostava de ser o João Pinto, mas o Gulbenkian é mais parecido por causa da farta pelugem.
E os clientes continuam em grande. Uma das características que define alguns clientes é o seu gosto pela música. Por um lado, temos a senhora que não resiste enquanto ouve Smiths aqui na loja. Para além do bater incontrolável do pé, temos um murmurar da letra. E quando a música ganha força, ela não se controla e começa a cantar. Até aqui, tudo bem. O problema, caros amigos, é que quando Morissey canta isto: “A jumped-up pantry boy / Who never knew his place / He said return the rings / He knows so much about these things” a senhora diz: “XAMPAPUMPYPOY / LALA NENE NU IS PEISSSE / AAAHHHH TAAAARNE TO ME / NINOES TOMATCHE ABAUTE TITIEEEES” Lá está. O Morrissey ficaria orgulhoso. Outros clientes que gostam de música são aqueles que vêm pedir informações ou pagar alguma coisa e não tiram os headphones dos ouvidos. O tirar ou não tirar é me indiferente, agora ouvirem música enquanto falam comigo… Dá azo a conversas como:
- O livro está esgotado.
- Ahn?
- Está esgotado. O livro.
- Quê?
- Não está disponível.
- Não ouvi bem.
O que não é nada mal-educado nem irritante. Mas enfim. Eu percebo que deve ser interessante ver me embrulhar ou procurar um livro ao som do Eye Of The Tiger, ou do tema da A-Team. Agora que penso nisso, deve ser bem janota. É que são coisas perigosíssimas e de uma adrenalina extrema.
Mas às vezes os problemas de comunicação não surgem só com clientes agarrados à música. Reparem um caso em que um cliente me pergunta se fazemos descontos a lojistas. Eu disse isto: “Não, porque fizeram umas alterações no nosso sistema informático, o que significa que agora para podermos fazer um desconto temos de inserir o número do cartão (ACP, GGD, etc) que dá esse desconto…”. Resposta dele: “Então, mas faz ou não?”. Eu comecei a frase com Não. Depois dei a justificação desse não. E o cliente ainda ficou na dúvida. Antes clientes fãs de música do que lentos de raciocínio.
E depois temos os clientes que têm características especiais na fala. Por exemplo, o cliente que falava num tom perfeitamente normal, calmíssimo, mas que cada vez que dizia a palavra “samba” saí-lhe algo como “SAMBÁÁÀ!”? “Bom dia, eu gostaria de saber se tem o livro a história do (sobe o tom de voz) SAMBÁÁÁ?”. Disse-lhe que não, mas ele continuou, num tom de voz normal: “Então e diga-me, costuma ter ou esta à espera de receber alguma coisa de (sobe novamente o tom de voz) SAMBÁÁÀ?”. Voltei a dizer que não e ele voltou ao tom normal. “Ah, estou a ver. Mas conhece algum livro de música ou algum autor que foque o tema do (sobe tom de voz) SAMBÁÁÀ?”
A Floribella é um sucesso mundial. Estava eu aqui no balcão descansado quando passam na montra uns senhores a falar uma língua que me pareceu oriunda do médio oriente. Então iam andando e falando, naquela língua altamente imperceptível, quando param, olham para a montra, e um deles diz: “AH… FLORIBELLA!” e continuam a andar e a falar árabe, como se não fosse nada. A Floribella ainda vai acabar com o conflito no médio oriente, só vos digo.
Outro tipo de clientes que eu gosto muito são os que sabem tudo mas ainda assim gpstam de perguntar. Reparem, chega uma senhora junto de mim e diz: “Olhe eu vi na Fátima Lopes ou coisa que o valha uma senhora chamada Maria Helena que é astróloga e disse que ia sair uma agenda dos anjos, é mesmo assim o título, e disse que saía sexta, sabe o que é?” Não sabia, mas passei logo a saber. E a agenda chegou mesmo na sexta. Só que a agenda não se vende, é parte integrante do livro de previsões da dita Maria Helena. E agora reparem como são as fãs da senhora. Uma cliente pegou na agenda e deu-me para pagar, perguntando: “Quanto custa?”. Eu disse que não custava nada, que era oferta do livro de previsões. “Então não quero.”. Ela estava disposta a pagar algum dinheiro só pela agenda. Por esse dinheiro, podia levar a agenda e o livro de previsões, mas não. Se eu tivesse dito que o livro das previsões é que era oferta, ela tinha levado a agenda toda contente. Picuinhas, estas viciadas em astrologia.
As crianças são realmente muito naturais em tudo o que fazem. Até a entrar de bicicleta pela livraria a dentro, ver o que têm a ver, dar meia volta e saírem, como se não fosse nada. Talvez tenha olhado para a farda e pensou que lhe podíamos arranjar gasolina. Inteligentes, os putos.
Bom Natal.

sexta-feira, novembro 17, 2006

A Como é Que Está o Litro?

Devido à grande quantidade de pedidos de algumas pessoas e dois ou três animais (um periquito e dois cães), venho deixar aqui mais uma pequena crónica do mundo dos livros em geral.
Antes de mais devo dizer que a minha ausência foi causada pelo excesso de trabalho daquela livraria infernal. Só temos, assim por alto, o triplo dos livros que deveríamos ter, mas isso é indiferente. Soma-se a isso uma baixa de dois ou três dias e mais entradas e saídas de pessoal do que no Benfica dos anos 90 e aí temos a razão da minha ausência.
Mas, já que voltei, tenho que contar umas coisas. A primeira situação prende-se com o facto de alguns clientes, neste caso uma cliente, fazerem o maior ar de entendido do mundo quando estão a falar dos assuntos sobre os quais não tem o mínimo conhecimento. Reparem, o facto de comprarem um livro sobre algo que desconhecem e querem passar a conhecer é altamente louvável e, seguramente, melhor do que comprarem e fingirem que já conhecem. Então a cliente vem para o balcão, com o seu ar todo entendido diz, do alto da sua sabedoria: "Queria o TÃO da Física, se faz favor." Lá está, não é o Tao da Física que ela quer, é o Tão! Isso do Tao é para o pessoal do Taoismo e tal, o Tão não, o tão é para os cultos. Pensei em recomendar-lhe o Tão da Sexualidade ou o Tão da Gestão, mas era conhecimento a mais...
Depois temos os já famosos grupos de amigas. Quanto mais novas, pior são. É muita hormona, muita excitação, alguém desligue a televisão na hora dos morangos, por favor. Reparem, primeiro foram umas raparigas que queriam livros do Mário de Sá-Carneiro, especialmente "o mais recente, qual é que saiu à pouco tempo?". Custou-me muito, quase tive que pedir ajuda, mas tive de dizer às raparigas que, infelizmente, o Mário de Sá-Carneiro já está morto assim há algumas dezenas de anos. A voz ainda tremeu, mas tinha de ser forte. Enfim, deveres do Livreiro. Relativamente ao outro grupo de amigas, cada uma queria um livro diferente, e iam saltando de trás umas das outras para a frente do balcão, a perguntarem tudo ao mesmo tempo. Pareciam aqueles bonecos que saltam de dentro das caixas, mas menos inteligentes. Depois, para além dos guinchos e dos berros, falavam todas ao mesmo tempo, aparecendo em cima dos ombros umas das outras, eu já estava a sentir alguma claustrofobia. Pior que elas só mesmo os clientes que se apoiam, com cotovelos e tudo, em cima dos livros que temos no balcão.
No extremo oposto do grupo de raparigas doidas, temos as senhoras de idade. Tive a oportunidade única de assistir a um encontro mítico em frente ao balcão. É daqueles momentos em que me apetece ir buscar um banco e um pacote de pipocas e ficar a apreciar o espectáculo. Então as senhoras, a propósito do livro "Os Amores de Salazar", estavam a discutir as várias paixões do mesmo Salazar, porque a prima de uma e a melhor amiga de outra tinham andado metidas com o próprio Salazar. Segundo uma delas, teria sido mesmo a prima dela que lhe tinha dado cabo da cabeça. E eu a pensar que tinha sido uma cadeira. Não devia ter faltado tanto a história. Depois tive o prazer de conhecer um sócio do ACP, casado com uma delas, que tinha o número de sócio abaixo do 100! Incrível. Consta que é sócio desde o tempo em que o ACP tratava de carroças.
Outra bela novidade é a chegada das fardas para os colaboradores da Livraria. Muito bonitas, são assim duma cor entre um bege e um castanho, com uma gola à Jorge Jesus, do tempo do Felgueiras, ou ainda à Eurico Gomes. Penso, aliás, tenho a certeza, que já vomitei coisas com melhor aspecto, cor e mesmo textura que aquela farda. Depois com a farda veio um pequeno manual que tivemos de assinar, tendo em conta o bom funcionamento da mesma. Não se pode fazer alterações. O que é pena porque estava a pensar em bordar um símbolo do SLB e por o número 21 nas costas, mas assim já não posso. Ai está outra boa comparação, é tão feia como o equipamento secundário do SLB. Depois, nem sequer é permitido dobrar as mangas. A única coisa que se pode usar por cima é o identificador. O meu fio de ouro com a minha foto vai ter de ficar para dentro, e o Gulbenkian vai ter de por os pêlos para dentro também. Também dizem que se tem de ter uma camisola suplente na loja. É compreensível, pois o Santo passa a vida a babar-se, ele não pode andar sem uma muda de roupa. É uma medida que se aplaude. Sinceramente, e sem menosprezar os trabalhadores da Galp pelo pais fora, parecemos uns trabalhadores de bomba de gasolina. Quando chega um cliente ao balcão não sei bem se hei de perguntar que livro quer ou se é para atestar.
Um bem-haja para todos os que pedem para eu escrever. E para todos os que precisam de gasolina. Aos que precisam de livros, comprem online. Até à próxima!

domingo, outubro 22, 2006

A Livraria No Centro Do Mundo

Esta loja vai sentir a falta do Mestre, esse mito da matemática moderna. Nem que seja só pelo facto de ele ser, na sua essência, um íman de clientes bizarros. Veja-se o caso da cliente que, quando se aproxima do balcão, a primeira coisa que diz é “Posso mandar uma SMS?”. Eu e o Mestre olhámos incrédulos um para o outro, perante tão invulgar pedido. A senhora continuou: “É que eu perdi-me do meu marido e queria mandar-lhe uma SMS a dizer para ir ter comigo ao carro…”. Explicámos que não tínhamos maneira de enviar uma SMS, mas que se quisesse ligar do nosso telefone, estaria à vontade. Lá pegou no telefone, ligou ao marido, que não estranhou o facto de a mulher estar a ligar dum número estranho. E lá seguiu, toda contente. O episódio em si encerra pouca importância. Agora, porquê sempre na livraria? Porquê aqui? Há centenas de lojas aqui à volta. Porque é que ligam sempre para nós quando querem saber se o Continente está aberto, se há sapatarias e se vendem todo o tipo de marcas ou anda se sabemos o telefone de alguma loja em especial? Porquê nós? Depois admiram-se que eu seja um solipsista confesso…
Há famílias manifestamente estranhas. Reparem no caso da mãe que vem com dois filhos para a livraria. Enquanto ela e a filha mais velha estão descansadas no balcão a tratar dos seus assuntos, o filho mais novo anda para a frente e para trás na loja, com um livro qualquer na mão, de braços esticados para a frente, enquanto soltava um som que é particularmente difícil de descrever. Seria qualquer coisa como um HHHHHMMMMMMMMMMMMMMM gutural, tipo o som de um zombie, mas bastante mais prolongado e mais alto. E então lá andava ele, HMMMMM para um lado, HMMMM para o outro, parecia que vivia num sofrimento imenso. Sempre que se cruzava com outra criança eu temia que ele dissesse “Brains…” e tentasse mordiscar o frágil crânio da outra criança. Depois, cada vez que passava por trás da mãe, esta dava-lhe, vou tentar dizer isto de uma forma educada e suave, uma carga de porrada. Basicamente era isto. E o petiz lá continuava, completamente zombificado, a andar para trás e para a frente, sem proferir qualquer palavra, apenas a gemer como se não houvesse amanhã. E pelo tamanho da mão e da violência da mãe, talvez não houvesse mesmo.
Há casos de clientes que frequentam muito a loja, quase diariamente, mas nunca levam nada. Pelo menos de forma oficial, entenda-se. Os erros de stock têm que surgir de algum lado. E num destes últimos dias, enquanto partilhava o espaço com o grande Gulbenkian (o que já se sabe que é propício a acontecimentos de índole estranha e inacreditável), um desses clientes que nunca compra (aliás, o maior mito desse tipo de clientes) aproximou-se do balcão para comprar. Um livro. Com dinheiro. Eu e o Gulbenkian aguardámos aquele momento com uma enorme ansiedade. O cliente aproximou-se e o Gulbenkian, mais rápido do que a própria sombra, lança um sonoro e bem disposto “Bom dia!” na direcção do cliente. Só que este desviou-se do bom dia, e respondeu com um cantarolar, assim uma espécie de zumbido de vários tons. Meu Deus, pensei eu, sempre julguei que o cliente cantante fosse um mito, como o mito do cliente bem disposto e simpático ou da cliente divorciada de 43 anos que tem problemas afectivos e corpo de 23 anos (mito que agrada, e de que maneira, ao colega Santo). Mas não, era real, ele estava ali, perante nós, a cantarolar. Pagou e em seguida foi-se embora, e nós ficámos a apreciar o momento histórico. Em seguida, nas nossas habituais discussões filosóficas (que abrangem tudo desde o existencialismo, passando pelos mais variados problemas económicos e sociais, bem como pela inclusão de Hilário no onze titular do Chelsea frente ao Barcelona), discutimos o que fariam aqueles clientes que se deslocam diariamente à loja e nada levam. O argumento do Gulbenkian deixou-me logo sem palavras. Ele, um proficiente estudante de filosofia, um verdadeiro humanista, preparou-se para dar a sua visão do assunto e eu, mero aprendiz, esperava ansiosamente pela sua sabedoria. “Secalhar são indecisos”, disse, sabiamente. E calou-se. Que domínio da condição humana, das razões psicológicas e sociais que levam pobres almas a visitar uma livraria diariamente sem nada comprarem. Obrigado, Gulbenkian, obrigado…É que além de aprender sobre a vida em geral, ainda aprendo línguas, como o espanhol. Foi uma honra ver o Gulbenkian dizer a uma cliente espanhola, quando esta estava com dificuldades no multibanco: “Por EL código, por EL código”. É o maior.

domingo, outubro 08, 2006

Sem Opinião

Isto de ser Livreiro tem que se lhe diga. Eu saio daqui homem, saio daqui preparado para a vida. O que é de espantar, tendo em conta que quando aqui entrei chamava-me Francisca Manuela. Reparem, muitas vezes estou eu descansado no balcão quando chegam clientes que dizem, com o ar mais desesperado do mundo, coisas como “Preciso de ajuda!”, “Estou perdida!” ou ainda “Pode ajudar-me?”. As frases, por si só, dizem pouco, mas o ar de desespero que as pessoas ostentam é algo digno de registo. Eu já disse uma vez, depois dessas frases espero sempre que digam que o seu filho foi raptado e eu tenho de o salvar ou algo do género. Mas não, geralmente querem, imagine-se, livros. É altamente enfadonho. Mas eu estou aqui para ajudar. Posso não saber onde está o Orgulho e Preconceito mas raios me partam se eu não salvo alguém das chamas. Um conselho, Sr. Sócrates, ponha uns livreiros no meio da floresta. Além de ajudarem nos fogos ainda podem orientar as pessoas perdidas.
Às vezes penso que a minha mente está a pregar-me partidas, de tal forma é surreal o cenário com que me deparo. Estava a atender uma cliente, concentrado no meu trabalho, vejo pelo canto do olho um vulto a ver livros na prateleira superior sem qualquer dificuldade. Fiquei espantado por ver alguém tão alto, especialmente por se tratar de uma senhora. Claro que quando olhei a segunda vez reparei que ela estava em cima da estante. Desviou os livros para o lado e para o chão e subiu para cima da estante. É tudo dela, basicamente. É sempre engraçado quando os clientes deixam a sua marca, mas uma pegada é ir longe demais amiga. Ela estava a ver os livros de esoterismo, se calhar queria chegar ao céu.
Por falar em esoterismo, uma cliente habitual, habitualmente chata, lá foi para a sua busca diária de livros esotéricos. De repente, começa a gritar: “ALGUÉM ME PODE AJUDAR?! ALGUÉM?!”. O meu colega Mestre (que, infelizmente, já partiu, e aproveito para desejar a melhor sorte no seu curso de matemática) dirigiu-se até lá, pensando que talvez a senhora estivesse a ser sugada por algum vortex para uma dimensão paralela. É comum na zona do esoterismo. Mas não. Ela apenas queria um livro da prateleira mais alta. É caso para berrar como se estivesse a morrer. O meu colega lá lhe deu o livro e voltou para o balcão. Eu tinha a sensação de que aquilo não ia ficar por ali. E não ficou. Ela volta a berrar, volta a chamar o meu colega. E qual era o seu problema desta vez? A senhora estava muito incomodada porque, e passo a citar, “Como é que é possível ver alguma coisa nesta prateleira? É que uns livros estão assim”, e aponta para a esquerda, “e outros estão assim” e aponta para a direita. As edições brasileiras por vezes têm, na lombada, a direcção da letra contrária à das edições portuguesas. A senhora estava profundamente indignada e altamente confusa. O mundo dela parecia estar prestes a desabar. Eu, aqui ao longe, observava atentamente o desenrolar da conversa. A senhora continuava a falar vigorosamente enquanto apontava ora para a esquerda ora para a direita. Lá veio para o balcão e pediu para embrulhar o livro, algo que fiz de forma irrepreensível. Mas a senhora não ficou contente. Veio com o temível pedido do laço, algo que tive de recusar porque simplesmente não temos. Ela ficou furiosa, e tentei explicar-lhe que o facto de termos ou não laço não depende de nós, meros livreiros. Eu apenas embrulho com o material que me dão. Ela ficou altamente irada e disse: “NÃO TEM LAÇO?” eu voltei a responder que não e diz ela: “E NÃO TEM OPINIÃO?”. Não, opinião não tenho, está esgotada no editor. Apesar de não ser pago para ter opinião, obviamente que tenho opinão. Até tenho opiniões a mais. Veja-se este blog. Mas a importância da minha opinião, tanto para o cliente como para a entidade empregadora anda assim a roçar o nulo. Mas pronto. Limitei-me a não responder e ela lá seguiu, furiosa. Não convém enervar uma cliente que não pára de comprar livros de esoterismo. A esta hora já tem um boneco de voodoo da minha pessoa.
Antes de partir, queria deixar aqui uma mensagem para os informáticos que fazem as bases de dados das livrarias. Além da pesquisa por tema, título, editora ou ISBN, sugiro que ponham um campo de pesquisa denominado COR. Isto porque, em 40% dos casos, o único dado que as pessoas sabem dar de um livro é a cor. Já foquei aqui várias vezes a problemática da cor amarela nos livros (algo que daria uma bela tese). Ainda hoje, uma cliente disse que não sabia quem era o autor ou qual era o título do livro, mas que era “assim a atirar para o roxo”. Com dados desta precisão só mesmo um livreiro de baixa qualidade é que não o localizam. O que foi, obviamente, o meu caso.

domingo, setembro 24, 2006

Mitos

Antes de passar à habitual e fastidiosa descrição dos mui extraordinários acontecimentos desta livraria do Portugal recôndito, tenho de dar (com um considerável atraso) os meus parabéns à Noiva de Portugal, que, por estas alturas, já é a Esposa de Portugal. É com agrado que vemos a Esposa de Portugal juntar-se ao clube dos casados. Consta que agora espalha o seu poder livreiro numa pequena arena desse Portugal (há rumores que dão conta que ela até já vende bilhetes de espectáculos, um tabu aqui nesta livraria) e que já usa bandarilhas como ninguém. Boa sorte e felicidades para os projectos futuros. E nada de sujar a carpete da loja.
Não há nada melhor do que começar a manhã, depois de uma chuvada torrencial e de filas intermináveis na Marginal, com uma torrente de insultos, queixas e reclamações de um cliente, por telefone. É bom, dizem que tem L-Casei qualquer coisa, e depois do telefonema sinto-me logo preparado para o resto do dia. Então o senhor, um suposto escritor, de longas barbas brancas e roupa do século XIX, ligou, exasperado, porque, às 10 horas e 20 minutos, ainda não lhe tínhamos ligado a avisar que o livro que tinha encomendado já tinha chegado. Ora, a loja tinha aberto à 20 minutos, era manifestamente cedo para este tipo de coisas. Claro que o facto de o livro vir directamente pelo vendedor, num favor especial para o nosso gerente (escapando assim a um mar de burocracia e tempo perdido), e de ter sido dito claramente ao cliente que poderia passar na livraria depois das 14, era completamente indiferente. Era às 10 e 20 que queria o livro, porque tinha que entregá-lo à hora de almoço. Como não tinha qualquer conhecimento do estado desta encomenda, pedi um segundo ao cliente e comecei a pesquisar na base de dados, para verificar se o dito livro tinha chegado. De repente, sem nada o fazer prever o cliente diz, irritado: “VOCÊ ESTÀ A VER NO COMPUTADOR?!”. Eu, incrédulo, olhei em volta a ver se localizava alguma câmara por onde pudesse estar a ser observado. Não posso com estes clientes omniscientes, já aquele habitual, Deus, é a mesma coisa. Com ele não erros de stock nem livros perdidos. “NÃO USE O COMPUTADOR, OBVIAMENTE QUE NÃO VAI ESTAR NO COMPUTADOR!”. Se calhar ele estava a referir-se a estar no computador fisicamente. Isso já era improvável. Atenção, improvável, não impossível. Já vi muita coisa por aqui…. Obviamente que se o livro já tivesse chegado já estaria na base de dados, foi o que expliquei ao cliente, e obtive a seguinte resposta: “SE ELE CHEGOU AGORA COMO É QUE PODE ESTAR NO COMPUTADOR?! NÃO SEI SE VEIO DA EDITORA OU DE UMA DELEGAÇÂO VOSSA, MAS NO COMPUTADOR NÃO ESTÁ CERTAMENTE!”. Tentei explicar ao cliente que assim que ele chegasse, nós ligaríamos a avisar. Mas foi basicamente o mesmo do que tentar explicar a um cão para não saltar à espinha da Tia Dolores quando esta passa lá em casa por ocasião do Natal. Voltaram os berros: “QUE INCOMPETENCIA! NÃO SE PODE DEPENDER DA EMPRESA, ÍNCOMPETENTES! SE SOUBESSE TINHA IDO EU A LISBOA!”. Lá está, o insulto fácil. Logo pela manhã. Disse ao cliente que o melhor, em situações de urgência, é o cliente ir mesmo à loja de origem, para não estar dependente de editores, estafetas, correios e livreiros em geral. São vários elos, é mais provável que algo corra mal. A reacção não se fez esperar: “QUE INFELICIDADE! QUE DECLARAÇÃO INFELIZ! AGORA É QUE DISSE TUDO, NÃO POSSO CONFIAR NA VOSSA INCOMPETENCIA!”. Sou, portanto, um infeliz, para além de ser responsável por diversas pessoas e entidades. Foi nesta altura que me despedi cordialmente, dizendo que assim que o livro chegasse nós o contactaríamos, para evitar quer tivesse de desejar ao senhor duras e longas sevícias ao som de Luís Represas. Gostei especialmente da parte em que ele mentia com todos (os quatro ou cinco) dentes que tem, quando dizia que lhe prometeram que o livro chegava de manhã, quando o próprio gerente lhe afiançou que a partir das 14 poderia vir buscar o livro, que, pasme-se chegou por volta das 11 tendo o cliente passado na loja por volta das 12. É sempre bom recebermos reclamações antes mesmo de as coisas correrem mal.
Por cada cliente mau há outro cliente mau. E de vez em quando há um bom. Ou menos mau, bom é raro. Estava acompanhado do Mestre (que nos abandonará em breve) no balcão, quando chega um cliente, envergando orgulhosamente uma camisola de treino do Benfica, do tempo do Camacho, que pergunta por enciclopédias automóveis. O Mestre indicou-lhe prontamente o local dos livros sobre automóveis, mas o cliente não se moveu: “Pois, esses eu já vi, e eu já tenho, mas é que esses livros têm dois ou três anos. Já saíram muitos modelos.” Eu e o mestre concordámos, como bons livreiros que somos, e reiterámos que eram mesmo só aqueles que tínhamos. “Eu queria assim um tipo enciclopédia, prontos, é que já saíram mais modelos nos últimos três anos.” Estava quase no ponto do adormecimento, devido à repetição incessante do pedido do cliente, quando este lança a seguinte pérola: “Prontos, eu quero assim um livro de A a Z, com os modelos desdes 1700 e tal, com os carros a vapor, até hoje em dia, com os carros a gasolina e tal.”. Ah, os famosos carros a vapor do Séc. XVIII. Muita gente pensava que isso era um mito, mas não. Tenho mesmo de arranjar uma enciclopédia dessas. .

terça-feira, setembro 12, 2006

Fresco e Fofo

Estou, sinceramente, a pensar em mudar o título do Blog. Estava eu perto do balcão, o Gulbenkian no Back Office e o Mestre algures perdido na loja, de lista na mão, tentando fazer mais uma devolução, quando um senhor, aparentemente insuspeito, se aproxima de mim e me aborda calmamente, com um bom dia praticamente inaudível. Retorqui (como manda a Norma do Bom Livreiro, capítulo III, parágrafo 8, logo a seguir à secção sobre o uso ou não de roupa interior justa e florida) e ele, antes de falar novamente, aproximou-se mais de mim. Ora bem, eu, apesar de não ser propriamente a pessoa mais afável que conhecem, ainda dou uns bons 50-70cm de distancia de tolerância para quando uma pessoa fala comigo. Ora, este senhor, aproximou-se perigosamente dos 20cm, deixando-me, naturalmente, perturbado. Mas, nada me poderia preparar para o que vinha a seguir: “Tem aí daqueles livros de higiene, pronto, higiene, pronto, higiene da vagina, assim da mulher”. Ponto número 1: quando um cliente intercala a palavra pronto entre cada frase é caso para nos preocuparmos. Ponto número 2: Ainda bem que é da vagina da mulher. Se fosse de outro ser qualquer seria bastante pior. Eu perguntei, incrédulo, “higiene da mulher?”, ao que ele respondeu, ainda a falar mais baixo: “Sim, pronto, quer-se dizer, higiene da vagina da mulher, assim para fazer uns servicinhos, o habitual”. Servicinhos? Secalhar ia abrir um bordel. Habitual? Lamento desiludi-lo, mas nada do que o senhor diz é habitual. Indiquei-lhe a zona da saúde feminina, sem saber bem o que fazer. Não conheço nenhum livro que fosse de encontro ao que ele desejava, especialmente porque o livro “Como Manter a Passarinha Jeitosa e Afins” estava esgotado. Um quarto de hora mais tarde, encontrei-o a ver um livro da Paula Bobone. Pode ser que, com boas maneiras, ninguém repare no cheiro. Sendo assim, depois destes últimos episódios, estou a pensar em mudar o título do blog para “O Ginecologista”. Parece-me apropriado.
Há clientes chatos. Não há outra forma de dizer, e peço desculpa se estou a ofender alguém. Imaginem: estou eu a tentar aturar um cliente obcecado por esoterismos e dietas fantasmas (é mesmo o termo técnico, porque ninguém as vê) quando uma cliente, que estava a ver livros de culinária a um metro de nós, ouve a conversa. O cliente dizia-me que queria livros técnicos de nutrição e NÃO de dietas. A cliente aparentemente só ouviu a parte das dietas, então, para espanto de todos, enquanto ia procurando livros para ela, ia interrompendo a minha conversa com o cliente, dizendo: “Tem aqui um livro de dietas. Tem aqui mais um livro de dietas. Tem aqui ainda outro livro de dietas” enquanto ia atirando os livros para junto de nós. Isto era especialmente querido da parte dela, especialmente porque ela fazia isto cada vez que eu dizia: “Não, não temos nada” ela respondia com um “Olhe que tem aqui mais um livro de dietas” e atirava-o para junto de nós. Se quisesse ajuda contratava um macaco.
Hoje de manhã atendi um casal na casa dos 60 anos. Era muito divertido. Ela era irritante. Ele berrava com ela. Ela ficava mais irritante. Ele batia-lhe e mandava-a calar e ir se embora. O amor é lindo naquelas idades. Queriam livros sobre Portugal, em Inglês. Dei-lhes duas alternativas. Um livro de 16€ e um de 35€. Começaram por ver o de 35€. Acharam muito melhor. Texto, fotos, tudo melhor. “Uma classe!” disse ela. “Está calada porra!” disse ele. Depois viram o de 16€. Acharam fraquinho. Depois perguntaram os preços. E, miraculosamente, o de 16€ ganhou uma qualidade brutal num espaço de 1 minuto: “Ah sim, pois, este de 16€, realmente, é de classe, tem qualidade, e tem pouco texto, eles também não querem ler aquela chacha do que é ser português!” ao que o marido respondeu: “Cala-te porra!” e bateu-lhe mais uma vez. Depois tentámos fazer uma transacção comercial normal, mas era complicado, porque cada vez que eu falava, o cliente não ouvia bem, a mulher repetia, e ele batia-lhe e mandava-a embora. E ela ria. Levaram quatro exemplares, para mandar para os Estados Unidos. O acto do pagamento foi complicado. Ele queria usar o Visa. Ela queria que ele usasse o cartão Multibanco. Mandou a logo dar uma volta, acompanhando a frase simpática com um doce cachaço no braço. E ela riu-se. O pior de tudo (e, consequentemente, o mais engraçado) é que eles voltaram atrás para comprar outro livro e fizeram o mesmo circo novamente.
Quando é que tenho férias outra vez?

terça-feira, agosto 29, 2006

Peito de Cristo!

De regresso ao trabalho, tenho passado a maior parte do tempo na companhia do Mestre. E, para minha infelicidade, tenho reparado que ele é o maior iman de personagens que existe à face da terra. E eu pensava que só aconteciam coisas estranhas quando estava com o Gulbenkian no balcão... Numa manhã que passou, estávamos os dois no balcão, cada um ocupado no seu posto de trabalho quando um senhor chega perto do balcão, pára perto dele e diz: "Tem o livro... VAGINA?". O Mestre, reconhecido conhecedor da intimidade feminina, prontamente corrigiu o cliente, dizendo-lhe que o livro que procurava seria, provavelmente, "A História de V" das Edições ASA. "VAGINA, o livro chama-se VAGINA, é o que quero", respondeu o cliente e mal o Mestre tentou explicar-lhe que não temos um livro com esse título, o cliente diz imediatamente: "VAGINA.". Simplesmente "VAGINA.". Lá foi o Mestre levar o cliente até ao livro, que, obviamente, era o livro que ele tinha sugerido. "VAGINA." e foi-se embora.
Geralmente, quando partilhamos o balcão, esse espaço sagrado da loja, o Mestre fica encarregue da caixa, e eu, na mais pura inutilidade, apenas sirvo para abrir os sacos para que ele coloque lá os livros. Foi numa dessas ocasiões que um cliente, munido daquele magnífico sentido de humor que os clientes normalmente têm, diz: "Ena... É 2 em 1". A reacção da plateia foi o silêncio total, acompanhado de uma expressão de pesar profundo. Somos, como já referi, um público díficil.
Num daqueles períodos em que me encontrava sozinho na loja entrou um padre, que prontamente se dirigiu à zona dos mapas. Procurou, procurou, e, finalmente lá encontrou um mapa que parecia agradar-lhe. Abriu o mapa em cima da mesa dos álbums e ficou ali, durante largos minutos, a estudar o mapa. Eu acho que não temos mapas com o caminho para a salvação, mas eu não sou de fiar. Parece que o mapa estava de acordo com as rígidas normas católicas (ao que parece nunca tinha praticado um aborto ou feito sexo com preservativo) e o Sr. Padre trouxe-o até ao balcão para pagar. Pensei em fazer-lhe uma ou duas perguntas, mas tinha medo que ele me condenasse à eternidade no inferno. E eu teria que lhe dizer oh Sr. Padre, mas eu já trabalho numa livraria num centro comercial. Ele provavelmente choraria e absolviria-me de todos os meus pecados.
Já no Domingo de manhã, esse dia sagrado das personagens, num dos dias mais parados do ano, estava o Mestre a tentar resolver a questão dos pedidos de cliente e eu a beber Coca-Cola à porta do back-office, quando ouço, vindo da porta: "OH JOVEM! OH, JOVEM!". Se há coisa que eu aprendi, e que deveria ser ensinado a qualquer pessoa que trabalhe no atendimento ao público, é que se aparecer alguém à porta a gritar "OH JOVEM!" repetidamente é mau sinal. Fica o aviso. Bom, pousei a Coca-Cola e fiquei a ver o que se iria passar. O cliente, se assim se pode chamar, tinha um blazer azul, óculos fundo de garrafa, trazia uma pasta na mão esquerda e um cartão identificador no lado direito do blazer, escrito à mão. Ele entrou na loja e já vinha a falar desde lá de fora. Devo vos dizer que os primeiros dois minutos de conversa dele, a única coisa que conseguimos entender foi "livros medicinais", "gasto mil contos em livros", "plantas medicinais" e "oh jovem". O cliente tinha a voz completamente anasalada, dando toda uma nova dimensão à palavra "fanhoso". Já estávamos a achar aquilo altamente estranho, quando ele começa a dizer: "Eu sou o Dr. Astrólogo! Está aqui, está aqui!" e aponta para o identificador, escrito à mão, onde dizia, lá está, Dr. Astrólogo. "Mas você também é astrólogo, e o seu colega também! Você é astrólogo!" apontando para o Mestre. O Mestre é reverenciado por várias personagens ligadas ao sobrenatural e oculto, por isso eu não estava nada surpreendido. Mas o cliente continuou: "Eu sou astrólogo, quer ver?" e eu ai tive medo. Olha se ele diz que o Sporting ia ser campeão este ano? Eu entrava em coma já ali. Mas não. Foi muito pior. "Tem Bíblias? Mas eu quero Bíblias cristãs, nada de Bíblias de Jeovás!" e enquanto diz isto, põe a mão sobre o baixo ventre e encolhe a barriga de uma forma quase desumana para dentro, salientando brutalmente a caixa toráxica. "Sou astrólogo, está a ver? PEITO DE CRISTO! PEITO DE CRISTO ESTÁ A VER?!" dizia ele enquanto apontava para o ventre e caixa toráxica. "PEITO DE CRISTO!" repetia, enquanto o Mestre tentava a todo o custo tentar perceber em que dimensão é que ele se encontrava e eu basicamente tentava concentrar-me para não rir. Se estivesse com o Gulbenkian, a esta altura ja estávamos a rebolar a rir. O cliente continuou: "Este é o PEITO DE CRISTO! e você é o S. PEDRO!!!" diz ele, apontando para o Mestre. S. Pedro... Nada mau. Eu já estava ansioso por saber quem eu era. Ele não disse nada. Não tenho pinta de apóstolo. "Sou astrólogo e é por saber certas coisas e por não acreditar na igreja que eles dizem que sou maluco. É por isso que estou num sanatório!". A esta altura já ele nem queria saber de livros de plantas medicinais nem nada que se pareça. Depois, sem parar a conversa do sanatório, dirigiu-se para fora da loja, sempre a falar e a gesticular, enquanto desaparecia no horizonte. Peito de Cristo... O mais curioso é que até se assemelhava à cena da crucificação. Nunca mais vamos ser os mesmos. Até porque sempre que chover vou culpar o Mestre por isso.

segunda-feira, julho 31, 2006

Anomalias

E eis que sem qualquer tipo de aviso encontro-me novamente de férias. E tudo graças ao nosso filantropo preferido, o verdadeiro senhor da escrita indecifrável, Gulbenkian. O grande Gulbenkian trocou as férias comigo, para eu poder passar as férias em família. Este homem é um senhor, este homem é um mister. Ele ajuda sempre que pode. Vejam este exemplo que eu creio ser paradigmático da sua boa vontade. Uma personagem que tem uma biografia recentemente editada (vou só dizer que o nome começa em L e acaba em S e tem as letras ili Caneça dispostas de forma perfeitamente aleatória no meio) foi, como já é hábito, dar uma espreitadela à livraria para ver se o seu livro estaria a vender bem. Ora, desde o primeiro minuto, Gulbenkian, sempre zeloso, achou que o livro representava um desperdício de espaço na loja. Então, à primeira oportunidade, despachou o livro para o back office, no sentido de encontrar espaço para a torrente imparável de novidades. É uma prática comum, o livro nem sequer estava a vender. Espantada por não ver nenhum livro, a personagem em causa dirigiu-se ao balcão e perguntou onde parava a sua biografia. Gulbenkian, fingindo que não sabia de nada, perguntou o nome do autor. A personagem ficou ruborizada, como se aquela pergunta , como se fosse um atentado à sua dignidade e fama. Verdade seja dita, ela é apenas a biografada, não é, efectivamente, a autora. Lá surgiu a resposta e Gulbenkian, eficiente como sempre, deu rapidamente com o livro na base de dados. Mas nada podia faser prever o que viria a seguir. Gulbenkian disse à senhora que tínhamos vendido todas as unidades do seu livro. Ela ficou radiante, pensou logo em pedir ao seu editor mais exemplares. Ele desaconselhou-a, explicando que isso seria tratado centralmente. E lá partiu ela, feliz da vida. E lá foi o Gulbenkian, colocar dois ou três livros na área das biografias. O resto continua lá dentro. Mais uma boa acção de Gulbenkian. Um dia o Cosmos que ele tanto maldiz irá compensá-lo por tudo. Já alguns clientes não conseguem conter os seus sentimentos em relação ao livro da senhora. Temos um caso que ilustra bem esta situação. Duas senhoras, perto dos 65 anos de idade, passeavam despreocupadamente pela loja. Ao ver o livro em questão, a senhora pára, olha o cuidadosamente e em seguida levanta-o bem alto, dizendo para a sua amiga: "Já-me vistes bem isto? Olha só o desperdício de árvores que aqui está!". Velhinhas mas acutilantes. Tenho curiosidade em saber o que pensam do livro Arlinda Mestre, a senhora que é jovem e devora a vida, nas palavras dela. Ouvi dizer que a vida é indigesta, secalhar é por isso que ela é assim. Não sei, não sou nutricionista.
Nestas duas semanas vi-me obrigado violentamente a desempenhar funções para as quais não sou nem remunerado nem formado. Numa manhã aparentemente normal, deparo-me com um Multibanco fora de serviço. Tento ver o que se passa, mas surge sempre uma malfadada anomalia, a 4S8. Sem qualquer alternativa, lanço-me ao telefone e ligo para a assistência. Logo atende um homem prestável que parece interessadíssimo em ajudar-nos. O problema surge quando digo que a anomalia é a 4S8. "4S8? Não, não pode ser, isso não existe." Verifiquei, voltei a verificar, pedi a opinião de Mestre, o nosso colega matemático, perito em números, e ele confirmou. Aquilo, meus amigos, era um S. "Não pode ser! Não será 440?". 4-S-8, disse eu. Quanto muito seria 458, disse, mas 440 nunca. "Não, não pode ser". Depois de muita insistência, lá conseguiu perceber que a ideia era mesmo ir lá alguém à loja, e aí logo veriam o que seria. "Então vou mandar aí alguém, a anomalia é a 440 não é? Ah, 4-S-8. Pois, pois, então eu mando um técnico, para arranjar a anomalia 460. Ah, sim, sim 4S8, pois." Eu acho que ele estava a tentar hipnotizar-me por telefone ou coisa que o valha: "Não há qualquer anomalia...". Depois demonstrou o seu domínio da língua portuguesa: "Sim, bem, em 24 horas geralmente temos a resolu... A resolvi... A relosu... Pronto, isso resolve-se." Nem mais, quem fala assim não é gago! Agora, de férias, não vou estar lá quando o problema for resolvido. Há que ressalvar o facto de passado 72 horas o problema ainda persistir. Secalhar o 4-S-8 é uma anomalia tramada. "Olhe, é da assistência? É só para dizer que temos uma anomalia, o 4S8. O quê, o terminal vai autodestruir-se dentro de 5 minutos? Ah ok, está bem então." O nosso terminal é tramado, inventa anomalias.
Boas férias!

segunda-feira, julho 24, 2006

Boas Acções

Num regresso de férias que não pode ser considerado algo menor que heróico, volto para deparar-me com as adversidades e incidências rocambolescas do costume. Está tudo na mesma, basicamente. Tenho entrado 30 minutos antes da loja abrir, para tratar dos mais variados assuntos burocráticos, nomeadamente a “verificação do meu e-mail”, o protocolar “deixa lá ver o que diz A Bola hoje” e o administrativamente entediante “que CDs novos é que há aí para comprar”. Bom, é um trabalho árduo, tenho de admitir.
O problema é que, para além dos aromáticos entregadores de mercadoria, surgem alguns telefonemas que atrasam o bom funcionamento da livraria. Hoje, por exemplo, ainda faltavam 20 minutos para a loja abrir quando liga uma senhora que queria um livro de Virgílio Ferreira. Livro esse que, para não variar, encontrava se esgotado. Depois de recuperar da desilusão causada pela não disponibilidade do seu livro, a cliente diz o seguinte: “Olhe, e podia dar-me só uma informação…”. Pensei logo que queria saber o Continente estava aberto ou qualquer uma das outras perguntas do costume, mas não: “Olhe, por acaso conhece, ou sabe se está aberta, uma loja chamada FNAC, F-N-A-C, FNAC, conhece? Acho que também vende livros…”. Não amiga, eles vendem enchidos e dos bons, aquilo é qualidade… Depois quis o telefone da FNAC, e eu, num esforço desesperado para me soltar das suas amarras, dei-o de bom grado. Fiz a minha boa acção do dia...
Já diversas vezes mencionei aqui toda a problemática que envolve os pedidos de cliente. Verdade seja dita, a minha letra não é famosa. A do Santo também não é das melhores. Mas, a do Gulbenkian bate todos os recordes. A pessoa responsável pelos pedidos (vamos chamar-lhe, para protecção da sua identidade, “Noiva de Portugal”) queixa-se constantemente, e também muitas vezes, com toda a razão, da nossa letra. Nas suas palavras, a nossa “letra é má, mas a do Gulbenkian extravasa o razoável”. O meu problema em particular são os números. Entre quatros e noves, setes e uns, venha o diabo e escolha. Também, não vejo qual é o problema. Vão tentando todos os números até acertarem, as possibilidades não são infinitas. Mas, pelo menos, preencho na totalidade os dados absolutamente necessários para o bom desempenho de quem faz os pedidos. O Gulbenkian, para além da sua letra, também tem graves dificuldades no preenchimento das encomendas. Recentemente, apareceu um papel de encomenda com a letra dele (sem estar datado ou assinado) que dizia apenas México Insight Guide. Sem nome de cliente, sem número de telefone. Prevejo que, brevemente, Gulbenkian comece a deixar pedidos apenas preenchido com a palavra “LIVRO”. Apenas “LIVRO”. Para quê perder tempo com assuntos triviais? O que é a pessoa quer, afinal de contas? Um “LIVRO”, apenas e só um “LIVRO”. O resto a Noiva de Portugal que descubra. Para terem uma melhor noção da dimensão do problema do Gulbenkian, na semana passada, tive de me deslocar juntamente com ele, em mais uma boa acção, à Universidade que frequenta, numa viagem que somente posso apelidar de alucinante, para recuperar um teste de Filosofia. Digamos que o conceito de “redução” aquando de uma travagem é totalmente desconhecido para ele. Sobrevivemos. É o que importa. Gulbenkian, o primeiro filósofo-baixista-voluntário-livreiro-escritor (mas certamente não o último, tenho certeza que ele deixará um vasto legado) do Universo, recebeu, quando se encontrava na praia a vislumbrar a sombra causada pelo seu pêlo corporal na areia, um telefonema da sua professora. Esta disse-lhe que nem soletrando conseguia perceber o que estava lá escrito. Quando vi o exame, dei-lhe toda a razão. Nem o próprio Gulbenkian percebia o que estava lá escrito. E reparem, o homem tinha feito um rascunho antes. Mais valia ter entregado o rascunho. Como é que posso descrever a letra dele? Gostaria de ter um paleógrafo disponível para me ajudar neste caso, porque é deveras complexo. Ora bem, imaginem uma pessoa normal a tentar escrever, com a mão esquerda (no caso de ser dextro) enquanto se deslocava num jipe sobre as dunas, de olhos vendados. É mais ou menos esse o resultado final. Uns hieróglifos imperceptíveis, apenas ao alcance dos predestinados. Consta (e estou a tentar ao máximo trazer provas disso) que, quando Gulbenkian fez os seus hieróglifos naquele teste de filosofia, abriu-se um portal no Egipto, capaz de nos fazer viajar através do espaço e do tempo. É verídico.
Dêem graças a Deus de o blog não ser manuscrito.

sexta-feira, junho 30, 2006

C'est Les Vacances

Entrei de férias ontem, mas senti-me pressionado para vir cá deixar mais uma tese sobre a vida rural dos vendedores de cautelas em Celourico-da-Beira. Mas, como não fui capaz de urdir uma tese com pés e cabeça (o costume, portanto), deixo-vos com mais acontecimentos da livraria.
E se há acontecimento comum é o cliente que se encontra num dos maiores dilemas da humanidade (está actualmente classificado entre a discussão do aborto e da eutanásia) que é o “entro na loja com o carrinho das compras ou deixo-o lá fora, correndo o risco de ficar sem tomates”. Esta situação ameniza-se quando há companhia. Fica alguém a guardar as compras enquanto o outro vai e trata dos seus assuntos da livraria. E, foi mesmo ontem que, enquanto arrumava umas prateleiras na companhia do grande Gulbenkian, esse verdadeiro descende dos filósofos gregos (em pensamento e quantidade de pelo), surgiu um casal à procura do livro que optou pela táctica do “mulher fica com as compras, homem parte em busca do livro”. É uma táctica arrojada, poucas vezes executada. O senhor em causa não tinha muito jeito para encontrar livros, então a senhora, experiente, gritava lá de fora: “ESQUERDA, MAIS PARA CIMA, DIREITA, MAIS, MAIS PARA BAIXO!”. O Gulbenkian, mordaz e oportuno como sempre, disse que pareciam os saudosos Jogos Sem Fronteiras. E tinha toda a razão. Senti-me um verdadeiro Eládio Clímaco. Para mim, aquilo foi uma potente demonstração do primeiro “Marido Telecomandado” do mundo. Fiquei convencido.
Com a chegada do verão aumenta a procura dos guias turísticos e dos mapas. Além do choque que é não termos mapas de Cascais, os clientes arranjam sempre maneira de se queixar de alguma coisa. Ou porque o guia é pequeno, ou porque é grande, ou porque há da Itália mais não há da Toscana ou porque não encontram o guia do Benim ou do Burkina Faso. Mas ninguém bate a senhora que pede um guia de África. Eu digo que não temos, e que nunca recebemos um guia de África, perguntando-lhe em seguida se queria algum país em especial. “Não, quero mesmo de África toda!” responde ela, já meio chateada e eu, sem poder fazer mais nada, volto a dizer que não temos nem vamos ter um guia de África. “Desculpe lá, se tem da Índia ou Alemanha, porque é que não tem de África?” inquiriu ela. Não consegui evitar, tive que lhe indicar o óbvio: “Pois, é que a Índia e Alemanha são países, África é um continente.” E bem grande, por sinal. Depois da senhora deixar passar na sua cara algumas cores entre o vermelho e roxo, soltou fumo das narinas e disse: “OBVIAMENTE QUE EU SEI QUE SÃO PAISES! E SEI QUE AFRICA É UM CONTINENTE! EU SEI A DIFERENÇA! EU SEI!”. Não era para ofende-la, mas ela estava a insistir demasiado. “Então, mas tem ou não tem?” Eu já tinha dito que não várias vezes, mas quem sou eu para dizer uma coisa dessas não é? O que eu digo não se escreve. Voltei a explicar-lhe que não tinha guias relativos a um continente no geral, só a alguns países em particular. Ela ficou furiosa e saiu. Não tive sequer tempo de lhe desejar boa viagem.
Os clientes muitas vezes, apesar de dizermos que não temos um livro, insistem para que consultemos a base de dados. Mas, encontram sempre maneiras curiosas de o fazer. “Não pode ver no seu computadorzinho?”, “Não ver na sua list?a” ou o meu preferido “Pode consultar os seus ficheiros?”. Este último, quando é acompanhado de um ar desconfiado e tom de voz solene, faz me sentir como um agente da PIDE.
O verão é também a época de algumas loucuras. Veja-se o caso de três amigas que estavam a consultar a secção de história. Pareciam ser pessoas normais (o que é difícil, nesta livraria). Até que começam a rir, a rir, a rir. Perdidamente, e aparentemente sem razão. Pelo meio dos risos conseguia ouvir um trémulo “vai dizer ao senhor, vai dizer ao senhor”. Não estava mais ninguém na loja, o “senhor” deveria ser eu. A piada não é isto, não se riam. Bom, finalmente uma delas ganha coragem, e entre o limpar das lágrimas diz: “Desculpe, podia ajudar-me? É que caiu ali uma coisa para trás…”. As outras riam. Eu disse que não havia problema, que, eventualmente, nós apanharíamos o livro que tinha caído. Elas riram ainda mais. “Não está a perceber, foi a minha peça que caiu lá para trás!” E riam as três, perdidamente. Deixou cair a peça dela, portanto? Certamente que era uma peça da cabeça, tal a figura que ela estava a fazer. Sem outra alternativa, lá tive que abandonar o meu posto de trabalho e ir afastar a prateleira. Depois da nuvem de pó dissipar-se, encontrei um caderno caído lá atrás. Entreguei-lhe o caderno. “Obrigado, salvou-me a vida” disse ela. Não quis desiludi-la, mas acho que o que ela tem não tem cura ainda… A minha pergunta é a seguinte: O que é que raio ela estava a fazer para o caderno ir ali parar? Acho que nem elas sabem.
Boas Férias (para quem tem sorte de as ter…).

quarta-feira, junho 28, 2006

Live In Paris

Já não posso ouvir Diana Krall. Imaginem isto: 5 ou 6 horas seguidas, 3 vezes por semana, sempre o mesmo CD. Sempre. Eu já não aguento, torna-se difícil fazer seja o que for com a constante repetição das músicas. De vez em quando surge uma música nova, a aparelhagem carrega outro CD. Surge uma ténue esperança, mas logo logo aparece a Feiticeira, essa paladina da repetição musical, e volta a por o CD da Diana Krall. Como se não bastasse o factor repetição, também tenho que estar constantemente a dizer aos clientes o que está a tocar. Todos os dias alguém pergunta o que está a tocar. E todas as vezes que isso acontece, sinto-me muito tentado a dizer: “Gosta?! Então leve! Já!”, mas, a moral e os bons costumes impedem que faça isso. Mas, ainda há pior. Além da repetição e das perguntas, temos algo infernal, demasiado horrendo para ignorar: o dançar. E se eles dançam. Confesso que a utilização do termo “dançar” pode ser considerada inadequada, mas é um termo familiar para a maior parte das pessoas (veja-se, por exemplo, Jerónimo de Sousa). É vê-los ai, espalhados pela loja, a dançar. Depois de várias horas de estudo, devidamente fundamentado por alguma leitura técnica, consegui dividir os dançarinos em dois grupos distintos. O primeiro grupo, composto maioritariamente por homens, executa um rápido abanar ou bater do pé, sempre fora de ritmo, com ramificações ao nível do estalar do dedo ou abanar da cabeça. Basicamente parece que estão com espasmos. Eles tentam cantarolar alguma coisa, mas o som que emitem é altamente imperceptível. Geralmente encontram-se nos cantos da loja, soltando pequenos espasmos e tiques ao que eles julgam ser o ritmo da música. Usam calças beges e camisas lisas. O cabelo é geralmente grisalho. O segundo grupo é composto maioritariamente por mulheres, e a dança é mais ao nível da coxa (como movimentos para trás e para a frente) e do joelho (movimentos para a esquerda e para a direita). O abanar de anca é por vezes de tal forma que, se mascassem pastilha, fariam boa figura nas movimentadas noites do parque Eduardo VII. Geralmente encontram-se nas esquinas da loja, entre as gôndolas. Relativamente ao grupo maioritário, infelizmente não tenho em minha posse dados estatísticos e correspondentes gráficos, mas, com base nas minhas investigações, diria que o grupo dominante é o grupo que abana a anca. Sei que posso vir a ser condenado pelos mais variados quadrantes da comunidade cientifica por uma observação ousada e inovadora como esta, mas é assim que penso. Ontem temi pela vida. Do meio do nada, um dos adeptos do espasmo foi se deslocando ao longo da loja, na direcção de uma abanadora de anca. Bom, meus amigos, senti-me como se fosse um explorador a observar o acasalamento entre dois Pandas. Decidi afastar-me e manter me em silêncio. Não queria perturbar o momento. Foi fascinante. Olharam um para o outro, reflectiram-se sobre o ridículo da figura que observavam, o que levou a reparem no ridículo da sua própria figura. O senhor limpou a garganta e saiu da loja embaraçado. A senhora ajeitou o cabelo e isolou-se num canto a contar uns livros. A Diana Krall continuou a cantar, e eu, infeliz, imaginava a tampa do piano a cair sobre os dedos de uma canadiana (e não americana, como alguns incultos para aí apregoam...) loura…
No nosso balcão temos uns marcadores num expositor bastante curioso, e, obviamente, pouco prático. Digamos que a única utilidade que consigo deslindar é a sombra que lança sobre o monitor, impedindo que fique encadeado com os holofotes, enquanto escrevo estas linhas. Os marcadores dão mais trabalho do que dinheiro. É sempre comum ver putos ranhosos e pitas histéricas à procura do nome e seu significado. Soltam sempre uma leve risota por gostarem do significado do seu nome, ou arranjam sempre maneira de fazer troça do significado do nome dos companheiros. Mas, há sempre alguém que gosta de se desmarcar dos demais. Estava eu no back Office com aquele grande mouro de trabalho e colecionador de multas, Gulbenkian, quando ouvimos o seguinte comentário: “Filipe, amigo de cavalaria, Fransico, homem, livre, Aster… ASTER?! Que nome mais estranho!”. A jovem devia ter visto que estava a ler um marcador alusivo a uma flor. Sempre na ânsia de ir mais além, um cliente não quis ficar atrás: “Matilde, rainha da vitória, Daniela, juíza de Deus, João, agraciado por Deus, Gladíolo… GLADÍOLO?! QUEM É QUE SE CHAMA GLADÍOLO!? JOÃO, ANDA CÁ VER ISTO PÁ, Há UM GAJO CHAMADO GLADÍOLO!”.
Para quê procurar vida extra-terrestre quando temos inteligência deste nível tão perto de nós?

domingo, junho 18, 2006

É pá, realmente, pá!

Hoje atendi um verdadeiro marialva. Bigode, telefone bem seguro na mão, corrente de ouro no pulso e no pescoço, andar gingão, palmada no rabo da mulher logo à entrada. Vejo esta personagem e espero que não se dirija ao balcão. Provavelmente quer saber onde se vende A Bola, ou coisa parecida. Mas, afinal não: “Jovem, tudo bem? Pá, a minha mulher quer aprender de computadores, ou o caraças, podes me dar aí um dica?”. Muito bom, pensei eu, uma dica. Quem é que usa uma frase dessas, ainda para mais numa livraria. Acedi ao seu pedido e dirigi-me à zona de informática. Pelo caminho ainda o ouvi: “Esta mulheres, ainda agora saíram da cozinha e já querem computadores, oh caraças…”. Qualquer dia ainda votam, pensei eu. Chegámos ao local da informática e comecei a procurar a colecção “Para Totós” da Porto Editora. Era mais do que adequada. Não tínhamos o livro indicado, então procurei algumas alternativas. Devo dizer que foi complicado, porque procurar algo quando temos alguém ao nosso ouvido constantemente a debitar frases começadas e acabadas em “Pá” é uma tarefa árdua. Lá encontrei o livro e dei-o à senhora. Obviamente que o cliente o arrancou prontamente das mãos desta, e começou a folheá-lo. Claro que passado dois segundos, sem ter lido fosse o que fosse diz: “Pá, tão e não tens nada assim pó mais avançado?”. Ou bem que quer livros o mais básicos possíveis ou bem que não quer. Decidam-se. A senhora insistiu, e acabaram por levar aquele. E o que se seguiu, meus amigos, foi espectacular. O homem, tentando arrancar um desconto à força, lançou um número incrível de frases em apenas um minuto. Parecia saído de um concurso de televisão. Quem é que não se lembra daquela prova fantástica de um programa do Júlio Isidro, “Parvoíces para arranjar desconto, em apenas um minuto”? Ele seria imparável. Começou, ainda estava na zona da informática. “ISTO POR SER A PRIMEIRA COMPRA DÁ 50% DE ESCONTO NÃO É PÁ? PÁ, E SE FIZERMOS UM CARTÃO? E SE PROMETERMOS VOLTAR CÁ E FICAR CLIENTES? E SE FORMOS SÓCIOS PÁ? E SE PAGARMOS A PRONTO? E SE PAGARMOS A CRÉDITO SEM JUROS PÁ? E SE PAGARMOS A DINHEIRO?”. Claro que não teve desconto. Mas valeu o esforço, pá.
Realmente os clientes farejam o desconto. De vez em quando temos campanhas especiais de desconto, durante as quais alguns títulos seleccionados têm 10% de desconto. Obviamente que não pomos etiquetas de desconto em todos os livros. Mas, os clientes, sempre zelosos dos seus interesses, trazem sempre os livros que têm o autocolante, não vá o livreiro maldoso negar-lhes o desconto. Claro que, quando as campanhas acabam, acaba por ficar sempre um ou dois livros com a etiqueta. Aí, quando eles aparecem, não há outro remédio senão fazer mesmo o desconto. Mas, o que me intriga são alguns clientes acabam sempre por encontrar um livro perdido com desconto, por mais que tiremos etiquetas. No outro dia tive que mudar uma montra onde estavam alguns livros com desconto. Já estava em cima da hora de abertura, e se demorasse mais algum tempo lá vinha o segurança chatear. Então o que é que eu fiz? Escondi os livros com 10% de desconto debaixo dos que não tinham desconto, de modo a que não fosse possível vê-los. Ficou tudo em ordem. Ou assim pensei eu. Durante a tarde, surge uma senhora com o tal livro, com uma etiqueta de 10% de desconto. Perguntei educadamente à senhora onde é que tinha tirado o livro, pois podia haver mais livros com a etiqueta. “NA MONTRA, PORQUÊ?” responde ela. Na montra. Aqueles papéis com os avisos para não mexer na montra não interessam. Fui à montra e tinha a montra virada do avesso. A senhora, com o seu faro apurado, revirou a montra toda e lá encontrou, debaixo de 20 livros, um livro com desconto. Também devia entrar em concursos.
Por falar em segurança, os deste centro comercial são muito especiais. Quando a loja é assaltada, ninguém vê nada, mas ai de quem for à montra enquanto a loja tiver aberta. Surge logo um segurança a chamar a atenção, indicando obviamente as possíveis represálias. E reagem da mesma forma a atrasos e nudez. Nunca percebi porquê. O que acho mais piada nestes seguranças é que não podem entrar nas lojas sem autorização. Fazem me lembrar os vampiros da Buffy. Aliás, consta que um vampiro da Buffy, ao ser comparado a um segurança de centro comercial, espetou ele próprio uma estaca no seu coração. Não o censuro.

quarta-feira, junho 14, 2006

Só Às Vezes...

Há que dar mérito à Margarida Rebelo Pinto. Eu sei, eu sei, é uma maneira bombástica, diria até quase surreal, de iniciar um post, mas o que é para ser dito tem de ser dito. E porquê? Por causa da fita que fecha o seu mais recente livro, “Diário Da Tua Ausência”. A fita, de cor bordeaux, é a principal atracção do livro. Senão vejamos, esta aparentemente inocente e simples fita serve muitos propósitos. O mais óbvio é manter o livro fechado, para não corrermos o desnecessário risco de queimarmos alguns neurónios. Mas, se por acaso, por alguma tentação mórbida e fetichista decidimos retirar a fita e ler o livro, temos duas hipóteses: Ou usamos a fita como um bonito garrote de modo a salientar as veias do pulso para as cortar de seguida, pondo fim à nossa miséria, ou ainda pode servir para cortar a respiração através de enforcamento. É praticamente um canivete suíço.
Se há coisa que me deixa perplexo é o cartão de cliente. Esta prática de ter um cartão de cliente alastra-se a tudo o que são lojas, não sendo raro ver os clientes com uma carteira à parte só para albergar os vários cartões de clientes. E. o mais curioso de tudo, a maior parte dos clientes nem sabe para que é os cartões servem. “Tenho aqui um cartão, ou lá o que é, nem sei para que serve.”, ou então “Acho que tenho aqui um cartão vosso, isto serve exactamente para quê?” Quando eles dizem estas frases, os seus olhos brilham e o seu rosto ostenta uma curiosidade quase pueril, muitas vezes mostrando alguma dificuldade em conter a excitação. Porquê, pergunto eu? É apenas um cartão. Os clientes perguntam isto de uma maneira que faz-me sentir tentado a dizer: “Esse cartão dá-lhe automaticamente o super-poder da visão raio-x e força sobrenatural. Vai passar a conseguir saltar arranha-céus de uma só vez, fugir às bichas na ponte e às férias na Caaparica. Ah, e também acumula 10% de tudo o que compra, para depois receber um vale de desconto, mas isso pouco ou nada interessa!”.
É prática comum ligarmos para outras lojas para reservar ou pedir que transfiram algum livro. E, é também bastante comum esse acto, aparentemente elementar, demorar uma eternidade, e também revelar-se infrutífero, com o colega a não encontrar o livro. Depois de vários e longos minutos colado ao telefone à espera de um qualquer livro, fico sempre à espera de o caro colega do outro lado da linha diga o seguinte: “Olhe, não encontrei o livro que me pediu, mas, ali atrás de umas estantes encontrei o Santo Gral, não sei se lhe interessa , veja lá, você é que sabe…”
Uma das nossas colegas fez uma pequena operação cirúrgica às orelhas. Foi algo meramente estético, sem qualquer complicação, mas que, ainda assim, a obrigou a usar durante alguns dias uns enormes pensos brancos nas orelhas. Por muito que tentasse ocultá-los com o seu cabelo, eles eram por demais evidentes. Ora os clientes, simpáticos como sempre, não conseguiam desviar o olhar, algo que a incomodava. Claro que eu, altruísta como sempre, sugeri-lhe uma maneira de se divertir com a situação. Era muito simples, sempre que algum cliente ficasse especado a olhar ou referisse algo, ela diria apenas que tinha sido atacado por um bando de morcegos raivosos à saída do trabalho. Ela não achou piada. O humor não é o seu forte. E pelos vistos o meu também não.
Estava eu no balcão, sossegado como sempre, compenetrado no meu trabalho, quando surgem duas senhoras brasileiras junto ao balcão. Primeiro pedem-me calendários do mundial. Não temos, nunca tivemos, facto que as deixou deveras incomodadas: “Como é que é possível, no Brasil há em todo lado né?” Tem toda a razão, mas o mais provável era levar o calendário e ser raptada mal saísse da loja. Mas o importante é o calendário. Depois deu uma volta pela loja, viu uns livros e voltou para falar comigo: “Oi, você pode ler enquanto trabalha?”, pergunta ela, pertinentemente. Efectivamente posso ler enquanto trabalho, mas não dá muito jeito ler Paul Auster enquanto se carregam pilhas de 30 livros. Levem isto como um conselho. Respondi que não, não podia ler durante o horário de trabalho. Claro que toda a gente passa os olhos por um livro ou outro, mas não vou dizer isso a um cliente. E qual é a resposta dela? “Ah, então não quero trabalhar aqui não!”. E foi embora. E eu lá fiquei. A ler, porque não estava para me chatear muito. Ser Livreiro às vezes tem as suas vantagens. Às vezes…

terça-feira, junho 06, 2006

Porquê Eu?

Sem querer entrar em conspirações, acho que a maior prova de que o dia 6/6/06 não traz coisas boas é o lançamento do novo cd dos DZR’T. Imagino Satanás, no seu covil, a planear o seu regresso e escolher os seus súbditos: “Saddam, não… Muito velho… Bin Laden, não, pouca classe, vive numa caverna… O Goucha está ocupado… Hmmmm… Olha aqueles quatro abichanados que se abanam em palco como se fossem animais feridos… Sim, o terror! Vão ser estes os meus enviados para anunciar o fim do mundo! E que sons horrendos eles soltam! O quê Hitler? Eles estão a cantar?! Não posso! Tens a certeza?! Bom, se o dizes… Sim, sim, são estes os escolhidos!”
Desde os remotos tempos da antiguidade os filósofos como Sócrates tinham como hábito, para além de ler os diários desportivos, questionar tudo o que fosse possível questionar. Quem sou? Para onde vou? De onde venho? Porque é que raio sou sempre eu a atender os clientes mais tresloucados? Eram todas questões válidas. Quando confrontado com esta ultima questão, era frequente ver Sócrates chorar compulsivamente. E aqui estou eu, no século XXI, com a mesma questão. Porquê eu? Quatro pessoas numa loja. 25% de hipóteses de ser abordado por um qualquer louco. A percentagem parece jogar a meu favor, mas, obviamente, ele vem ter comigo. O que se seguiu foi algo de inqualificável. O senhor começou a pedir livros de 1928, e, obviamente, ficou chocado quando verificou que nós não tínhamos nada do que ele queria. Dai a maldizer o país, classificando-o como sendo de terceiro mundo, e a usar todo e qualquer palavrão comum da língua portuguesa foi um instante. “EU JÁ TIVE ESSES LIVROS, MAS EMPRESTEI E ROUBARAM-ME. QUERES O HERMAN HESSE? TOMA. E O LIVRO? TCHAU, NUNCA RECEBI NADA!” disse, enquanto fazia algo semelhante a uma dança, em frente do balcão. Depois falou da nossa livraria, de outras livrarias que tinha visitado. E isso levou-o a falar de lojas de roupa. Lá ia reclamando sobre os preços, enquanto dançava para a frente e para trás, soltando um palavrão aqui, um palavrão ali, como se fosse nada com ele. Segundo ele, ninguém quer dar quarenta contos por umas calças da Trussardi! Depois disse que eu não podia ter boa roupa porque estava ali, atrás de um balcão, e quando soube a marca da minha camisa explodiu novamente. Porque a marca em questão é demasiado clássica e está praticamente falida. E disse que “OS PORTUGUESES NÃO SÃO BRITISH! NÃO SÂO BRITISH!”. O que, indo ao fundo da questão, até faz sentido. Os portugueses são portugueses. Se fossem britânicos, já não eram portugueses. Eram britânicos. E continuou: “SE FOR A INGLATERRA TEM UM PRETO NO AUTOCARRO A DIZER TICKETS PLEASE! TICKETS PLEASE! E VOCE O QUE É QUE FAZ? MANDA O À MERDA! AGORA CA EM PORTUGAL? SE MANDAR O MOTORISTA, HOMEM OU MULHER À MERDA, ELE MANDA O DE VOLTA! SABE O QUE EU FAÇO? FUJO. SE ME MALTRATAM, FUJO. SE ME BATEM FUJO. SE OS POLICIAS ME MALTRATAM, FUJO. NUNCA BATI. SOFRI? MUITO! POR ISSO É QUE VOU SER CAMIONISTA!”. Eu, a esta altura, já estava a olhar em frente, a pensar no que iria fazer hoje, no que seria o jantar. E os meus colegas, sem saber bem o que se estava a passar, viam aquele cliente a saltar, dançar, berrar. Ele continuou, apontando para a tatuagem que ostentava no braço esquerdo: “E AGORA SOU GAY! Estou a brincar consigo. INDA ONTEM LEVEI UM PAR DE CORNOS! MAS ESTAVA PREPARADO! ERA UM HOMEM MARAVILHOSO! VAI A ESTA HORA A CAMINHO DE BARCELONA, NO SEU CAMIÃO!”. Lá está a tara por camiões. Mas o pior ainda estava para vir. “EU VOU SER CAMIONISTA. TENHO AULAS HOJE! SE FOR, VOU, SE NÂO, OLHA, FO… SABE O QUE EU FAÇO AO MEU CAMIÃO?” Eu já estava por tudo, mas nada me podia preparar para o que vinha a seguir. O cliente bate numa agenda do Rock In Rio e diz: “FAÇO ISTO!” E lambe o livro, de uma ponta a outra, da forma mais pornográfica e lasciva que possam imaginar. “FAÇO ISTO PORQUE AMO O MEU TIR!”. Já tinha visto muita coisa, mas um cliente lamber um livro de alto a baixo foi algo novo. Já estava desesperado a esta altura, sem saber o que fazer para sair dali. Ele não parecia ter intenções de se ir embora. E os meus colegas, simpáticos, não sei do que é que estavam à espera para por o telefone a tocar e dizer que era para mim. O cliente continuou a falar, sobre despedimentos prévios, idas a França (tinha sotaques inglês e francês irrepreensíveis), contactos com um gerente de uma grande entidade bancária nacional, que, segundo ele, remonta ao tempo da sua casa de 1610 de Manique. “E EU VIA O GAJO A VIR NA ESTRADA E DIZIA: EH GAJO! E TIRAVA AS MAOS DO GUIADOR! RESULTADO, CAI DA BICICLETA. E O CAPACETE? ESTAVA EM CASA!” Pronto, isto explica muita coisa. Antes de se ir embora, perguntou o meu nome e disse para eu não comprar nada na tal loja de roupa. E saiu da loja, abanando-se como se não houvesse amanhã.
E, tendo em conta que hoje é o dia 6/6/06, até podia ter razão…

terça-feira, maio 30, 2006

Obviamente, Demito-o!

É quase morto por um calor insuportável que O Livreiro regressa às hostes do seu blog. O calor, meus amigos, o calor… Nós temos ar condicionado, por isso, não se está mal na loja. Mas, para quem vem de fora… Passou lá um cliente, com o já típico ar de veraneante, calções, chinelos, etc., que estava interessado no livro “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas” de Dale Carnegie. Bom, é uma atitude nobre, querer fazer amigos. Mas talvez fosse melhor ele comprar o livro “Como Tomar Um Banhinho Jeitoso Antes de Sair de Casa” antes de tentar fazer amigos, porque, com aquele pestilento odor a segui-lo nem o Dale Carnegie o ajuda. O homem não faz milagres.
Alguns clientes continuam a insistir nas velhas frases, e, por mais inverosímil que possa parecer, alguém lembra-se sempre de alguma maneira nova para as dizer. Veja-se o caso do já mítico “Se fosse bicho mordia!”, frase preferida dos clientes quando querem um livro que, espante-se, afinal se encontra diante dos seus olhos. Já dissertámos sobre variantes como “é como ir à horta e não ver as alfaces” ou o clássico “se fosse cão mordia”, mas, desta vez, deparei-me com um original e, porque não dizê-lo, brilhante comentário. Quando indiquei ao senhor a pilha de 50 exemplares do “Código Da Vinci” a um metro de si, o senhor exclama, entusiasmado: “EPAH! SE MORDESSE, MORDIA!”. Ora, ai está. Se mordesse, mordia. Parabéns, Capitão Óbvio, salvou o dia mais uma vez!
Depois temos a habitual discussão do “já é boa tarde / ainda é bom dia”. Custava muito às pessoas responder tal e qual o que lhe dizem? Se digo bom dia, diziam bom dia. O mesmo para o boa tarde e boa noite. Quando respondem algo de diferente, enfim, aceita-se. O pior é quando, além de responderem de forma diferente, ainda acrescentam comentários. E é o costume, “boa tarde, porque já almocei”, ou “boa tarde porque já passa do meio-dia”, ou “bom dia porque ainda não é uma da tarde”. Mas, o meu preferido é o cliente que, depois de eu dizer um simpático Boa Tarde, responde “PARA MIM AINDA NÃO É TARDE!”, completamente ofendido. Abram alas para entidade reguladora do Universo! Peço imensa desculpa, se para si ainda não é boa tarde, não é para ninguém! Já agora, que dia é hoje? Não vá estarmos todos enganados.
Devo vos dizer que aquele balcão é um lugar privilegiado para assistir a certos e determinados acontecimentos, como o já milenar “a minha vida é melhor do que a tua, amigo que não vejo à um ano”. Mas, às vezes, as coisas não correm como de esperado. A livraria, mais do que um estabelecimento comercial, é um ponto de encontro. Uma, vá lá, sala de estar do pequeno Portugal. Vejam o caso paradigmático dos dois amigos e respectivas mulheres e filhos que se encontram numa livraria. Encetam uma agradável conversa, com um dos amigos particularmente empenhado em mostrar os seus sinais de riqueza. E qual é um dos pontos fulcrais do seu triunfante discurso. O telemóvel, obviamente. “Queres ver o meu telemóvel?” Antes do pobre coitado dizer que não, já estava com o objecto a 3cm do nariz. “Tem Bluetooth, Internet, MPTHREEEE, (Não é mp3, é mpTHREEEE), agenda, alarme, despertador… “ A lista de conteúdos era grande, realmente, e eu estava ansioso por ouvi-lo dizer que fritava batatas, mas, aparentemente, o telemóvel dele não é assim tão bom. Quando termina a extensa lista, foi a vez do amigo falar. E eis que, a única coisa que diz é: “Olha, mas ele está desligado.”. O pânico apoderou-se da cara do amigo. Voltou o telemóvel para ele, dizendo: “Não, não pode ser, ainda a bocado o carreguei, queres ver, devo ter desligado sem querer!”. E ligou o telemóvel, que, imediatamente, se desligou outra vez. Depois de voltar a ligá-lo, tentou tirar uma foto e o telefone bloqueou. “É topo de gama, garanto-te, é brilhante, queres ver umas fotos?” Era o desespero em pessoa. Quando o pobre amigo saiu, finalmente, o dono do telemóvel comenta para a mulher: “Telemóveis de 100€ é o que dá…”. Nem mais, nem mais…
Realmente há coisas inexplicáveis. Alguém me dê um motivo (quem disser o mais plausível habilita-se a prémios fantásticos) para um cliente que se dirige ao balcão, onde estava com a minha colega, e diz “Queria o livro do General Humberto Delgado!”. Eu olhei para a minha colega, ela estava mais perto da saída do balcão. Ela percebeu a deixa e disse: “Só um segundo, vou ali buscar…”. E qual é a reacção do cliente? Basicamente foi isto: “JÁ VI QUE NÃO TEM! É MELHOR IR A OUTRO LADO, IR Á FNAC, INCRÍVEL!”, disse, enquanto esbracejava vigorosamente. E a minha colega perto do livro, olhava incrédula para ele. Acho que ele, obviamente, demitia-nos! Claro que ele, depois de ter dito furiosamente que iria à FNAC, saiu da loja para o lado exactamente oposto. Estava perdido, em todos os sentidos.
Até breve...

domingo, maio 14, 2006

Montagem de Expositores Para Totós

Têm sido uns dias atribulados, estes que vivemos. Quinta-feira de manhã, por entre uma enchente de pessoas logo às 11 horas, conseguimos ver uma rapariga desmaiar mesmo à frente da loja. Pobre criatura, trabalha num stand da Philips alusivo ao mundial, onde, os felizardos consumidores, podem habilitar-se a ganhar umas televisões e outras coisas que tais. Tudo bem que eles dizem que os prémios são de cair para o lado, mas a rapariga não devia levar isso tão à letra. Isto dos prémios tem que se lhe diga. Não é raro chegarem aqui pessoas com cupões para ganharem qualquer coisa. Nós tentamos explicar que não é aqui que se entregam os cupões, mas as pessoas não desistem. Quando finalmente param de reclamar para nos ouvir, nós explicamos que é “aqui à frente” que se entregam os cupões. As pessoas olham, dão uns passos para o lado para ver melhor e perguntam: “Aqui à frente? Onde?”. Basicamente é no stand no meio do corredor, a 2 metros da porta, que tem mais de 10 metros de comprimento, com cabines ENCARNADAS, em cima de um tapete VERDE, que dizem MUNDIAL DE PREMIOS em letras garrafais. Eles até têm uma baliza com um televisor de plasma lá dentro, por amor de Deus! Como é que é possível não ver?
Estava eu no balcão com o grande Gulbenkian, esse grande filantropo, figura de proa da missão Crescer em Príncipe (que, pasme-se, até já figurou numa edição do Expresso), quando surge uma senhora, com um ar bastante confuso. “Vou-lhe pedir uma coisa difícil…” disse-nos. Eu expliquei-lhe que se ela queria que o Gulbenkian agisse como um homem, ia ser difícil, mas de resto, podíamos ver o que é que podíamos fazer para ajudar. Queria um livro que não tínhamos, que surpresa.
Devo admitir, em primeira-mão, que sou um homem mudado. Não há que negar, sou um homem mudado. E tudo devido a algo que presenciei, durante hora e meia. Noddy Live, era o nome do espectáculo… Pois é amiguinhos, fui ao Noddy Live e saí de lá um homem mudado. Foi a loucura. Deviam ter visto os miúdos, no espaço entre o palco e a primeira plateia, a lutarem, saltarem, rebolarem, correrem, e espancarem-se quase até à morte com uns paus cheios de luz que eles por lá vendiam, para desespero dos pais. Ainda pensei em começar um mosh, mas ninguém me ligou nenhuma. Não brinquem, aquelas músicas do Noddy roçam o heavy metal. Posso quase jurar que vi o Sonso a tentar fazer stage diving, e um puto a saltar do primeiro balcão para a plateia. A seguir ao espectáculo, nos corredores do Pavilhão Atlântico, ocorriam as habituais conversas sobre o desempenho dos artistas. “Ah e tal, o Noddy já esteve em melhor forma, tem chegado atrasado aos treinos…”. Mas o mais curioso foi uma conversa entre dois petizes. Ao olharem para um poster alusivo ao espectáculo, disseram o seguinte:
- A minha tia faz me lembrar a Ursa Teresa
- Que giro, chama-se Teresa?
- Não, é uma ursa!
Sempre na pândega, estas crianças…
Temos tido várias campanhas especiais nas últimas semanas. A mais recente prende-se com a colecção “Para Totós” da Porto Editora. Para o efeito, além de termos que por os livros dessa colecção na montra, recebemos uma expositor com mais de 1,50m de altura, com 3 prateleiras com uma divisão central para expormos os livros. É um expositor vistoso, amarelo, ocupa muito espaço e basicamente desempenha bem a sua função. Que é incomodar. E o maior problema nem é o expositor em si, mas sim a montagem. O expositor veio completamente desmontado, dentro de um caixote. Este caixote deveria ter escrito num dos lados “Como Entreter Três Livreiros Durante Cerca de Uma Hora”. Porque foi isso que aconteceu. Três Livreiros, um expositor, mais de uma hora. O Expositor deveria vir acompanhado do livro “Montagem de Expositores Para Totós”. Devo-vos dizer, que, da primeira vez que conseguimos montar e juntar todas as peças, fizemos um Eusébio de cartão amarelo. É verídico. Isto de dobrar e encaixar cartão não é, definitivamente, connosco. Mas, depois de muita luta, lá conseguimos erguer o expositor e ficámos a olhar para ele, orgulhosos, durante alguns segundos. Depois do orgulho veio a vergonhoa, porque não era possível termos demorado uma hora a montar aquilo. Depois disso, veio a aceitação. Tudo bem, demorámos, mas ficou bem montado. E, por fim, veio o esquecimento. Menos para o Gulbenkian. Ele passou da aceitação para o amor. Consta que quando a campanha acabar ele quer levar o expositor para casa. Que sejam felizes...

quinta-feira, maio 04, 2006

Eu... Eu é Que Sou o Inspector do Trabalho!

O José Pedro Gomes, no seu livro “O Pais dos Jeitosos”, escreve sobre uma carta, e o tempo que esta demoraria a chegar de Lisboa a Cascais. Sem querer tirar a piada do texto, o facto de um livro demorar uma semana a fazer o mesmo trajecto (ou até mesmo dentro de Lisboa, ou dentro de Cascais) tem muito mais piada. Geralmente quando dizemos que um livro demora uma semana a vir de Lisboa, a reacção dos clientes tende a cair na indignação: “O QUÊ? SÓ PODE ESTAR A BRINCAR! É RIDICULO!”. Mas, hoje, um cliente, quando confrontado com o facto de que o seu livro demoraria uma semana a chegar, pura e simplesmente desatou a rir. Ia rindo, enquanto tentava pedir desculpa por rir, se agarrava à barriga e limpava as lágrimas dos olhos. Toma lá, Zé Pedro Gomes, aposto que os teus espectadores não choram a rir.
Depois temos a nossa colega Feiticeira. Só para terem uma ideia, uma cliente chega junto dela com um livro e pergunta: “Está cá há muito tempo?” e a resposta dela é: “TOU CÁ DESDE AS 10 HORAS JÁ NÂO POSSO COM ISTO; ESTA CHOLDRA, SÓ MULHERES-A-DIAS E MERCEEIROS!”. A cliente assustou-se, e disse: “Eu só queria saber se este livro era recente ou não…”. E depois, a meio da tarde vê uma pessoa lá fora a olhar para ela. Olham uma para a outra. Anda para trás e para a frente ao mesmo tempo. Finalmente dirigem-se até à entrada da porta. Chegaram lá, ficaram a olhar mais um bocado. Encetam uma conversa, perguntam o nome uma da outra, locais de trabalho, locais de lazer. Nada, não encontram nada em comum, não havia uma coincidência. Desiludidas, parte cada uma para seu lado. Que conversa tão eloquente e interessante. Que momento bonito. Por momentos temi que fossem irmãs separadas à nascença ou coisa que o valha.
E depois são os Trovante, o Represas, o Rui Veloso e a Mafalda Veiga. Sempre que pode a Feiticeira mete estes artistas a tocar. No outro dia, à porta do hospital, presenciei uma conversa que considero bastante elucidativa:
- A música da Mafalda Veiga leva-me às lágrimas.
- É muito comovente não é?
- Não, faz me doer os ouvidos, é tramada… …
- Ah… Mas então diga-me, vizinha, porque é que veio ao hospital?
- Tenho tido um corrimento esverdeado…
- Ah… Pois.. É chato… Eu aqui tou, estas varizes… Sempre aproveito e ouço um bocadinho de Rui Veloso pelo caminho.
- RUI VELOSO? Comparado com o que tenho não é nada, os meus pêsames…
Não me levem a mal, os artistas que mencionei não são maus. Pronto, a Mafalda Veiga secalhar até é… Mas, mesmo assim, o que é demais enjoa.
Estava eu, descansado, a tratar de umas facturas no Back Office quando surge uma criança, com cerca de 6 anos, com os olhos completamente esbugalhados. A sua mãe andava aí a ver livros, despreocupada. A criança dirigiu-se a mim e perguntou-me “O que é estás a fazer?”. Eu expliquei-lhe que estava a trabalhar e que o meu patrão devia estar a chegar, e que o segurança não deixava ninguém entrar ali, por isso era melhor ele ir lá para fora ter com a sua mãe. Ele não me ligou nenhuma. Chegou-se ao pé de mim e agarrou o meu braço, deu me um pequeno abraço e disse, pegando no meu identificador: “É o teu nome?”. Respondi afirmativamente, e voltei a insistir na história do segurança. “AGARANÇA?”, respondeu ele, admirado. Eu tentei que ele saísse, e só quando ele desviou a atenção para uma colega minha é que saiu: Andou a correr pela loja, a sair da loja com livros na mão, a correr atrás do balcão, a mexer em tudo e mais alguma coisa. Volta pela terceira vez lá dentro, e pela terceira vez eu disse-lhe a mesma coisa. Ele deixou de sorrir, abriu ainda mais os olhos, recuou e disse: “CALA-TE! NÂO MANDAS EM MIM!” E ficou a olhar para mim. Eu ri-me e disse para ele ir brincar. Então saiu, foi falar com a minha colega e correr pelo balcão, sempre sorridente e feliz. Mas, cada vez que passava à porta do Back Office dizia: “CALA-TE! NÂO MANDAS EM MIM!” Depois voltava a sorrir e fugia. Chegou a falar com uma colega, todo sorridente, e, ainda estava ela a falar, ele volta-se para trás, lança-me um olhar mortífero e diz, entre dentes: “Cala-te… Não mandas em mim…”. Tive medo.
Na sexta passada tivemos a visita de uma brigada da Inspecção Geral do Trabalho. Eram três vingadoras, de crachá aberto, parecia uma entrada tipo NYPD. Só faltou terem dito Freeze! Fizeram umas perguntas e tal, eu admiti que conhecia o Fat Tony (Toni Gorducho, para os leigos) mas que não matei o Jimmy Weasel (o Jaime Doninha). Elas não perceberam do que eu estava a falar, e pediram-me para assinar um papel. O problema é que elas é que assinaram no local onde eu devia ter assinado. Não me restou solução senão assinar no local de Inspector. Isso é que daria um belo blog…

sábado, abril 29, 2006

Não Explicam!

Os editores deviam ter mais cuidado com a forma como colocam o número da edição na capa. Existe um grupo de pessoas que teima em arranjar confusões com o número da edição. Há sempre aqueles que querem a 1ª edição dos livros que compram, e ficam muito desiludidos quando não a conseguem, tentando a todo o custo arranjar algum exemplar da mesma. Alguns chegam ao cúmulo de nem sequer comprar quando a edição não é a primeira. Mas estes nem sequer são os piores, há aí uma pandilha que não é para brincadeiras. Chega uma cliente ao balcão com o livro de São Cipriano na mão. Aponta para o 3 que indicava o número de edição e diz: "OH SENHOR, TEM AÍ O 1 E o 2? É QUE NUM VOU TAR A LER O TERCEIRO SEM LER O SEGUNDO E O PRIMEIRO NÉ?! ASSIM NUM PERCEBO NADA DA HISTÓRIA!". Explicar que aquele número representa apenas o número de edição e não o volume do livro torna-se complicado. E claro, depois temos o clássico que, trazendo um livro de aprender Inglês em 30 dias diz: "EU COMPREI AQUI A SEGUNDA EDIÇÂO E AGORA A TERCEIRA E OS EXERCICIOS SÃO TODOS IGUAIS, TODOS IGUAIS! PARA ISSO NUM COMPRAVA!". E lá vem a explicação outra vez, e acho que a maior parte das vezes eles não percebem.
Eu é que não percebo o que é que leva uma senhora a pegar na lista do telefone, pensar que lhe está a apetecer chatear alguém e escolhe o nosso número. E liga. "Boa tarde, fala da Livraria? Podia-me dizer porque é que a vossa loja de Faro não atende?". Obviamente que não faço a mínima ideia. "Mas não sabe ou não quer saber?" E aqui começa o rol de perguntas em que, seja qual for a resposta que dê, a senhora nunca fica satisfeita, apresentando a sua resposta para a sua própria pergunta. Eu digo que deve ser devido ao movimento, ela acha que "Deve ser porque estão com falta de gente". E continua:"Tem livros do Camilo Cela? Não? Porque é que não tem livros de um autor que ganhou o Nobel?" Dou a minha resposta, e ela contra ataca com "Não, não é isso, é porque ele não é vendável, com certeza". E termina com um brilhante "Bom, vou ligar para outras lojas para saber se têm os livros.." E fica em silêncio, eu também. "Então, não ouviu? Não diz nada?" Bons telefonemas? Que é que é suposto eu dizer a sguir a alguém dizer "ligar para mais lojas?". Finalmente despediu-se: "Uma Boa Tarde sim?" Claro minha senhora, uma boa tarde e uma boa vida. De preferência longe de nós.
Estava eu descansadamente a tentar fechar a caixa do dia anterior quando surge um problema que não sabia como se resolver. Não fazia mesmo ideia onde é que se inseria o valor relativamente a um cheque oferta. Não queria que nenhum superior soubesse da minha ignorancia, então tentei ligar aos meus colegas. Não foram grande ajuda, verdade seja dita. Ou não atendiam ou não sabiam. Tentei então ligar, em desespero, ao nosso saudoso Mestre Livreiro, esse mito do meio-fundo movido a tabaco, mas também não atendia. Bem, pensei em deixar estar, quando chegasse alguém à tarde o assunto certamente ficaria resolvido. Mas, eis senão quando, o telefone toc. Atendo, era da contabilidade E o que se passou a seguir foi basicamente isto:
Contabilista - Muito bom dia, falta-nos aqui uma caixa.
Livreiro - Ah, exacto, é que eu estava mesmo aqui a er... acabar.
Contabilista - Ok então, está explicado.
Livreiro - Já agora, só aqui entre nós, como é que se insere o valor do cheque oferta?
Contabilista - Pois, isso agora não sei, não estou familiarizada com os vossos quadros.. Dê-me só um segundo que eu pergunto aqui...
(Som de pousar o telefone)
Contabilista (Aos berros) - Está aqui o Livreiro da Loja X ao telefone, ele não sabe fazer uma coisa, alguém sabe explicar? Sim, o Livreiro da Loja X não consegue fechar a caixa, alguém pode ajudar?
(Som de alguém a pegar no telefone)
Contabilista - Ninguém sabe... Vou passar à entidade máxima da contabilidade, o nosso director.
(Música de elevador)
(Mais música)
Director - Bom dia, então o sr. Livreiro não sabe fazer isto?
Livreiro - Pois, é que tenho aqui uma dúvida sobre qual será a categoria certa para a despesa.
Director - Então, é só inserir tal e qual está.
Livreiro - Er.. Ah, ok, obrigado então... Pronto era só isso.
Apeteceu-me terminar a frase com "Agora se me der licença vou só ali atirar-me daquele penhasco". Ou seja, eu não queria que ninguém soubesse que eu desconhecia como se procedia naquela situação e o que aconteceu foi que espalharam isso por toda a contabilidade. Muito bom. Façam uns mails, mandem uns forwards, colem uns cartazes, façam uns blogs. Espalhem ao mundo que eu não sabia fazer aquilo. Agora já sei, foi remédio santo...

terça-feira, abril 25, 2006

Poliglotas

A noite de Sábado foi pródiga em imagens de terror, acho que nunca me tinha assustado tanto com algo que passasse na televisão. E isto só com os festejos da conquista do campeonato pelo FC Porto. Tive de impedir a minha avó de ver, não fosse ela ter algum ataque cardíaco. Claro que também apreciei muito as partes de comédia dos festejos, especialmente aquela senhora que dizia “A SEGUIR BEM O PENTA!”. Alguém ensine a senhora a contar, depois do 1 não vem o 5. Mas pronto, foram campeões, mereceram.
Na quinta passada o Baixas foi protagonista de um momento que tenho alguma dificuldade em classificar. Caricato é um bom termo, mas acho que não faz justiça ao que se passou. Estávamos no Back Office, com o gerente a trabalhar descansadamente no seu posto, e estávamos no nosso habitual debate das quintas-feiras sobre o presente, passado e futuro dos videojogos. Estava tudo a correr bem, até o Baixas ter uma saída brilhante. Foi qualquer coisa assim:
Livreiro – Pois, para mim o melhor jogo online para qualquer consola portátil é, sem dúvida, o Mário Kart DS
Baixas – Mário Kart?
Livreiro – Sim, Mário Kart, aquele que também há para Gamecube e Gameboy Advance.
Baixas – Ah, já sei, aquele que jogávamos aqui?
(BAIXAS OLHA PARA MIM E LEVA AS MÃOS À CABEÇA)
(SILÊNCIO)
(SILÊNCIO)
(SILÊNCIO)
Baixas – Aquele que tem uns carros todos infantis?
(RISOS INTERMINÁVEIS E A ROÇAR O HISTÉRICO DOS DOIS)
Livreiro – Baixas, tu és hilariante!
(MAIS RISOS, ACOMPANHADOS DE LAGRIMAS)
(NOVAMENTE SILÊNCIO)
Livreiro – Pois, é o melhor
Baixas – É capaz.
Portanto o rapaz, sentado ao lado do seu gerente, diz que aquele era o jogo que nós jogávamos no local de trabalho. É só inteligência. Já agora dizia que também dávamos uns toques no Pro Evolution 5 e umas voltinhas no F1 2005 para PSP. Enfim, é dos medicamentos, ninguém o leva a mal.
Ontem de manhã surgiu uma cliente no balcão, que, sem perder tempo, disse, confiantemente: "Queria um livro do Dostoievsky, se faz favor." Boa, pensei eu, consegue pronunciar Dostoievsky melhor do que o Gulbenkian, que diz qualquer coisa como Dostovietsky ou Dostoetvisky. Ainda não tinha acabado de apreciar a sua boa dicção quando ela continua: "O nome do livro é Os Irmãos Karamaninikov". Estragou tudo, acertou no Dostoievsky mas falhou redondamente no Karamazov. Secalhar era uma boa parceira para o Gulbenkian, já os imagino a correr pelos campos, ela de saiote, ele de sandálias e meia branca, a proferirem nomes Russos da pior forma possível. Ou isso, ou a falarem espanhol. Porque o Gulbenkian domina o Espanhol. Na quarta passada surgiram duas senhoras espanholas que queriam saber se tínhamos o "escudo" do nome da livraria, porque o nome era igual ao seu último nome. Nós não temos nenhum brasão da loja ou da família que deu origem ao nome da livraria, mas, antes sequer de eu começar a tentar explicar isso à senhora, o Gulbenkian intervém, lá de trás, destemido. "O ESCUDO PORTUGUES?" ISSO NÃO TEMOS, ESTÀ ESGOTADO!" e a senhora a tentar explicar que queria ver o brasão, e ele a continuar: "POIS, POIS, A HISTORIA DO ESCUDO PORTUGUÊS... NÃO, NÃO HÁ! ISSO ESTÁ ESGOTADO!"
Por falar em Espanhol, ainda esta manhã surgiu um cliente que queria: "Um livro que saiu em Espanha, em espanhol, de um autor que é espanhol mas que mora em Madrid, diz lhe alguma coisa? Não sei se é um bocado vago... Ah, eu li isto em inglês." Portanto, um autor que é espanhol MAS que mora em Madrid? Morar em Madrid afecta a sua nacionalidade? Não sei, isto é uma frase deveras interessante. E não sabe se é vago? Obviamente que não. Não diz título, autor, editor. Vago era se entrasse na loja e tentasse comunicar apenas através de odores. E eu estivesse constipado.

terça-feira, abril 18, 2006

Portanto, A mais I igual a AI?

Fui trabalhar na sexta-feira passada. O caminho para o trabalho foi normal (condutores loucos, cabras a atravessar a estrada, enfim, o costume) mas, quando dobro a esquina para ir abrir a porta da loja, sou logo presenteado com uma senhora a dizer ao seu filho, que chorava desalmadamente: “ENTÂO JOAQUIM MANUEL O QUE É QUE O ANORMAL DO TEU PAI TE FEZ? DOU LHE JÁ UMA CARGA DE PORRADA! PARA DE CHORAR TU TAMBÉM!”. Pensei em parar e reflectir na estranheza da situação, mas depois lembrei-me de que era feriado, estava tudo explicado… Claro que, mesmo que tivesse com algum tipo de dúvidas, o facto da primeira cliente do dia ter me ido perguntar a localização de um livro porque, segundo ela, “SOU PREGUIÇOSA, NÂO SOU CAPAZ DE PROCURAR NADA”, veio logo reforçar a minha tese, era mesmo feriado.
Por muito que tentemos comunicar com certos clientes, fica no ar aquela sensação de que nós não nos expressamos no mesmo idioma. Não são raras as vezes em que repetimos uma frase vezes sem conta e o cliente, como se não fosse nada com ele, ignora completamente o que dizemos. Vejamos o seguinte caso: uma senhora chega ao balcão, calmamente, e pergunta se temos um qualquer livro. Consulto a base de dados, verifico que não temos o livro, e vejo as lojas em que ele existe. Passo então a comunicar à senhora que o livro apenas se encontra disponível no Chiado e no Vasco da Gama. Ora bem, quando eu esperava o lógico “pode encomendar?” ou o “pode reservar lá?”, surge um inesperado: “E em Cascais, há?”. O facto de eu ter dito que SÓ havia no Chiado e no Vasco da Gama não interessa, posso estar a omitir algo, estes livreiros não são de confiança. Algo falhou na comunicação, imagino o cliente a olhar para mim e a pensar: “Ele está à minha frente, e está a mexer a boca, logo deve estar a falar, mas… Estranho… Não ouço qualquer som… É melhor perguntar se há em Cascais, não vá ele enganar-me…”
Depois há também o hábito dos clientes estarem enganados relativamente ao nome de um livro ou de um autor (ou de ambos), e jurarem a pés juntos que tem razão.Uma senhora idosa aproximou-se do balcão e, sem perder tempo, perguntou: “Tem aí mais livros da Amanda Cunha?”. Eu fiquei naturalmente apreensivo, que senhora tão decidida era aquela, nunca tinha ouvido falar dessa autora. Bom, lá fui eu à base de dados e, obviamente, não surgiu nada. Enquanto pesquisava a senhora ia falando: “Gosto muito da Amanda Cunha. Comprei um livro dela e já li todo e gostei muito, gosto muito. Não conhecia a garota, mas agora gosto muito, esta Amanda Cunha”. Disse-lhe, com todo o cuidado, que não surgia nenhum livro dessa autora da base de dados e que, possivelmente, assim numa hipótese remota tipo Sporting ser campeão, que a senhora devia estar a equivocar-se no nome da autora. Eu posso quase jurar que lhe saíram dois chifres da cabeça e que lhe surgiu uma cauda pontiaguda por baixo da saia. O cheiro a enxofre já lá estava. “NÃO TEM?! COMO É QUE NÃO TEM?! ISSO É IMPOSSÍVEL! EU LEVEI O LIVRO DELA! E olhe, gostei muito… MAS TEM QUE TER! NÃO ME ENGANEI! É AMANDA CUNHA!”. Tentei mostrar lhe o monitor para ela ver como não surgia nada, mas ela não quis olhar porque tinha medo que lhe sugasse a alma. Pensei em começar de novo, perguntei-lhe o nome do livro. Se a senhora se recordasse do nome do livro, o nome da autora iria surgir e aí ficava tudo esclarecido. “NÃO ME LEMBRO DO NOME DO LIVRO! SÓ SEI QUE É DA AMANDA CUNHA!”. Nada feito. A senhora insistiu até eu lhe arranjar uma solução adequada. Disse-lhe para voltar à loja no dia seguinte, com o livro que comprou e que aí nós tirávamos todas as dúvidas. “ENTÃO EU VOLTO E O SENHOR VAI VER QUE É A AMANDA CUNHA!” Claro que eu não referi, meramente por lapso, o facto de no dia seguinte estar de folga. Mas isso é irrelevante para o caso. Conclusão, o que a senhora procurava mesmo era Amanda Quick. Quick, Cunha, é normal, são dois nomes tipicamente portugueses. Quantos merceeiros ou talhantes não há por aí com esse nome? “OH SHOR QUICK, DÉ ME AÍ TRÊS COSTELETAS DE BORREGO FACHAVOR!”. Não levo a senhora a mal.
Depois há sempre aquelas clientes que vivem no seu mundo superior, tendo só algum contacto com o resto da humanidade quando vão comprar livros e pensos higiénicos. Bom, sendo que a parte dos livros me toca a mim (vender pensos seria, admito, interessante, acho que há terreno para explorar nesse mercado, para quando os pensos com música?) lá tive de atender uma dessas clientes. Queria o livro “NEW POOL DESIGN” para a filha. Depois de me dizer o nome do livro, perguntou arrogantemente: “Mas sabe escrever?”. Tocou num ponto sensível. Esta pergunta, para quem tem a quarta classe tirada à noite (e com cábulas) dói muito. Lá tive de explicar à senhora que não sabia e que, aliás, nenhum dos meus colegas sabe. Ler e escrever não são factores preferenciais para o trabalho numa livraria. Um ou dois de nós ainda arranham a leitura (a mim, custa me ler palavras com LH e NH, mas ainda me safo), mas escrever? Ninguém sabe. Estas pessoas, que vão para as livrarias a pensar que sabemos ler e escrever… Como é que é possível viver nessa ilusão? Os meus mais sinceros pêsames.

domingo, abril 02, 2006

A Busca da Verdade

Ia eu começar a escrever quando surge algo no horizonte que me distrai complemante. Amigos, eu já vi muita coisa. Muita mesmo. São demasiadas horas a espreitar para fora deste aquário sem água a que chamam loja. Mas, ver uma rapariga a passear dentro da loja, enquanto vai lendo alguns livros, com um bocado de cartão colado às costas e que se estende uns valentes 75cm acima da sua cabeça, com publicidade à série "Desesperate Housewives" é algo digno de ser visto. Aqui o meu colega Gulbenkian, este verdadeiro raio de luz ambulante com a sua camisola amarela, não queria acreditar nos seus olhos. Pobre rapariga, parece saída de uma banda desenhada. Só que esqueceram-se de lhe tirar os balões das falas. Devem pagar bem, é tudo o que digo.
Não há nada como clientes enraivecidos. E se há coisa que os deixa fulos é quando lhes passam à frente na fila para pagar. É compreensível. Se por acaso atendemos alguém que se esgueirou sub-repticiamente para a frente da fila, começa logo uma discussão. "OH FAXAVOR EU TAVA PRIMEIRO, ESTE ... "SENHOR" PASSOU ME Á FRENTE!" logo seguido de um "DESCULPE! EU ESTAVA PRIMEIRO, NÃO TENHO CULPA QUE TIVESSE AÍ A DORMIR!". As discussões atingem por vezes níveis bastante perigosos. E eu aqui, atrás do balcão, a presenciar tudo calmamente. Até à semana passada. Atendi uma cliente, e surgiu logo um envervadíssimo "EU TAVA PRIMEIRO!" da senhora do lado. Surgiu a resposta e a contra resposta. E eu já a pensar em ir buscar as pipocas para assistir à discussão. Mas eis senão quando as senhoras, em vez de se degladiarem até à morte, se unem contra mim. "Peço imensa desculpa, mas foi aqui este "SENHOR" que me chamou para ser atendida" ao que a outra cliente respondeu "Pois, não estão com atenção, é o que dá". A outra cliente assentiu e continuou: "Realmente, é sempre a mesma coisa...". E ali ficaram, a olhar-me com desprezo, enquanto despejavam todo o seu ódio em mim.
Na semana passada, um cliente comprou um livro da colecção Para Totós. Até aqui tudo bem, não fosse o facto do dito cliente ter chegado a casa e ter reparado que afinal não era aquele que ele queria. Então o que é que ele faz? Liga para a loja. "Ah, bom dia. Eu comprei aí um livro chamado Internet Para Totós, mas o que eu queria era Informática Para Totós." Tudo parecia correr bem, até ele dizer "Eu fui atendido por um rapaz simpático, com uma coisa no pescoço." Suponho que ele estivesse a falar do meu fiel identificador. Que todos usamos. Quer dizer, todos menos a Feiticeira. E O Santo, porque tem o pescoço sensível. Acho que era disso que ele estava a falar. Ou disso ou da minha cabeça. Acho que é normal apelidar, tanto ao identificador como à minha cabeça, de coisa. Claro que a parte do "simpático" foi a parte mais chocante para os meus colegas.
Estava eu no balcão a tentar trabalhar quando vejo um homem e uma mulher a segurarem uma caixa. Pararam junto ao balcão, sem largar a caixa e mantinham um sorriso tipo Barbie. Não se mexiam, nem sequer pestanejavam. Pensei que fossem dizer: "Take me to your leader", mas não, pediram-me licença apenas para deixar a caixa no back office, sempre com os olhos esbugalhados. Estranho, pensei eu e mandei os entrar. Lá deixaram a caixa e partiram, como se nada fosse. Quando fui ver o conteudo da caixa tudo fez sentido. Eram livros de Cientologia, a religião inventanda por L. Ron Hubbard. E quem é L. Ron Hubbard? Não sei, não interessa, mas aqui diz que vendeu 120 milhões de livros. Ena. Em Hollywood está na moda, e isso não é dizer pouco. Foi aliás, a razão pelo qual Isac Hayes (o Chef) abandonou o Southpark, o que só por si constitui motivo suficiente para não gostar desta religião.
Por falar em religião, o livro da Alexandra Solnado traz à loja personagens novas. Na segunda-feira passada estava ainda a tentar acordar quando uma senhora se aproximou do balcão e perguntou se tínhamos a Limpeza Espiritual. Como é que poderíamos ter? É um verdadeiro bestseller. A senhora ficou bastante desiludida. Então começou a ver outros livros, e acompanhava a leitura de cada livro com a pergunta: "Também é de limpeza espiritual?" E a cada livro, a mesma pergunta. Chegou inclusivamente a pegar num livro do mesmo formato do livro Limpeza Espiritual e perguntou se era de limpeza espiritual. Quando confrontada com esse facto, perguntou: "Então é sobre quê?". A minha colega pegou no livro, olhou para a capa e viu o título Como Contactar o Seu Espirito Guia. E disse: "Este é para contactar o seu espírito guia". Pelo título ninguém ia lá. A senhora respondeu prontamente: "Ah, então é isso! Mas não tem limpeza espiritual?". Depois virou-se para os livros da Louise Hay. Mostrei-lhe todos os que tínhamos, mas ela já tinha tudo. Queria um dela que falasse de limpeza espiritual. Não temos. Então começou a tirar livros ao calhas da prateleira e a perguntar: "Também é da Louise Hay? Também é dela? E este?" Calculo que ler não fosse o forte dela.