domingo, dezembro 05, 2004

Divididos

Daquelas personagens típicas da loja há um que marca indelevelmente um dos nossos colegas. Obviamente, e como seria de esperar, não vou dizer o nome deste meu colega porque sei que, com toda a certeza, a sua popa cairia. Vocês sabem do que eu estou a falar. Relativamente à personagem em si, não há consenso quanto ao nome a atribuir lhe. Bicicletas para uns, bandeiras para outros. A divisão está instalada. O primeiro (e, sem dúvida mais importante contacto) ocorreu entre ele e o meu colega Mourinho. E esse encontro, passado numa penosa câmara lenta, marcou os para sempre. Imaginem… Cabelo ralo, braços atrás das costas, anafadinho, andar lento e desconexo. Nos lábios, sempre um sorriso que parece querer descambar em riso. Chega ao balcão, e começa a movimentar-se, dando a entender que vai encetar comunicações. Acontece, como quase sempre, aquele momento em que o cliente ameaça que vai falar mas depois opta por um silêncio incómodo. Aí, seríamos nós que devíamos encetar a conversação, mas estamos num impasse porque o cliente iniciou a comunicação. Até que enfim decide-se a falar. E mostra desde logo um dos seus principais atributos. A voz. E que voz, meus amigos, que voz…Ao pé do nosso cliente, o Nuno Guerreiro é um verdadeiro Conan másculo e viril, um barítono heterossexual de várias mulheres. A sua voz de contra-tenor eunuco, um verdadeira castrati, ecoa estridentemente pela loja, e quase sempre nas piores alturas. E o que deseja esta personagem? Simples. Livros de bandeiras. Agora imaginem, o meu colega, aparentemente sossegado no balcão, quando é confrontado com a seguinte situação: “Tem livros de bandeiras?” pergunta ele, no seu estilo eunuco. “Não, de momento não temos nada.” Responde cordialmente o meu colega. “E costumam ter?” “ultimamente não…” “e vão ter? estão à espera?” “Não lhe sei dizer…” “E são em português?” “Um ou outro…” “E são grandes ou pequenos?” “depende…” “E vão receber agora?” “Depende das editoras…” “E tem muitas bandeiras? E imagens? Em português?” “Depende do livro…” E por aí em diante, a conversa prolonga-se até ao infinito da paciência humana. Agora imaginem-se a ter que responder às mesmas perguntas num curtíssimo espaço de tempo, ao mesmo tempo que tentamos bloquear a situação toda, para não termos um violento ataque de riso. Claro que o risco de isto acontecer é directamente proporcional ao número de colegas ao nosso lado no balcão. E quando o meu colega pensava que já tinha passado o pior, ele volta a atacar: “E livros de bicicletas tem?” “Penso que não…” “E gosta? Gosta de bicicletas? Tem de ter cuidado, senão cai…”. Conhecendo o meu colega, aposto que por momentos passou lhe pela mente a tentação de dizer: “TU GOSTAS É DE ANDAR SEM SELIM!”. Bom, isso seria no mínimo curioso.
Quando encontrei este cliente pela primeira vez, tinha Greenpeace ao meu lado. E, como podem calcular, tivemos que evitar o contacto visual um com o outro, porque sabíamos que mal olhássemos um para o outro iríamos rir perdidamente. E, num momento raro de fraqueza, Greenpeace sucumbiu à pressão e fugiu para o back Office. O resultado foi só um: tive de aguentar sozinho, as perguntas do costume: “tem livros de bandeiras?” “São em português?” “Costuma ter?” “Quando vai ter?” e por aí em diante, até chegar às bicicletas. E é daqui que vem a discussão quanto ao nome. Se, por um lado, o seu primeiro amor são as bandeiras, o seu fervoroso interesse nas bicicletas faz com que outros pendam mais nesta direcção.
Desde esse primeiro encontro, o meu colega tem fugido dele como o Ricardo dos cruzamentos. Um dos episódios que recordo com facilidade consiste no seguinte: estava eu ao telefone com outra loja, à procura de mais um livro que não ia de certeza encontrar, quando olho para o balcão e vejo um vulto parado junto a este. Quando olho a segunda vez para ver se o cliente estaria à espera de ser atendido, parar chamar um colega, eis que reconheço a personagem: o bandeiras! E, pior de tudo: ele viu que estava a olhar. Ele viu que eu o reconheci. Então, alargou ainda mais o seu largo sorriso, e levantou a mão direita, dobrando o braço pelo cotovelo, num movimento único e firme. E eu… Bem, eu fugi, já a tentar controlar a explosão de riso. E, quando deveria ter chamado um colega imparcial, o que eu faço é, evidentemente, como bom colega, chamar o colega Mourinho. Entro no back Office, disfarço o riso e digo, com o ar mais sério possível: “Colega Mourinho, está ali um senhor para si.” Ele levanta-se apressadamente da cadeira que ocupava, e voa para o balcão. E, tão rápido como saiu, volta a entrar, com apenas 3 apoios, no back Office. Mas, desta vez, o seu destino não foi a cadeira que habitualmente ocupa. O seu destino foi a porta. Mais precisamente, o espaço entre a porta e as estantes. Espaço esse que ele encurtou, abrindo ainda mais a porta. Quando ouço o barulho e olho nessa direcção, pensando que o som vinha da loja, vejo o meu colega escondido, quase espalmado, atrás da porta do back Office, enquanto se ria perdidamente. Eu vi nos olhos dele o pânico, a agonia. E deixei-o lá ficar. Teve que ser o diplomata Greenpeace a resolver a questão.
O meu segundo encontro com ele ocorreu quando recebemos a visita de um ilustre administrador. Como devem calcular, não é a altura mais ideal para dar de caras com um personagem que tem em si o potencial para nos fazer rir. E a bandeiras despregadas. Portanto, neste caso, a luta foi ainda mais forte. Ele fez as perguntas do costume, eu dei as respostas do costume. Ele ia sorrindo maliciosamente, como adivinhando o meu sofrimento, e divertindo-se com isso. Entretanto, eu ia pensando em tudo e mais alguma coisa menos na situação que estava a viver, tentando ganhar o confronto. E, quando finalmente foi embora, respirei de alívio. O venerável administrador não deu por nada.
O derradeiro encontro do 3º grau foi o mais original de todos. E porquê? Porque, miraculosamente, ele tornou-se num cliente quase perfeito. Tirando a voz aguda que fere os ouvidos. E os tiques abixanados. Mas, reparem. Ele chegou ao balcão, e começou com as perguntas do costume. Mas, desta vez, espantem-se, ele próprio dava as respostas. O monólogo foi qualquer coisa assim: “Tem livros de bandeiras? Não, pois não? E costuma ter? De vez em quando não é… Pois… E, quando é que vai ter? Agora com o Natal é capaz de receber não é? Acha que vai ter em breve? É melhor ir passando, pois… Boa noite então, adeus…” Brilhante…
Nós já chegámos ao ponto de, depois de termos recebido um livro sobre bandeiras, termos colocado o livro no balcão de forma completamente visível. Estamos mesmo a pedi-las…E com o Natal aí a chegar, adivinham-se mais visitas. Venham elas!

quinta-feira, novembro 25, 2004

Never Fear, X-Mas is Near.

Bem, aqui estou, o ausente Livreiro, para sossegar os mais desassossegados. Não pereci. Não fui atacado por nenhuma tia desvairada e alcoólica nem me caiu o livro do Da Vinci que vale 165€ na cabeça. Mas, devo dizer que, para felicidade dos presentes na loja nesse momento único, levei com uma chuva de Degelo (livro de Agustina Bessa-Luis, e atente-se a ironia do título) em cima, quando me preparava para empilhar mais uns livros com George W. Bush na capa. Mais uma vez, Bush é o responsável por uma desgraça. A verdade é que me encontro mergulhado em trabalho. Parece que vos oiço: “Ah livreiro, já que és livreiro, podias pelo menos fingir que trabalhas…”. Concordo que já estava na altura de fazer qualquer coisa. Lembro-me como se fosse hoje, parece que ainda agora, neste preciso momento, estou a ouvir o Greenpeace dizer, enquanto pegava nuns livros para arrumar: “Então, quando é que vens de férias?”. Obviamente que esta pergunta não me apanhava incauto, mas mesmo assim há que felicitar Greenpeace pela piada. Claro que outros caíam na esparrela humorística dele. É o delírio. Isto não é uma loja, é praticamente um cabaret.
Tenho que vos confessar também que, para minha profunda tristeza, o nível médio de personagens por semana diminuiu drasticamente. Não sei se tem algo a ver com o novo governo ou não, mas esse facto tem vindo a atrapalhar e de que maneira a minha produção literária. Por vezes, olho para certos clientes como se vislumbrasse um oásis, na ténue esperança de que esses clientes venham a proporcionar momentos dignos de figurarem nesta página. Olho para eles e penso: “Vá, tu consegues. Sê anormal. Eu sei que queres.” Mas, não resulta. Nem o próprio professor Sarna conseguiria tal feito telepático.
No entanto, é com pompa e circunstância que venho por este meio anunciar que o bloqueio já foi, e que a produção de novos episódios já está em marcha. O Natal aproxima-se, e com o Natal vem o Pai Natal, as renas, as prendas e claro, milhares de clientes prontos para deslumbrar com a sua estupidez. E, sendo responsável pela zona esotérica, começo a ter previsões. Prevejo, além do já habitual e agradável humor psicológico, humor físico. E porquê? Simples, diria mesmo elementar. Digamos que, apenas a título de exemplo, a loja deveria ter 5.000 livros para estar com uma apresentação razoável. O que acontece é que, e até ao momento, quando ainda está muito para chegar, a loja terá cerca de 15.000 livros. Portanto, o espaço de movimentação é por vezes diminuto e requer alguma coordenação na locomoção. O que nos leva a uma conclusão muito simples: se há clientes que possuem somente 2 neurónios, sendo 1 para respirar e outro para (tentar) comunicar, o acto de andar, especialmente por sinuosos caminhos ladeados de livros torna-se uma tarefa verdadeiramente impossível. É que há clientes quase tão instáveis como a coligação (quase). E meus amigos, isto não é dizer pouco!
A recessão parece ter afectado todas aquelas boas pessoas que gostam de ler (ou que têm que ler) e o resultado das vendas têm descido quase ao nível da equipa do Sporting.
O que só por si traz um indesejado aumento nos níveis de stress de vários colaboradores, já de si basntante elevado devido ao elevado indice de entrada e saídade de trabalhadores. Parecemos o Benfica na remota e nefasta época de Artur Jorge.
Enfim, a época promete. E eu prometo estar aqui, qual Gabriel Alves sóbrio, para comentar e apreciar a capacidade técnico-táctica e respectivo baixo centro de gravidade dos clientes.
Fiquem atentos…
Voltei.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Quero um post só para mim!

Atenção. Preparem-se. Não, não é o Bush que vem aí roubar o vosso petróleo. Pelo menos ainda não. Digo eu. É algo de muito maior e mais importante. Ajoelhem-se perante a maior personagem que alguma vez colocou o pé no nosso estabelecimento.
Faltavam apenas 10 minutos para as 23 horas da noite. Já conseguia avistar ao longe a hora de me ir embora, e corria para ela com todas as forças. O dinheiro contado, a caixa pronta a fechar, em 5 minutos estaríamos longe dali. Mas, eis que aparece algo que vai arruinar todos os meus grandiosos planos de fuga. Nem sei bem o que lhe chamar, é algo maior do que tudo o que já vi naquela loja. Ainda hoje à tarde pensei estar a alucinar. Olho para a secção de literatura estrangeira e vejo um gigante louro a puxar a cadeira para se sentar lá. No mínimo estranho. Depois, ao olhar melhor, vejo um gigante louro que parece me ser o Peter Schmeichel, famoso guardião do Manchester United e que teve uma passagem pelo Sporting. Aí pensei: Preciso de descansar, ando a trabalhar e a ver futebol a mais. Mas não, era mesmo ele. Bom, pensei que aqui já tinha ganho o dia, mas nada me podia preparar para o que veio ao fim da noite.
A senhora chega ao balcão com um livro na mão, já meio cambaleante. Pergunta por livros de acupunctura e o sempre profissional Greenpeace acompanha-a até à secção correspondente. Começam numa conversa animada sobre idades e idades dos pais. E ali fico eu, a contar a caixa, sossegado da vida. Quando eles voltam começa o espectáculo. Primeiro, começa a atacar violentamente e, há que dizer com toda a frontalidade que a cliente merece, com muita piada, chegando mesmo a imitar perfeitamente expressões corporais levando o público (eu e o Greenpeace) ao delírio. Os ataques verbais à colega eram violentos e incisivos, e toda e qualquer tentativa de defesa da nossa parte tornava-se imediatamente infrutífera. Desde focar o seu lado intriguista, a falar do que ela fez noutra loja, das confusões todas, da falta de sexo, e de haver probabilidade de ela se fazer a todos, ela estava em toda a parte. Não falhava uma, tremendamente implacável. Aí, começa a falar da sua vinda a este centro comercial. Dizia ela: “Olhem, eu, eu andava aí a passear e só dizia: mas esta merda cheira a frango, este centro comercial cheira a PODRE. Olhem, fui a ver era eu, é o frango que trago dentro deste saco!” Tenho que salientar o facto de que metade das coisas que dizia eram acompanhadas de um enrolar teimoso da língua e uma diminuição do volume e intensidade da voz à medida que ia falando. Eu lá ia contando o dinheiro e ela ia dizendo: “O seu colega está a contar o dinheiro. Está com pressa. Deve estar a pensar: esta gaja vem me para aqui falar e nunca mais se vai embora. E imagino. Eu vou me embora e vocês desatam a dizer: Já me viram aquela louca? Sim, porque eu trabalho no Egas Moniz, já estou louca.” Mais uma declaração acompanhada de um riso impossível de conter. Depois falou do seu hospital, como o governo quer que os hospitais dêem dinheiro e não prejuízo. Mostrou-se totalmente contra: “Eu disse ao meu chefe: olhe, se isso é verdade então eu empurro-me da janela. Os colegas perguntaram-se estava louca, disse que sim.” Por diversas vezes demonstrou o seu desagrado com a sociedade em que vivemos: “Esta vida está uma merda. Este país, está uma merda. Vocês jovens e formados e estão aqui. Acham justo? Eu não!” Nós assentimos, ela continuou. “E há muitos jovens perdidos, e o casamento. Olhem eu casei me com 21 anos. Com um homem 20 anos mais velho!” Nós sorrimos, dissemos que não havia problema nisso. Ela respondeu: “Há pois, ele morreu à 3 meses, teve um enfarte.” Silêncio… Ela continuou, como se não fosse nada. “A diferença não se notava. Eu ia com ele e com as minhas filhas, ainda nos carrinhos de bebé para as discotecas. Se calhar é por isso que ela odeia discotecas. Por falar nisso, já viram aquelas velhas de saltos e mini-saias nas discotecas? A engatar homens mais novos, miúdos! Depois Caiem e partem-se todas mais as artroses e o carago.” Não parava: “Já se faz tarde e vocês querem fechar isto, dê-me lá a Farah Diba e um livro de Ioga e Acupunctura. Sabem, os americanos têm pistolas de acupunctura. E fazem tudo sozinhos. Self made man. Não posso quando os homens de 30, 40 anos andam para aí a chamarem MAN uns aos outros, parecem uns putos. Mas os americanos é que sabem, fazem tudo sozinhos. Aqui se somos mais inteligentes que os outros somos fornicados pela sociedade!”. Nos íamos sempre dizendo que sim, na ânsia que a senhora se fosse embora. Mas não. “Você tem cara de sono” Dizia ela para o Greenpeace. “Eu estou aqui a dizer parvoíces e nem se ri. Você tem um olhar meigo”. Eu acrescentei, disse que ele era um bom profissional, ao que ela retorquiu: “Não, ele tem um olhar meigo, você tem um olhar sério!”. Sou o livreiro, não há mais nada para dizer. Consigo trouxe também um livro de Tai Chi. Olhou demoradamente para a capa e disse: “Olha a figura de parva desta! Parece uma anormal de braços levantados. Se isto dá felicidade vou ali já venho. Olhem, tenho um amigo oftalmologista, que queria reformar-se, então fingiu que era louco e chegou um paciente e disse lhe ah dou.. eu.. .sei.. não.. Uma nuvem e… sint… olho… mal… sabe?” Isto foi exactamente o que ela disse, nós também não percebemos. E continuou: “Bem, quando os pacientes diziam isto, ele respondia que também tinha muitos problemas. Assim, arranjou, em vez da reforma, um processo disciplinar. Devia-se atirar da janela” O que é que isto tem a ver com Tai Chi? Nós também não sabemos. “Mas olhem bem para ela, parece uma mongolóide (e imitava as poses da mulher!). Parece é a vossa amiga! Eu sei que vocês estão desejosos de ir.” Não, não diga isso… Finalmente conseguimos passar o livro, depois de muita conversa e ela diz: “Tanto dinheiro? Tão me a mexer na carteira! Este país está mesmo mal. Os jovens não têm dinheiro para nada. Tem de levar uma vida horrorosa. É só comer, dormir, trabalhar e ir à casa de banho. Acham essa vida boa? E essas notícias, que dizem que o mundo está em crise, é tudo mentira. TUDO. Eu estive na Europa, e até na vizinha Espanha não é assim! Portugal é o país da Europa com mais psicoses! Lá em casa, quando dão as notícias digo: DESLIGUEM ESSA MERDA! Têm televisões no quarto, usem-nas. Mas eu sei. Quando são jovens não gozam, depois não reparam, mas quando chegarem a velhos vão ver!” Isso é tudo muito interessante, pensava eu, mas agora posso fechar a caixa? Ao fechar a caixa disse: “Lá está ele a contar o dinheiro. Então isso está bem? Se não estiver bem, diga ao seu gerente que estiveram a aturar uma maluca necessitada e com problemas, uma maluca. Bem, o que até é verdade, eu sou maluca. Querem um conselho? Nunca se exponham demasiado, como eu fiz aqui agora. Mantenham-se discretos.” Depois voltou ao Tai Chi: “Sabem o que quer dizer Tai Chi?” O Greenpeace saiu-se com uma boa: “Não, o que é?” e a senhora: “Não sei, por isso é que perguntei” e ele: “AH. Pensei que fosse explicar!” ao que a cliente responde: “Não, não perguntei a si, perguntei a alguém que me explicou. E é o seguinte: Significa caminho para a energia, através da mão e do pé. É.” Depois olhou para o livro de acupunctura e diz: “Olha para este homem Se isto é saudável vai lá vai! Que feio!” Depois centrou a sua atenção no livro de Yoga: “Epah, estas orientais são mesmo bonitas.” Greenpeace não se conteve mais uma vez e chamou a atenção da senhora para o facto de a rapariga da capa não ser oriental. A reacção foi a que passo a descrever: “Pois, não me admira. Elas são todas bonitas assim. O meu irmão uma vez dormiu com uma mulher e quando acordou no dia seguinte disse: O QUE É ISTO!!! E só lhe apetecia saltar pela janela. Daí em diante disse me que quando saísse com uma mulher queria que ela se lavasse primeiro, para ver como ela realmente é. Disse que ele era louco, que elas não fariam isso.” Temos portanto um problema congénito. E já vimos também que a cliente tem um fetiche com atirar-se ou alguém se atirar das janelas. Ao caminharmos para a porta, ela sempre a acompanhar-nos disse o seguinte: “Desculpem estar aqui sempre a falar, só não me cai a dentadura porque não é placa!” E riu-se. Nós ficámos serenos. Ela abana o braço do Greenpeace e exclama: “NÃO ME CAI PORQUE NÃO É PLACA! PERCEBEU? É UMA PIADA! PI-A-DA! VOU DIZER OUTRA VEZ: NÃO ME CAI PORQUE NÃO É PLACA!” Depois, contou um bonito caso da vida real: “Por falar em dentadura, lá uma rapariga que é assistente social foi a casa de uma senhora de idade, e ela tirou a peruca, a prótese do olho e a dentadura. Quando a assistente social a viu saiu a correr pela porta!” Aí está, eu era para acrescentar que ela tinha se atirado pela janela, mas desta vez não. E riu-se, perdidamente com a sua história. Há que frisar que neste momento já eram 23:45, já a maior parte das portas do centro comercial se encontravam fechadas, o que me obrigou a dar uma grande volta. E eis que, finalmente, largou-nos e foi à sua vida. Mas deixou um bocado dela, e nós agradecidos. Volte sempre, o meu blog necessita de si!

domingo, outubro 24, 2004

Inserir bolinha vermelha aqui.

Certamente, os mais atentos, já ouviram falar da polémica em torno do livro AS MULHERES NÃO GOSTAM DE FODER. Por uns míseros 2,5€ podemos descobrir esse mistério que preocupa a humanidade desde o seu nascimento. Escrito por um tal Alvarez Rabo, o livro foi, e segundo o autor, escrito em 21 horas, 23 minutos e 3 segundos. Uma eternidade, portanto… Em Viseu, o livro foi retirado da montra de uma livraria devido a ter sido considerado impróprio. Como não podia deixar este episódio contribuiu e de que maneira para o aumento da popularidade e consequentemente das vendas do livro. A simples presença do livro no estabelecimento, colocado entre os demais livros que vendemos, suscita situações curiosas.
Temos o caso mais comum, que é o do cliente que chega e diz: “Olhe, tem aquele livro?”. Claro que, não sabendo de que livro é que o senhor se estava a referir, a resposta só podia ser uma: Que livro? O cliente continuou: “O senhor sabe, AQUELE livro. E eu continuava a explicar ao senhor que se não me dissesse o título ou o autor que não saberia que livro era. “Aquele livro, que se fala muito agora, aquele…” Depois afastou-se, fez uns telefonemas. E voltou. “Boa tarde…” diz o cliente, e eu respondo na mesma moeda. “Tem aquele livro?” Este cliente deve ter graves problemas, pensei eu. E continuou “Aquele, aquele que tem aquele título, o senhor sabe…” Não, não sei. Não sou adivinho. “É aquele título, eu não posso dizer, não se diz”. Mas que belo contra senso: não se diz, mas lê-se. Adoro os falsos pudicos. Até que me fartei da brincadeira e lhe fui buscar o livro. Ele agarrou o livro como se tratasse da sua salvação. Obviamente que o título fica virado para si, para ninguém ver as imundices que ele anda a ler. Aparecem também alguns clientes que dizem: Quero o livro As MULHERES NÃO GOSTAM DE QUALQUER COISA. Realmente até seria um título apropriado, porque as mulheres não gostam de muita coisa.
Depois temos os clientes a sério, que chegam ao balcão e dizem: “AS MULHERES NÃO GOSTAM DE FODER, por favor.” O por favor no fim da frase, apesar de sinónimo de boa educação, dá um tom extremamente estranho à frase. Ou então: “Vim cá buscar a minha encomenda, AS MULHERES NÃO GOSTAM DE FODER. A sua colega que ligou foi extremamente profissional. Disse o nome com todo o brio e profissionalismo, nem se engasgou ou vacilou. Os meus parabéns.” Pelos vistos adorou ouvir uma mulher a pronunciar o título. Outros ficam maravilhados com o preço. 2.5€. Para uns rabiscos que parecem feitos por um miúdo de 8 anos e um texto por um miúdo de 12., parece me bem.
Como não podia deixar de ser, há sempre um cliente que quer ser maior e melhor que os demais. Chega ao balcão, atira o livro para cima deste e diz: “Agora é que vou perceber porque é que elas não querem!” Sem obter qualquer tipo de reacção, o cliente prossegue, triunfante: “Onde é que se paga, é aqui?!” e continuou “Bem, mas isto é tudo mentira, porque elas querem!”. Como se vê, o senhor era versado na arte das relações e, resta-nos aguardar e observar atentamente, na vã esperança de aprendermos qualquer coisa. “Elas gostam. Quando são bem fodidas gostam! Não acha?” Assentimos e limitamo-nos a aprender, enquanto o homem continuava: “Claro, quando chegam a casa bêbados e a cheirar a vinho elas não querem!”. Frase verdadeiramente sábia, digna de figurar num livro da Arte Plural. Depois, atira o dinheiro para cima da mesa. Muitas e variadas moedas. Em seguida, aponta e diz: “Quanto custa? Pode escolher, tire à vontade!” E lá foi ele, todo feliz da vida, pronto a descobrir um dos maiores e mais bem escondidos mistérios da nossa vida terrena.
E aí está, agora mesmo, mais um cliente na senda do conhecimento universal, chegou ao balcão e interrompeu as conversas que decorriam com os clientes e inquiriu, fanaticamente: “Vendem a playboy americana???” Não, não vendemos, provavelmente, com muita pena da maior parte dos nossos clientes.

quinta-feira, outubro 21, 2004

Hilda Furacão

O Natal aproxima-se a passos largos, e com ele vem todo o caos e aumento no fluxo de pessoas, livros e dinheiro. O que é uma boa notícia. Pelo menos para alguém. Este caos vai aumentando lentamente, quase sem se dar por ele, provocando assim alterações na nossa vida profissional, até se apoderar totalmente de nós. Este aumento no fluxo de pessoas e livros abre também todo um novo mundo de possibilidades. Mais pessoas, mais variedade de pessoas, provavelmente um novo rol de situações caricatas. Aguardamos com expectativa.
Mais uma vez, a minha profissão provou ser uma fonte infindável de conhecimento. Numa noite calma, quase tão calma como a noite de Natal, fiquei a saber o porquê de os furacões terem nomes de mulher. Com a loja completamente vazia (o que neste caso, diga-se de passagem, foi extremamente benéfico porque de outra forma teria sido complicado) entra uma mulher com a mala na mão direita e o cartão de crédito em riste na mão esquerda. Andava rápida e decididamente, com um olhar esgazeado e raivoso, enquanto se abanava como uma cana ao vento. Mal pôs um pé na loja (e ao que tudo indica, já assim era antes de entrar) começou um berreiro infernal. Bem, berreiros na loja até é uma coisa compreensível, mas depois de acontecer algo que, com ou sem razão, despolete reacções mais fortes nos clientes. Desta vez não. Mal entrou desatou aos berros, deixando-me completamente estupefacto. E aviso desde ja que não é fácil. As primeiras palavras dela foram: "A GAJA NAO ME QUER FAZER O VISA MANUAL! EU FAÇO AQUI E DOU LHE COM O CARTAO NA CABEÇA!" Uma entrada no mínimo original. Dirigiu-se para o balcão, e como seria de esperar, bate com a mala violentamente na mesa e diz: "QUERO UM LIVRO! UM LIVRO QUALQUER!". Apesar de ter visto muita coisa, tal como pessoas não saberem o nome do livro que querem e coisas afins, devo dizer que fiquei surpreendido com este pedido, especialmente devido ao que a senhora acrescentou, antes sequer que pudesse tentar falar: "DE ME UM LIVRO! RAPIDO! QUERO IR ALI E DAR LHE COM O LIVRO NA CABEÇA!". Portanto, alem de querer um livro qualquer, queria o livro não para ler, mas para dar com este violentamente na cabeça de alguém. Imparável esta mulher. Na altura não tive o discernimento necessário, mas agora que penso nisso podia ter dado à cliente um livro bastante caro, podia ser que ela não se tivesse importado. Além disso, sendo um livro caro provavelmente seria bastante maior, o que viria a ser crucial para a bonita intenção de dar com o livro na cabeça de alguém. "QUERO UM LIVRO, UM LIVRO QUALQUER, RÁPIDO!" continuou ela, sem sequer nos ter dado tempo para nos mexer. Perguntámos o que queria, ela continuava a insistir que queria qualquer coisa. Em seguida, prosseguiu as reclamações, mas desta vez explicou o porquê de tanta raiva: "ISTO É UMA VERGONHA! A GAJA DA LOJA NÃO ME QUER PASSAR O CARTÃO! NÃO QUER FASER MANUALMENTE NA MÁQUINA! E AGORA DESMAGNETIZOU ME O CARTÃO A CABRA! VOU LÁ E VOCÊ VENDE ME UM LIVRO E FAS MANUAL E EU DOU LHE COM O LIVRO EM CHEIO NA CABEÇA!" Manual na máquina é algo estranho pensei eu. De qualquer forma, não convêm contrariar o bicho, não vá eu ser atacado. Então, com o objectivo de esclarecer tudo isto, ligámos para a UNICRE, para indagarmos da possibilidade de fazer então um VISA manual utilizando o terminal de Multibanco. O curioso (apenas para quem não está habituado a este tipo serviços) é que o jovem que atendeu do outro lado negou peremptoriamente a existência deste serviço, remetendo nos assim para a utilização do velho visa manual. Claro que, no dia seguinte, o venerável e sábio mestre livreiro elucidou-me e mostrou-me como se faz. Depois de explicarmos isso com tremenda dificuldade à senhora (enquanto tentava falar ela só mencionava as palavras LIVRO e CABEÇA de forma repetida, desconexa e, diria mesmo, assustadora), ela lá acedeu em fazer o Visa manual. Enquanto preparava o engenho, ela deslocou-se para ir buscar um livro qualquer, vociferando: "DE ME UM LIVRO! UM QUALQUER! E RÁPIDO, PORQUE QUANDO ESTOU NERVOSA FICO PERIGOSA". Acho que isto era desnecessário, porque alguém que menciona diversas vezes a sua vontade imparável de bater na cabeça de alguém com um livro não necessita propriamente de avisar que é perigosa. Acho que se nota. Não sei, se calhar sou só eu, mas eu sou demasiadamente atento e picuinhas com os detalhes. "NA ÁFRICA DO SUL ISTO NUNCA ACONTECE E ELA VAI VER!" Claro, na África do Sul já tinham dado um tiro ao comerciante, especialmente a um português. Por sua vez, ela saia e levava ela um tiro. Ficava tudo bem. Depois de ter pegado num livro de Margarida Rebelo Pinto, essa Bíblia da violência, dirige-se para o balcão. "AQUELA GAJA.. O MEU CARTAO TEM UM PLAFOND DE 10 MIL EUROS! E ELA NÃO ME ACEITA! É UMA VERGONHA! AQUELA GAJA, TOU FARTO DE ESTRANGEIROS! FAÇA ME LA O VISA ENTAO E EU VOU LA! E DESMAGNETIZOU ME DE PROPÓSTIO". Devo acrescentar, para fazer justiça, que, obviamente, o cartão não estava desmagnetizado. Lá fechei a conta, ela pagou, guardou as coisas, e lá foi ela, livro em riste numa mão, mala e cartão noutra, tão rápida como entrou. A seguir, ficámos a observá-la na loja em frente. Ela gritava e gesticulava como uma maníaca, e a senhora da loja estava assustada. Nós deste lado sempre à espera do momento em que ela desse com o livro na cabeça, como tanto prometeu. E por uma ou duas vezes temi o pior, pensei que ela fosse mesmo partir para a agressão, pensei que fosse tirar de esforço a empregada. Mas não, ficou-se pelas intenções. E foi se embora, tão chateada como nunca.
Quando pensámos que tinha sido o fim da passagem do furacão, uns dias mais tarde, e aparentemente mais calma volta à loja. E para quê? Para trocar o livro da Margarida, porque o achou entediante. Ou, para citá-la "Boring...". Quando me deu o talão para efectuar a troca, verifico que o talão não corresponde ao livro. Então, explico-lhe o sucedido e pergunto se tem o talão certo. A mulher, até então calma e civilizada, esplode novamente: "O QUE? ESTA A DUVIDAR DE MIM? EU COMPREI AQUI O LIVRO! ESTA A VER O SACO? O PREÇO? EU COMPREI AQUI! NÃO, ISTO É UM ULTRAJE!" Com os berros, o meu cabelo foi violentamente projectado para trás, deixando o de tal maneira que ainda hoje não se move dessa posição. Talvez seja medo. Não o censuro. Expliquei-lhe, calmamente, como deve ser, que não era isso que eu estava a dizer, que apenas queria saber se tinha o talão para saber se tirava um talão novo ou não. Ela assentiu com a cabeça, mas o olhar violento e lunático continuava. Depois de efectuada a troca, ela foi embora, sempre a reclamar com qualquer coisa, seja a má impressão da factura, o preço do livro, o papel do livro, o ar condicionado estragado. Deve ser da oposição. Digo eu, mas eu não percebo nada disso. Alias, nem sei bem de que é estou a falar. Até breve, espero eu!

quinta-feira, outubro 07, 2004

Eixo do Mal

É sobejamente conhecida a minha aversão pelos telefones. Seja pela senhora que quer livros em Inglês e cujas palavras são completamente imperceptíveis para o ouvido humano ou pelo senhor que reclama desesperadamente porque o seu livro não chegou, não gosto de atender telefones. Numa das tardes que passou, ia eu no meu oitavo dia consecutivo de trabalho, o telefone toca, como se fosse uma sereia perdida no alto mar que me enfeitiça com o seu canto misterioso. Dirijo-me para ele quando verifico que não se encontra ninguém nas minhas imediações, e pego no telefone. A chamada é automaticamente atendida, e ouço do outro lado: “TOU CHIM? OLHE, ESTA AI UMA CHENHORA QUE ESTABA A CUMPRAR UNS LIBROS?” Bom, pensei eu, deve ser um colega de outra loja, talvez nortenha, que deve ter encontrado algum livro de alguma encomenda que tenha sido feita. Perguntei-lhe que senhora era e qual era o livro, a resposta foi: “ESTA AI A CHENHORA? CHIM, ELA FOI CUMPRAR LIBROS, QUAL É QUE ERA JACINTA?” e ao longe, ouve-se, com uma voz como se fosse de um rancho foclórico: “ACHO QUE ERA UMA CHEBENTA!”. O senhor continua: “OLHE, COMPROU UMA CHEBENTA, AINDA ESTA AI A CHENHORA?”. Disse lhe que não estava ninguém na loja, e a reacção foi: “NUM ESTÁ? ENTÃO POR FAVOR CHAME A PELO ALTEFALANTE!” Perguntei ao senhor o que desejava da senhora, pensando ser uma cliente, e obtive a seguinte resposta: “CHAMA-CHE ANA PAIVA, FALE NO ALTEFALANTE E DIGA PARA VIR PARA CACHA!”. Disse educadamente ao senhor que não podia fazer isso, que a senhora não se encontrava na loja. “MAS QUE LIBROS LEBOU HM?” Não lhe sabia responder, ele continuou. “CHAME NO ALTEFALANTE, POR FAVOR.” Expliquei que não podia fazer isso, que tinha que ser alguém da família a efectuar tamanha façanha. A resposta surgiu rapidamente: “MAS EU CHOU DA FAMILIA!!” gritou o senhor, inflamado. Tive que elucidar o senhor e explicar que eu é que não era da família. “AH POX, TEM RAZÂO…” disse ele, conformado, despedindo-se em seguida.
Agora apresento-vos uma das personagens mais caricatas que já entrou nesta loja e já figurou neste blog: BIN LADEN. E quem é bin Laden, perguntam vocês? A resposta surgirá em breve. Num dos meus primeiros dias como Livreiro, contaram-me a lenda de um senhor africano, que fala algo entre o crioulo e o português, que chega à loja e procura o bin Laden e livros sobre ele. Ora, pensei rapidamente que fosse uma partida destes malandros, estes fuinhas que são os meus colegas. A verdade é que, uns dias mais tarde, curiosamente, a maneira como vejo o mundo mudou radicalmente. Numa manhã sossegada, abandonado ao balcão como de costume nas manhãs de sábado, entra uma personagem, andar embriagado e olhos encarniçados. Chegado ao balcão vocifera: “EH AJJFAMFAIOHFAPLÇLLMFLÇAJIEFE BIN LADEN? ONDE ESTA? ENCOMENDA?” Sem saber o que dizer, pedi que repetisse. Só obtive isto: “BIN LADEN, BIN LADEN (aumentando de tom) ”. Disse lhe que o livro estava esgotado, e lá foi ele, repetindo a frase BIN LADEN até sair da loja. As visitas vão se repetindo, sempre ao sábado, e o nosso amigo Bin Laden é já uma relíquia do estabelecimento. Na sua última aparição, vinha visivelmente chateado, para além da embriaguez normal. “BIN LADEN, ONDE ESTA, JÁ CHEGOU ENCOMENDA? BIN LADEN!” Disse lhe que está esgotado ainda, que está difícil. Ele diz: “ESGOTADO? ESGO-TA-DO?” Mas, não contente com a exibição pensei em mostrar-lhe o livro sobre a Al-Qaeda. Assim o fiz. Quando lhe passei o livro para as mãos, ele olhou o livro, virou o ao contrário, voltou o novamente e disse, espantado: “Ehhhhhhh…” Depois, colocou o livro na mesa, com a capa para cima, e com o dedo começou a ler o título: “A-L Q-A…………”. Volta a virar o livro e diz: “TEM O SEGUNDO?”. Que segundo, ainda estamos para saber, só ele sabe do que fala… Depois, não contente abriu o livro e exclamou: “XIIII FOOOOODA-SE!” Seguiu-se uma pausa e depois: “NÃO QUERO. ADEUS, BOM TRABALHO”. E assim se despediu como sempre, com o desejo de bom trabalho e um vigoroso aperto de mão.
Bin Laden, onde quer que estejas, que Deus te acompanhe na tua busca, e que encontres o vilão líder do eixo do mal

sábado, outubro 02, 2004

Lenda Viva

Há situações realmente curiosas. E pessoas realmente inacreditáveis. Não me canso de repetir, aliás, não posso fazer outra coisa. É verdadeiramente irreal muito do que se passa neste estabelecimento denominado comercial.
Temos clientes, que, quer pelo andar cambaleante ou indeciso quer pelo ar tresloucado ou desligado da realidade, mostram logo que quando abrirem e moverem os músculos da sua boca não vai sair coisa boa. Mas, caros amigos, estes não são os piores. Nem de perto nem de longe. Os mais perigosos são aqueles que se apresentam como sendo pessoas sãs e equilibradas. Por exemplo, vejam este caso. Uma mulher, 30 e poucos anos, vêm comprar um livro. Tudo normal. Escolhe o livro, demora o tempo que tem a demorar sem exageros, leva o Código Da Vinci. Muito normal. Quando vai pagar, pousa os sacos em cima da mesa, juntamente com a sua mala. Aí, começa a desvirtuar-se. “Olhe, pode me tirar a carteira da mala?” Seria uma pergunta com rasteira? Teria que responder afirmativa ou negativamente? Com muitas questões em mente, decidi seguir à risca as instruções da cliente, tirando a carteira da mala. “Agora, pode tirar-me o dinheiro da carteira?” Devo ter feito um ar espantado, e ela continuou: “Tire, por favor, é que eu tou chea de verniz e não posso mexer em nada.”. Bom… Muito bom… Os pedidos seguiam-se: “Guarde o troco”; “Ponha a carteira na mala”; “Feche a mala”. E depois o melhor. “Espere, espere! Eu agora estico as mãos, e o senhor enfia me os sacos nos dedos, mas sem tocar nas unhas, pode ser?” Vamos a isto, disse eu, nunca virando a cara ao desafio. Então lá estava ela, manápulas esticadas, unhas vermelhas e compridas apontadas na minha direcção, quais punhais afiados, e eu cheio de sacos de lojas de mulher na mão. Aí, lentamente para não enfurecer o animal, fui colocando um a um dos sacos nas mãos da senhora. Tarefa difícil e que requeria demasiada perícia. Depois de estar tudo colocado, lá seguiu ela, mãos paralelas ao chão com os sacos pendurados. Entrou como uma pessoa normal, saiu como uma louca.
Existem comportamentos que eu não consigo mesmo explicar. Quando estou atrás do balcão e me pedem um livro que eu sei que se encontra na loja, ou que já pesquisei e vou confirmar se temos, eu digo para esperarem um momento e começo a dirigir-me para o local do livro. Agora reparem: o balcão encontra-se no canto superior direito da loja, o que significa que não há quase nada junto ao balcão. Mas, ainda assim, quando começo a sair detrás do balcão, as pessoas que estão à minha frente, dirigem-se na mesma direcção que eu, encurralando me na única sáida do balcão. Agem como se tivessem um íman poderosíssimo a ligá-las a mim. Eu movo-me para a direita para sair do balcão e posteriormente procurar na loja, e as pessoas, em vez de esperarem quietas, começam também a mover-se para a direita, encurralando me entre a mesa e o balcão. Mas porquê? Porquê? Querem saltar às minhas cavalitas enquanto procuro? Ir para o meu colo? Porem se de quatro patas para eu as cavalgar triunfantemente até ao livro? Não entendo. E nem sei se quero entender. Há coisas demasiado complexas para o meu pequeno e ignorante ser.
Um destes dias recebi a visita de uma personagem no mínimo genial. Baixo, gordo, meio careca, com óculos redondos e com um apetite por arquitectura, mas não era arquitecto. Faz vos lembrar alguém? Os iluminados, discípulos de Seinfeld, saberão do que falo. Aproximou-se do balcão, e naquele estilo envergonhado e desconexo pediu-me revistas Arquitectura, porque segundo ele: “Apesar de não ser arquitecto, gostava muito de ser…”. Eu tive de olhar duas vezes para ele, para me certificar que não era mesmo o George. Lá o levei para ver a revista, mas ele ficou um bocado desiludido com a nossa oferta. Saiu, desapontado da loja. Uns largos minutos depois, enquanto atendia mais um cliente, aparece ele, de revista na mão, colada ao peito com a cara virada para mim. Entra quase a correr pelo estabelecimento a dentro, interrompendo o cliente que estava a falar comigo e diz: “Vê? Vê? É esta!” Enquanto ajeita os óculos, mesmo como o George. Por momentos, tenho que admitir, arrepiei-me. Parecia que estava defronte duma lenda viva. E saiu, tal como entrou, correndo, revista junto ao peito, todo desconexo e trapalhão.
Estou definitivamente de volta…

sexta-feira, outubro 01, 2004

O Regresso do Livreiro

O Livreiro Contra-Ataca, Um Novo Livreiro, O Livreiro Fantasma, O Ataque do Livreiro, etc, já perceberam a ideia. Voltei. Depois de um interregno (demasiado longo, em abono da verdade) eis que volto a teclar, que é o que faço melhor. Aliás, é única coisa que faço. E agora que penso nisso, não faço nada bem. Raios.
Pois bem, porquê a minha ausência? Mudança é a palavra que melhor define a situação. Saiem pessoas, entram outras, mas o sentimento de ausência não desaparece. Boa sorte, LFL, és grande. Depois surgiu um novo período de ambientação, e agora tudo correr pelo melhor. E o trabalho tem sido tanto que nem tem dado para estar atento às personagens do balcão. Mas que existem, existem. A minha relutância em escrever estava a tornar-se deveras incomodativa. Até que hoje, uma senhora mudou o meu destino...
Depois de um início de tarde caótico, com três nobres e bravos trabalhadores atrás de um balcão, chegou a calma mais que merecida. Então, depois de alguns minutos em que a loja permaneceu quase tão vazia como a galeria de troféus do Sporting, entrou uma tia e a sua filha juntamente com uma amiga. E lá estavam elas, junto às novidades a debitar informação e conhecimento literário. Até que se decidem pelo Bosque dos Pigmeus. Nada mal. Ao aproximar-se do balcão, a senhora parece começar a coxear, e acompanha os passos vacilantes com uns sonoros: "Ai.. Ai.". Fiquei ligeiramente assustado, tenho que confessar. Ao chegar ao balcão, diz, gemendo e por entre dentes: "Tem um penso?". Nesse momento, acho que terei feito a maior cara de parvo da minha vida, pelo olhar da senhora. "Tem um penso?" Repetiu ela "Ai.. É que estou a sangrar". Bom, pensei em ir à carteira buscar o Evax para emergências, mas a senhora interrompeu-me, dizendo: "Ai.. Tem um lenço de papel, ou um pano? Ai." E eu respondia sempre negativamente. Ela insistia: "Ai. Mas não tem nada?". Respondo negativamente novamente, e é aí que entra em cena a filha. Chegada perto da mãe, olha para esta, leva as mãos à boca, talvez para suster o vómito e diz: "AAAAAAAH, mãe que é que lhe aconteceu? Que horror mãe!". A resposta foi célere: "Filha, bati com o pé em algum lado, estou a sangrar muito, muito, ai. Ai.". A filha, assustadíssima retorquiu: "Sente-se mãe!" Ao sentar-se, a senhora, como se fosse o seu último desejo pede: "Filha, vai aí à loja da frente (Vista Alegre) e traz me um pano, vai." Pensei que ia acrescentar que se morresse, que nunca deviam esquecer a mãe, mas ficou por ali. Depois, a muito custo, lá se levantou e se dirigiu cambaleante para o balcão, de livro em punho. Quando pego no livro para passar na máquina, diz me: "Olha, deixe estar, já cá volto, estou AGONIADA." E saiu. Obviamente que não voltou. O sangue perdido deve ter sido demasiado. Que Deus a tenha. E, muito obrigado, onde quer que esteja, pelo trabalho a que se deu para eu voltar a escrever no meu blog. Estou infinitamente agradecido, mas não era preciso chegar a tanto.
As loucuras continuam. Enquanto arrumava a secção do turismo, devido a factores internos, e depois de cuidadosamente ter removido um por um dos livros da prateleira e me encontrar em cima do banco a colocá-los novamente um a um, e usando orgulhosamente o meu distintivo de livreiro, eis que surge da bruma um homem que sem qualquer tipo de aviso dispara: "trabalha aqui?" O não ecoou a minha cabeça, olhei duas e três vezes para a criatura, mas decidi ficar pelo sim. Ele ficou surpreendido. Já hoje, enquanto carregava uma pilha de livros, uma senhora perguntou-me simplesmente: "É funcionário?". Simples, mas terrivelmente eficaz na idiotice. O oposto voltou a acontecer, com uma jovem loura que parecia perdida numa meio da loja a ser abordada violentamente por uma professora que procurava a Agenda do Professor. Ela levantou os braços, e dise: "Não, não, não trabalho!". E fugiu amedrontada da loja. É para sentirem na pele o que nós sofremos no dia a dia.
Nem tudo é o que parece, e o seguinte caso que passo a relatar mostra mesmo isso. Um homem, talvez ainda abalado por ter ultrapassado a barreira dos 30, queria um livro para uma menina de 10 anos. Bom, lá fui eu com ele até ao local onde tais livros crescem, e indiquei-lhe alguns. Como sempre, não pareceu minimamente convencido. Aí, pensei em puxar dos galões, e assim fiz. Dei-lhe o Diário da Princesa. É um diário, é cor-de-rosa, tem uma princesa. Parece-me bem. Ele olha cuidadosamente para o livro, examina-o detalhadamente, primeiro perto e depois longe dos olhos. Até que me entrega o livro e diz: "Não, este não. É muito perigoso." Claro, quando disse que o título era o Diário da Princesa, queria mesmo dizer que o título é Diário da Princesa Assassina e Terrorista Que Tenta Conquistar o Mundo Através de Atentados Em Nome de Satã e Do Batatoon e Que Demonstra Têndencias Homicidas e Suícidas e um Amor Doentio Por Bananas". Se fosse para uma menina minha conhecida também não comprava.
Para finalizar, atendi um casal já quase a entrar na 3ª idade que queria roteiros de Lisboa. Ao levar-los ao local e entregar-lhes o respectivo livro, tentaram pagar-me ali, no local, longe do balcão. E não saíam de lá enquanto não aceitasse o dinheiro. "Quanto é? Quanto é jovem? Diga lá quanto é." E eu expliquei-lhes que tinha de passar o livro na máquina, mas nem isso os demoveu. Nem sabem o quão persistentes podem ser, estes velhinhos inocentes.
Ah... É bom estar de volta...

quarta-feira, setembro 22, 2004

Back in Black

Ah, o regresso ao trabalho depois da folga é sempre algo de especial. Durante um ou dois dias parece que nos esquecemos de tudo o que faz parte da vida de livreiro. Mas, ao voltar à loja, ao colocar-me, qual espantalho, atrás do balcão, volta tudo a ser como era dantes, a dura e inóspita realidade acerta-nos em cheio e devolve-nos à nossa mísera condição humana. Para os leigos, e numa linguagem compreensível, curto é tar de folga.
Espantalho é um termo apropriado. Quando a loja está vazia, muitos clientes passam à porta, ou espreitam pela montra, olhando fixamente para nós. E não entram. Alguns vão a entrar, mas ao verem a loja vazia e O Livreiro no seu posto heróico atrás do balcão, saiem imediatamente. Parece que os ouço, ao longe, como se a sua voz fosse trazida pelo vento seco do verão: “Olha, um livro giro, vou entrar. Ah não, está ali o espantalho, tenho medo, volto noutra altura.”. Por vezes, a loja encontra-se cheia, mas o balcão deserto. O espantalho volta a atacar. Alguns clientes, já com alguns livros na mão, vão olhando de soslaio para o balcão. E quando algum destemido cliente ousa enfrentar olhos nos olhos o espantalho do balcão, correm todos para trás dele, para aproveitarem que enquanto ele distrai o espantalho.
Durante a semana que passou, tivemos a loja ocupada. Não, não foi por terroristas sedento de vingança. Algo pior. Auditores. Todos os dias, enquanto a loja estava aberta, lá estavam eles. Sentados, junto ao balcão. Eu bem vi nos olhos deles, o olhar de quem vê o sofrimento alheio dos funcionários obrigados a permanecer em pé durante as 8 horas do serviço, e eles, sentados, quase sempre a ler, parando apenas para apontar o preço. Alguns tinham alguns problemas nos sentidos, pois não captavam os preços que eram ditos no balcão. Outros ainda revelaram um atraso temporário substancial, não sendo raro ouvir: “Olha, desculpa (enquanto mascavam pastilha) qual foi o preço da terceira venda à meia hora atrás?”. Além de bons ouvintes, eram perspicazes. O melhor momento do dia ocorria cada vez que, estando os livreiros a arrumar a loja ou a atender outros clientes, alguns clientes se dirigiam aos auditores e pediam este ou aquele livro. O olhar de pânico na cara deles era inenarrável. Já partiram, tão rápido quanto chegaram.
O povo não pára de me surpreender. Com a atribulada abertura do ano escolar, a caça aos manuais e livros de leitura e apoio vai no ponto alto. E pedem-nos de tudo: “Tem o livro Serras e Montes, ou Montes e Vales, ou lá o que é.” Ou seja, A Cidade e as Serras de Eça de Queiroz. Temos também aqueles que procuram “A Verdade da Mentira” (Falar Verdade a Mentir, de Almeida Garrett). E claro, não podemos esquecer A Breve História da Lua, de António GUedeão. Ainda agora veio um jovem adquirir a obra de Gedeão. Dei-lhe o livro, ele olhou para ele rapidamente e correu para junto da mãe. Ao chegar ao seu lado, coloca o livro à frente dos seus olhos. A senhora fica visivelmente enfurecida e berra: “TIRA ISSO DAQUI. NÃO TE VOU COMPRAR ISSO, NÃO VOU PAGAR ISSO! SAI!.” O rapaz faz um ar envergonhado e diz à mãe, num tom triste: “Oh mãe, mas é para a escola, a professora mandou ler antes de ir dormir…”. A resposta não se fez esperar: “QUERO LÁ SABER SE É PARA A ESCOLA, E ANTES DE DORMIR A ÚNICA COISA QUE VAIS FAZER É REZAR! AGORA TIRA-ME ISSO DA FRENTE PORQUE NÃO TE VOU PAGAR ISSO!”. A criança veio, depois, pagar o livro sozinha, e visivelmente abalada.
Muitas vezes dizem-me: “Oh Livreiro, tu que dedicas a tua excelsa vida e imensa obra aos livros e à tua suprema loja, não consegues ver os Ídolos.” Eu, olho sabiamente para os delatores e, respondo que não preciso. De forma alguma. Várias vezes por dia temos actuações musicais, quer dentro da loja quer à frente da loja. Certos clientes, após serem atendidos, começam a cantarolar violentamente. Ninguém os pára. Outros, com a música que ecoa lá fora, vão cantarolando, nunca acertando nas letras ou no tom. Muitas vezes, ao passarem lá fora a cantar, o som começa a ouvir-se, primeiro baixo, como se fosse uma ambulância a aproximar-se. Quando atravessam o breve espaço da porta, o som invade e preenche o interior da loja, causando muitas vezes o pânico. Depois, afasta-se lentamente, com o som a diminuir de intensidade, e a calma a reinar.
Outro espectáculo interessante é ver alguém a consultar um livro ter um ataque de soluços. Depois, depende de cada pessoa. É bastante engraçado ver uma pessoa, junto a uma mesa cheia de livros, a consultar os livros, e mais ou menos a cada página que passa, dá um saltinho abixanado, geralmente acompanhado de um som não muito edificante. Cada folha, cada salto. Uns abanam-se mais que outros, que apesar de não saltarem tanto, são bastante mais sonoros. E muitas vezes vêm também falar connosco, aos saltinhos e aos soluços. É bastante difícil suster o riso.

quinta-feira, setembro 16, 2004

Doenças

Nem tudo tem graça neste espaço que a raça humana apelidou de loja. Aliás, nem há assim tanta coisa engraçada agora que penso nisso. Hoje, atendi um cliente. Chegou ao balcão, e parou para consultar o livro que carregava nas suas mãos. Pelo estado delas, pulso com um bruto relógio de ouro, via-se que era um senhor que levava uma vida dura. Deu mais um trémulo passo rumo ao balcão e chegando perto deste, deixa cair violentamente o livro em cima do balcão. O livro não cai por milímetros. A chave do seu BMW escorrega-lhe também pelos dedos, demonstrando algo que parecia inegável. Este homem, com porte atlético, relógio de ouro e BMW, sofre de Parkinson. Digo-lhe boa noite, ele não responde. Até a voz está afectada, pobre homem. Pensei de imediato em fazer lhe um desconto. Quando lhe disse o valor, deixou cair o cartão AMERICAN EXPRESS em cima do balcão. Novamente, a doença não o deixava segurar nada nas suas frágeis mãos. A natureza é bela, mas cruel por vezes. Processei a venda, pensando nas vicissitudes da vida mundana que levamos. Ao entregar-lhe o cartão, ouvi um ténue obrigado. Afinal, ele fala. Nem tudo está perdido. Fiquei um pouco mais em paz. Depois, lá seguiu ele, com a sua mulher loura, a caminho do sem BMW. Deus o proteja.
A ignorância é felicidade. Pelo menos é o que dizem. E se é verdade, anda por este mundo muita gente feliz da vida. Parece que os vejo agora, aos magotes, saltando pelos campos. Burros que nem uma porta. Uma senhora procurava uma GEOGRAFIA DO MUNDO. Queria uma geografia do mundo, dizia ela, apesar de eu lhe explicar que só tínhamos atlas. Segundo ela, uma geografia do mundo tinha: “MAPA DO PAISES DO MUNDO, MONTANHA DO MUNDO, RIO DO MUNDO!”. Tentei, com todas as minhas forças, explicar-lhe que os Atlas também continham tais informações. Acedeu, contrariada, a consultar um Atlas. Ao folheá-lo, parece que vislumbrou a face de Deus. Boca entreaberta, olhos escuros esbugalhados. Fecha o livro, visivelmente desiludida. “AFINAL QUERO SÓ MAPA MUNDO!”. O problema é que não temos mapas desse género. Mas, a senhora insistiu: “COMO NÃO TEM MAPA MUNDO?”. Não temos, não tivemos, não vamos ter, provavelmente. Pareceu convencida e afastou-se. Depois, qual Obelix a aproximar-se do caldeirão tentando enganar Panoramix e beber a mítica poção, a senhora passava por aqui e falava comigo de ângulos em que eu não a conseguia ver: “TEM MAPA MUNDO?” dizia, alterando ligeiramente a voz. À terceira ou quarta, passou à minha frente, e enquanto perguntava fazia um rectângulo com as mãos: “TEM MAPA? PARA POR PAREDE.”. Finalmente, decidiu-se por um mini Atlas. E lá seguiu, feliz.
Ainda há momentos, tivemos um jovem, com o cabelo à Beckham (tipo, como ele utilizou durante bastante tempo, talvez um mês, preso atrás) a perguntar pelos mini livros. O que eram, para que serviam. O jovem estava maravilhado. É então, no meio do delírio, que reparou no mini livro com o título ZARATRUSTA. “ZARATRUSTA… QUÉ ISSO, UMA DOENÇA?!”. Expliquei-lhe, e ele, como sinal de agradecimento, levantou o seu polegar e saiu em direcção a outros livros.
Num momento calmo da loja, uma jovem que deveria andar na casa dos 14 anos, não mais, aproxima-se do balcão. Como seria de esperar, não disse nada antes de passar à razão da sua vinda ao respeitável estabelecimento. Disparou: “ONDE ESTÁ O CINEMA?” Sparta, o velho Sparta, estava ao balcão, enquanto eu arrumava os livros. Olhou para mim, calmamente. Via-se nos seus olhos cansados que nem sequer tinha percebido bem a pergunta que lhe tinha sido feita. “Sabes onde está?”, perguntou-me. Apontei-lhe a zona dos livros práticos, onde estão os livros de cinema. Ele indicou à jovem o caminho. Ela bateu o pé e exclamou: “NÃO! ONDE ESTÁ O CINEMA! AQUI! AQUI NO CENTRO!!!”. Bateu novamente o pé, e saiu furiosa da loja. Devíamos proibir a entrada a raparigas que estão a ter o período pela primeira vez. Ainda pensei dizer a Sparta para segui-la e dar lhe o livro: O LIVRO DO PERÍODO. Mas, Sparta parecia exausto.
Dia após dia, a caça ao desconto perdido (obrigado LFL) continua. Em várias ocasiões manifestei ao meu superior mestre livreiro, esse mito do meio fundo movido a tabaco, que deveríamos criar uma nova categoria de descontos, categoria essa que devia figurar em letras garrafais na factura. Proponho a criação, para aqueles clientes com Gold Card e nome pomposo, de categorias como: DESCONTO PARA PEDINTES, DESCONTO PARA DESALOJADOS, DESCONTO PARA POBRES, DESCONTO PARA ANORMAIS, DESCONTO PARA PERSONAGENS, DESCONTO PARA MENDIGOS. Nos casos mais extremos poderíamos ter DESCONTO PARA ANORMAIS. Enfim, a lista pode ser interminável. A estupidez também o é.

Os Imortais

Depois de um breve hiato cá está o Livreiro novamente ao vosso dispor. Mas não abusem, por favor.
Bom, recentemente, em mais uma das minhas incursões de âmbito profissional por territórios livreiros, vi-me obrigado a arrumar os livros do Diário de Sofia. Movido por uma curiosidade masoquista, li a contra-capa do terceiro livro, na esperança de desvendar o mistério da idade de Sofia. E eis que, para meu espanto, Sofia, ao entrar para o 12º ano, ainda tem dezassete. Ou seja, 10º, 11º e 12º com dezassete anos. Mas, desta vez menciona que tem quase dezoito. Não te preocupes Sofia, quando acabares o curso de Medicina já tens dezoito. É o realismo da escrita que tanto deve atrair as jovens. Força, continuem. E agora, temos o diário de Mariana. Quem é Mariana? Não sei, mas se for imortal como a Sofia temos sucesso garantido. Melhor, se comprarem o Quinto Livro do Diário de Sofia bem como o Diário de Mariana, em vez de serem forçosamente submetidos a sessões com um psiquiatra para o resto da vida, ganham um diário. Pois é amiguinhas, vocês mesmas podem vir a ser imortais como a Sofia. Mas, desde já vos digo algo, se a Sofia e Mariana se degladiarem até à morte e consequente decapitação porque no fim só pode haver uma, eu compro já!
Imortal é a questão dos descontos. Sim, ainda encontramos almas poderosas que procuram ascender ao céu dos descontos por todo e qualquer meio possível. Temos o caso do senhor que, ao exigir o desconto, refere que é bastante amigo de um dos nossos colegas. Ao verificar a minha desconfiança, disse que não se lembrava do nome, mas que era um rapaz de cabelo escuro. Bom, sendo que na loja existem apenas 5 rapazes que correspondem à descrição... Não quis embaraçar mais o senhor e deixei-o ir. Já uma senhora, com um ar confiante e vencedor, chegada ao balcão e depois de ter atirado devidamente os livros para cima deste com a habitual delicadeza, pede o seu desconto. O meu colga pergunta-lhe porquê. Ela diz que é nossa colaboradora. Um silêncio negro instalou-se. Queríamos ouvir mais. Ela, reparando na nossa indisfraçável desconfiança, prosseguiu: "Sim, sou vossa colaboradora. Sou a vossa fornecedora de RECORTES DE JORNAIS!". Se alguém merece um desconto é esta senhora. Genial, brilhante, inovadora. Ouvimos diariamente várias desculpas. Mas, esta, pela originalidade, merece o livro gratuitamente numa bandeja. Pensei em convidá-a para actuar em casamentos ou despedidas de solteiros. Quem sabe, iniciar uma carreira de artista? Recortes de jornais, portanto... Muito bom.
Falando em genialidade, temos o típico caso da apurada e trabalhada pronúncia inglesa de alguns clientes. Enquanto trabalhava com umas facturas, um senhor apresenta-se pelo meu lado direito e pergunta: "Tem o livro CINK?". Parei um segundo para pensar. Nesse segundo, tenho de discernir rapidamente o que o cliente realmente deseja. Sem demoras, acrescentou: "cink. CINK. PENSAR!". Boa, não digas a ninguém para pensar junto à àgua, senão ainda se afoga. Lá fiz a habitual e mandatória busca que veio revelar bastantes livros com THINK (ou cink, como preferirem) no título. Pergunto ao senhor se ele sabia nome do autor, ao que ele responde: "Se me disser qual é eu digo-lhe o nome". Descartes... Nietzsche... Heiddeger... Nada se compara a este homem e à sua mente avançada.
O novo livro de Isabel Allende, Bosque dos Pigmeus, tem se vendido bastante bem, como não poderia deixar de ser. E, sendo um favorito do público em geral, já teve o seu nome distorcido das mais variadas maneiras, entre as quais: O BOSQUE DOS COGUMELOS e o O BOSQUE DOS PIGMENTOS. Já o Código Da Vinci Descodificado continua a ser muitas vezes denominado como o DESCODIFICADOR. "Isto é o romance, já tenho. Tem o DESCODIFICADOR?" perguntam os clientes. Não sei que pretendem eles descodificar, mas se querem ver mulheres desnudas em actos impróprios para menores esqueçam. Um livro que vai dar que falar é Eargon, um livro sobre um rapaz e um dragão, escrito por um jovem de 15 anos. Que, se lermos no livro afinal tem 20. Enfim. Diversos clientes têm demonstrado interesse no livro, e a pergunta que mais vezes ecoa através do ar corrompido pelo belo sistema de ar condicionado é: "É uma trilogia? Onde estão os outros?". A obsessão humana pelas trilogias é extremamente curiosa. Sai um livro, o primeiro do rapaz, e o público já pergunta pelos outros dois. Vendo bem, soa muito bem dizer: "Ah, sim, já li a Trilogia. Sim, três livros. Uma trilogia. Vejam como sou fixe." Só posso imaginar os fãs do Harry Potter: "Trilogia. Bem, eu tou a ler uma... hmmm... pois...". Pentalogia não soa minimante bem, quanto mais heptalogia. Já sabem, para todos os futuros e presentes escritores, a Trilogia é o caminho. Palavra de Livreiro.

sábado, setembro 11, 2004

Clic

Um dos cantos da nossa loja está atulhado de BD. Todo e qualquer esforço para o arrumar vem sempre a revelar-se algo de sobre-humano. Mas, atenção, nós nunca desistimos. Na BD encontramos um pouco de tudo para todas as idades. E existe uma BD em especial que tem merecido maior destaque. É uma publicação para adultos, do autor Milo Manara. Existem várias obras, mas a mais curiosa parece ser a trilogia O CLIC. Já não é a primeira vez que, as BD de Manara são encobertas por algum monte de outras BD, talvez por alguma senhora mais zelosa. Mas, mais cedo ou mais tarde, algum transeunte repara nos seus encantos e coloca-a no seu devido local. E de que é que trata O CLIC? Este clic, refere-se a uma máquina que apenas com um simples e inocente clic, deixa as criaturas do sexo feminino tresloucadas de desejo. Ora, parece-me correcto e extremamente propositado. Imaginem um cientista, magnifico estudante e com um futuro brilhante à sua frente, quando recebe os parabéns dos seus professores: “Parabéns rapaz, tens um grande potencial. Tão grande, que podes um dia vir a fazer algo para o bem da humanidade e salvar o mundo”, e o cientista responde: “Qual quê, vou inventar uma máquina para ver gajas nuas”.
Outro fenómeno curioso é o livro O DIÁRIO DE SOFIA. Este livro conta a história de uma jovem na sua adolescência, e tem sido um enorme sucesso.
Mas, algo de estranho se esconde por trás desta Sofia. Talvez ela não seja tão inocente como quer fazer parecer. Senão vejamos: no primeiro livro, a Sofia tem 17 anos e está a entrar para o 10º ano. É no mínimo de estranhar, com 17 anos estava O Livreiro a ser inundado de gema de ovo e cebola, enquanto me pintavam a cara com verniz, nas praxes da Universidade. E ela no 10º ano. Não sei, mas pode ser sinónimo de uma vida ímpia, envolvendo substâncias ilícitas e actividades criminais, assim como insucesso escolar. Mas, há mais. No segundo livro, Sofia entra para o 11º ano. Como? Ninguém sabe. O curioso é que Sofia continua com 17 anos. Ou seja, vamos supor que Sofia entrou para o 10º ano em Setembro de 2003, então com 17 anos. Em Setembro de 2004, ao entrar para o 11º ano, continua com 17 anos. Além de burra, aparenta ser imortal. É no mínimo suspeito. Esta Sofia não pode ser um bom exemplo para os jovens. Uma possibilidade já adiantada é que Sofia, aparentemente uma simples jovem, sofra do síndrome de Mantorras, e tenha rasurado o seu B.I., tornando assim impossível determinar a sua real idade.
Nos raros momentos em que a paz e o silêncio reinam na loja, aproveito para ficar a conhecer um pouco das mais variadas obras dos mais diversos sectores da loja. Um destes dias, debrucei a minha atenção sobre a área da Arte, Pintura e Arquitectura. Vasculhando os livros à procura de algo que me despertasse uma curiosidade especial, deparei-me com um pequeno livro chamado O LIVRO DA ARTE. Este livro é uma compilação de 500 obras, com uma pequena descrição/apreciação crítica. Fui vendo, obra a obra, e admirando a qualidade e o talento dos mais variados autores. Se é verdade que existem obras impressionantes, existem outras que são difíceis de definir. Génio? Loucura? Falta de jeito? Só Deus sabe. O caso paradigmático do que acabei de dizer é uma pintura (?) de Robert Ryman. Imaginem, e não é difícil, uma tela branca. Uma camada de esmalte branco aplicado numa folha de alumínio. Completamente branca, apenas fixada à parede por parafusos de metal. Agora, reparem na brilhante descrição do crítico: “ (os parafusos) fazem parte integral da composição nu, que tem por finalidade libertar o quadro de qualquer traço ilusório de pintura. (…) Dá ao espectador uma grande tranquilidade, que é constante na sua intensidade; (…) demonstra a interacção única entre a planura da superfície do quadro e a parede lisa por trás. A relação da obra com o Minimalismo é revelada pela ausência de emoção e ilusão na sua construção. (…) Concentra-se na ênfase dada às qualidades dos materiais usados.” E foi neste momento, quando li este delírio literário que a minha vida mudou. Quando for grande quero ser crítico de arte. A espontaneidade, a classe, a imaginação… Genial mesmo, brilhante. Se este senhor diz isto acerca de uma tela em branco, imagino o que não dirá do resto. Os meus maiores e sinceros parabéns. Quando releio aquelas palavras, aparentemente tão simples, perco toda e qualquer vontade de escrever, seja o que for. A imagem da tela e da crítica surge, como uma assombração, na minha mente e aí sei que não sou digno de escrever. Talvez um dia chegue ao seu nível…

quinta-feira, setembro 09, 2004

Mortos e Enterrados

Diversas vezes sou confrontado com situações inesperadas e com as quais não sei como reagir. Vejamos os seguintes casos: há um tipo de clientes que se destaca por ser único 99% das vezes que vêm à livraria, os emigrantes de Leste. Seja por quererem dicionários de Croata – Português ou Ucraniano – Português ou seja por quererem livros escolares da 1ª classe para os filhos de 15 anos. Num destes dias, uma senhora de Leste, acompanhada de um filho com cerca de 16 anos e outro ainda bebé, aproximou-se do balcão e com o seu característico sotaque disse: “Olhe, tem livro Homens de Marte, Mulher de Vénus?”. Expliquei à senhora que de momento não tínhamos o livro. Ela ficou um pouco irritada e disse: “Em livraria de Faro havia livro.” Confirmei que efectivamente existia um exemplar em Faro, e expliquei que o facto de a livraria de Farto ter o livro não significava que nós o tivéssemos. Em seguida, pediu-me para ver se existia o livro em mais algum lado. Enquanto estava compenetrado na pesquisa, vejo pelo canto do olho o jovem a apontar para mim com um ar desconfiado. Aproxima-se do ouvido da mãe e, enquanto apontava ostensivamente, exclama: “Olha… Olha… (e diz o meu nome, duas vezes!). “Boa, sabe ler “ pensei eu. Daqui a uns anos já escreve. O problema é que o rapaz disse isso de forma totalmente audível. Então lá estava eu, empenhado como qualquer bom profissional do universo livreiro, a tentar pesquisar e a ouvir o rapaz repetidamente, a 1 metro (!) de mim, a dizer o meu nome e a apontar paro meu identificador. Nada constrangedor. Depois, quando estava a revelar o resultado da minha pesquisa, olhavam-me como se fosse alguma aparição divina.
Já hoje, o primeiro cliente que atendi foi um senhor acompanhado da mulher e do filho. Então, vinha com um desejo insaciável de livros do Gaston. Tudo porque, em Marrocos, aprendeu a falar francês com os livros do Gaston. Imagina-se o domínio extraordinário da língua. Primeiro, queria os livros em português, porque queria a colecção em português. Quando lhe mostro o livro que estava na montra, começa a reclamar, porque segundo ele: “Ah, MAS ISTO É IGUAL AO FRANCÊS! EU CONHEÇO ISTO!”. A perspicácia dele em relação a esta problemática deixou me de pé atrás. Neste momento, vi que estava a lidar com alguém cuja inteligência estava num plano muito superior ao meu. Tinha que agir cuidadosamente. Depois de lhe ter dado o primeiro livro, comecei a procurar mais livros da mesma colecção, pois foi essa a indicação que me deu quando nos encontrávamos junto ao balcão. Quando procurava fanaticamente a colecção, ouço do meu lado esquerdo o senhor a perguntar à sua mulher: “O QUE É QUE O GAJO ESTÁ A FAZER?”. Novamente, o cliente falava de forma perfeitamente audível e perceptível. Fingi que não ouvi, e a mulher também não retorquiu. Ele insistiu: “MAS O QUE É QUE O GAJO ESTÁ A FAZER?”. E depois, acrescentou: “desculpe, o que é que está a fazer?”. A procurar vida em Marte, acho que facilmente se depreende que é o que estou a fazer. E parece que encontrei. Lá lhe expliquei o que estava a fazer, o que deixou o senhor bastante espantado. Em seguida incitou-me a ler a BD de Gaston. Tive que concordar que tinha momentos engraçados. Seguimos para o balcão, para finalizar a transacção. Dei à sua esposa o nosso cartão de cliente, ela aquiesceu em preenche-lo, mas depois lembrou-se que tinha de ir almoçar, porque queria ir para o cinema. Segundo ela, “temos de ir comer, temos temos, senão o miúdo encharca-se em pipocas.” Dei o talão para a senhora assinar, e ela assina toda feliz da vida. Aí, exclama o marido: “O QUÊ?! ENTÃO ASSINASTE O MEU TALÃO DO MEU CARTÂO?!”. Ela sorriu e disse: “FIZ A TUA ASSINATURA, É O HÁBITO!”. Ele franziu as sobrancelhas e não disse mais nada. Antes de abandonarem as instalações, a senhora ainda teve tempo de mostrar por breves segundos o seu novo cartão de cliente, mais um cartão para gastar o dinheiro do seu marido. Ele viu o cartão e exclamou: “AH! MAS ESTAMOS NESTA LOJA?! MAS ISTO AINDA EXISTE?! PENSEI QUE TINHA ACABADO!” É, acabou. O que está ali escrito de termos algumas dezenas de lojas é só para enganar, já estamos mortos e enterrados. Eu próprio (e agora percebo o porquê de certas coisas, agora tudo faz sentido) sou uma assombração, que paira sem vida no limbo dos livreiros. Por quanto tempo?

terça-feira, setembro 07, 2004

Cheira a Lisboa

Existe um livro chamado SELECÇÂO NACIONAL DE FUTEBOL - NÚMERO, FACTOS, NOMES… Junto ao balcão tínhamos uma publicidade, em cartão, com a capa do livro: uma camisola encarnada com as cinco quinas. Este facto, só por si, não encerra nada de especial. Mas, certo dia, uma tia acompanhada de crianças e jovens (Salvador, Lourenço e Martim, entre outros) entra na loja, causando um grande alvoroço. Entre gritos e desarrumação, chega finalmente ao balcão. Desde logo começa bem, interrompendo o meu colega, enquanto este atendia outro cliente. Depois, quando já tinha toda a atenção e quando o colega começou a falar, atende o telefone, começa a falar aos berros e vira-se de costas, ignorando-o totalmente. Quando termina, volta a falar com ele. Nem um mínimo pedido de desculpas, nem nada que se assemelhe. Ela, olha para o cartaz do livro, e pede um exemplar. Examina-o detalhadamente, e pergunta: "Onde é que está a camisola? Posso ver?". O meu colega pensou durante uns segundos, não percebendo o que se estava a passar. Ao ser inquirida sobre a que camisola é que se referia, respondeu: "A camisola, a oferta do livro!". O meu colega explicou que não existia qualquer tipo de oferta com esse livro. A senhora enfureceu-se: "Desculpe, está aqui o cartaz com a camisola, onde é que está a camisola? É uma oferta." O colega, pacientemente, explicou que a camisola é a capa do livro. A tia voltou insistir que era uma oferta. Confusos, saímos de trás do balcão e fomos confirmar o cartaz. Onde a senhora dizia que algo mencionava uma oferta, só encontrámos o titulo do livro. Mais nada. Quando finalmente cedeu, entre mais um telefonema e alguns berros para os miúdos, não quis levar o livro, porque "Não vale a pena sem a camisola". Quando pensámos que a situação ia acalmar, eis que chega um dos miúdos que a acompanhava, com o livro na mão: "Onde é que está a camisola?". Não há qualquer camisola, respondi eu. "Mas a minha tia disse que havia...". Enquanto ele perguntava, os outros juntaram-se a ele, desejosos de ver a tal camisola. Saíram bastante frustrados, enquanto a tia lá berrava em mais um telefonema.
Também relacionado com futebol, aconteceu outro caso. Numa manhã calma, em que estou sozinho no balcão, entra um senhor e um jovem O senhor, com um ar distinto, lança um olha desconfiado para um livro e prontamente dirige-se a mim. "Bom dia, podia me dar uma lupa, se faz favor?" diz o senhor. Uma lupa? - Pensei eu... Boa, que bela maneira de começar o dia. Isto promete... O senhor continuou: "Sabe, é que está ali um livro sobre o futebol de Lisboa, e eu acho que estou na bancada." A imagem em causa está bastante desfocada, não se consegue diferenciar ninguém. Mas o senhor queria mesmo tentar. Aí, começou a discursar sobre o campo (não era um estádio, mas sim um campo), sobre os locais onde se podiam sentar os ricos e os pobres, e sobre a magia do futebol. Como não podia deixar de ser, demonstrei o meu alargado conhecimento sobre a matéria em questão, deixando o cliente visivelmente impressionado. Depois de me fazer umas perguntas, e eu ter respondido acertadamente a elas, vira-se para o jovem, dá lhe um valente calduço, deixando-o cabisbaixo, e exclama: "Estás a ver?! Este jovem sabe o que é futebol. Não é como tu, tens a mania que a bola era quadrada antigamente! Assim dá gosto falar de futebol com o jovem. Vê se aprendes!". O jovem ficou cada vez mais embaraçado enquanto o cliente prosseguia com o seu discurso apologista do futebol que se praticava nas décadas de 60 e 70. Despediu-se, manifestando o seu contentamento por falar comigo, e saiu, sempre a criticar o filho.
Um livro com algum sucesso é o livro com fotografias panorâmicas sobre Lisboa. Grande parte das compras do livro destinam-se a ofertas, e devo dizer que é um belíssimo presente. Com essa intenção, um senhor com a sua mãe idosa (já mencionados em crónicas passadas) trouxe o livro até ao balcão, no sentido de tirar o plástico e observar melhor o livro, para ver se era digno de ser oferecido. Depois de retirado o plástico que envolvia carinhosamente o livro, começaram quase imediatamente a folhear o livro. Cuidadosamente passavam página após página, acompanhando sempre cada foto com um sonoro "AHHHHHHHHHHHH" de espanto. Os comentários eram qualquer coisa como: "Ah que fabuloso, incrível, maravilhoso, o máximo!". Até que chegam a uma fotografia que consiste em Lisboa vista do Tejo, com uma magnífica vista das colinas. Observam lentamente a foto, uma e outra vez, comentando: "Ah... Este fotógrafo é mesmo o máximo. O máximo. Tirou estas fotos tão boas, escondendo o que está por trás dos montes. Sim, por trás dos montes. Por trás destes montes, para aqui, (dizia isto enquanto gesticulava à imagem e semelhança de Cláudio Ramos) isto aqui por trás é TUUUUUUUUUUUDO badalhoqueira. Para esquerda e para a direita, só badalhoquice! Um HO-RROR!". A perspectiva sociologica do cliente era deveras interessante e digna de registo. Quem sabe se um dia não lança um livro?

sábado, setembro 04, 2004

Afinal havia outra

Ao abandonar a casa olho, ensonado, para o céu que cobre todo o globo. E, a visão amedronta-me: nuvens. Nuvens negras. Chuva. Só pode significar uma coisa. Vocês sabem do que eu estou a falar.
Logo para começar em beleza o dia, temos as habituais mães/avós a comprar os livros para as crianças, logo pela manhã. Uma das primeiras mães, não conseguindo encontrar nada naquele monte interminável de livros desarrumados que apelidamos de zona infantil, dirige-se a mim e diz: “OLHE… TEM O BAMBI 4?”. Para quem não conhece, é o livro em que o Bambi, munido da sua fita vermelha e da sua arma de destruição maciça, destrói o Iraque para construir um oleoduto e um gasoduto. Além de extremamente educativo, tem um forte cariz histórico. A não perder.
A cultura e versatilidade dos nossos clientes não para de surpreender quem diariamente faz a sua vida atrás daquele balcão. Senão vejamos: uma senhora, de meia-idade, pretendia o livro Os Últimos Instantes Da Vida. Obviamente, não sabia a autora. A busca do nosso extenso catálogo veio a revelar-se infrutífera. Frustrada, a senhora queria pelo menos ver se tínhamos em Inglês. Perguntei-lhe qual o título do livro em Inglês. A cliente pensou, pensou, pensou e disse: “LAST INSTANTES LIFES”. Muito bem, pensei eu. Que honra, devo estar perante uma daquelas pessoas que traduz os títulos do cinema americano em algo mítico. Um pequeno exemplo: o filme THE ONE, com Jet Li. Em português, FORÇA EXPLOSIVA. Faz sentido: The = Força; One = Explosiva. Tradução literal.
Tivemos também a visita de mais uma das muitas comediantes perdidas do nosso país. Estava com uma amiga. A cliente pergunta-me insistentemente se faço o desconto com o cartão ACP, apesar de este ter passado de validade à 3 anos. Lá encontrou o certo, pudemos prosseguir. Então, a amiga estende a mão gentilmente e oferece-me o livro para passar, acompanhado do seu cartão de crédito. Passo o livro, e digo prontamente o preço à senhora. A amiga, simpática, debruça-se sobre o balcão, olhando para o preço, perguntado depois: “O preço é esse? Então o desconto?”. A amiga leva o livro, a outra é que tem cartão, o que me fez perguntar: “mas quer que faça desconto?”. Ao que a senhora, inteligentemente, responde: “ERA ESSA A IDEIA!”. E ri-se muito, muito… E toda a gente à volta, calada e circunspecta. Somos um público difícil. Depois, seguiu o espectáculo. A sua amiga estava a tentar inserir o código do cartão, mas a outra não se calava. O resultado só podia ser um: o engano. A senhora ficou bastante envergonhada, e a amiga, não contente, disse: “TAS A VER, NÃO TE DISSE PARA NÃO USARES O CARTÃO ROUBADO?”. E voltou a rir-se, sozinha. Acho que estava a gostar, e quem sou eu para lhe negar, certamente, o único prazer da vida dela?
Comparativamente a alguns clientes, eu, mero livreiro, não sou digno de partilhar o mesmo espaço que tantas obras afamadas. Reparem na inteligência suprema de um senhor, que, chegado ao balcão diz: “QUERO LIVROS DE AGRICULTURA… A-GRI-CUL-TU-RA.TEM?”. O que levará alguém, aparentemente normal, a dizer estas coisas? Problemas na infância? Só Deus saberá. Só falta mesmo dizer que não sei ler e escrever. Não sei se ele me tomou por algum emigrante de Leste, e que, deste modo, não entendesse a língua de Camões. Algo foi. Quantos neurónios tinha ele queimado durante a guerra do Ultramar? Provavelmente pensou: “Ah, ele trabalha numa livraria, usa computadores, está ali já à algum tempo a atender clientes. Pois, tudo indica mesmo que não fala português. É melhor falar como se tivesse uma deficiência na fala e na mente, talvez me perceba melhor.”
No nosso balcão pode-se encontrar algo curioso: os Mini-Livros. Os clientes geralmente chegam ao balcão e perguntam, muito admirados: “Ah, Mini Livros… O que é isto?”. Respondo que são Mini Livros, ao que se segue invariavelmente o seguinte: “Mas… São o quê? Mini Livros? Que é isso?”. São livros pequenos, em tamanho, explico eu. As pessoas parecem desiludidas. Não sei que tipo de milagre ou invenção inigualável esperavam ver nos Mini Livros. Aliás, o nome é enganador. Mini Livros deveria-se referir a enciclopédias ou atlas, e nunca a livros com 5cm de altura e largura. Depois temos clientes que, mergulhados no fascínio dos Mini Livros, estão a fazer a colecção toda. Existe uma cliente em especial que é obcecada, levando sempre bastantes, até mesmo repetidos, a cada visita. Hoje, um cliente, depois de fazer a pergunta da praxe sobre os Mini Livros, ficou curioso acerca de um deles. Chamou a minha atenção e exclamou: “Faz favor, queria levar aqui o livro do Bob Marlon”. Que não me respeitem a mim, é uma coisa. Agora faltar ao respeito à memória de um ícone do século XX é inacreditável. O cliente ainda acrescentou: “Sou mesmo admirador dele…”. Tanto que nem sabe o nome.
Para finalizar, o meu colega Poeta assistiu a uma cena no mínimo caricata. Um cliente, aparentemente calmo, dirige-se ao balcão para efectuar (mais uma) troca do Código Da Vinci. Eis senão quando, do meio da bruma, aparece uma senhora, a sua mulher. Antes mesmo de se aproximar dele dispara: “Queres trocar esse livro para poderes ir ter com a outra! Queres é estar com ela! É para a tua amante! Andas a enganar-me! ” A mulher estava bastante perturbada, e chegou a exclamar mais coisas que se tornaram imperceptíveis... O cliente não parecia minimamente afectado com a situação, e prosseguiu com a troca. Deixou o seu capacete na mesa e seguiu com a senhora para uma zona mais calma da loja. Aí, conversaram durante algum tempo, até que, quando se dirigiam para o balcão ela foge da loja. Ele, abismado, corre atrás dela gritando o seu nome, como se de um filme se tratasse. Ao vê-la fugir, ecoou durante uns míseros segundos, que no entanto pareciam eternos, o hit de Mónica Sintra, Afinal Havia Outra. Foi um momento que me tocou bastante, a música combinada com o que os meus olhos testemunhavam... O problema é que a esta hora ainda não tirei a música da cabeça. Ela desapareceu por entre a multidão, ele voltou para trás, desolado… Depois levou o seu livro, como se nada tivesse passado. O mesmo acontece com a loja. Dia após dia, personagem após personagem, continua igual a si mesma. Graças a Deus.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Profecias

Antes de mais, queria aqui esclarecer um assunto. Têm, ultimamente, surgido dúvidas quanto à veracidade dos meus relatos e à minha sanidade mental. Bom, quanto à minha sanidade mental (ou falta dela), pouco há para acrescentar. Agora no que toca à veracidade dos eventos aqui relatados, por mais inexplicáveis e inverosímeis que sejam, são a mais pura verdade. Os meus próprios colegas, quando não assistem a algum acontecimento, duvidam. E eles passam por situações semelhantes, por vezes. Mas eu, pareço predestinado a encontrar a nata da clientela. E hoje, aconteceu mais uma situação que os meus colegas não acreditam quando lhe conto. Mas, desta vez algo foi diferente. Tinha do meu lado o venerável mestre livreiro. Aliás, devo dizer, foi mesmo ele que descobriu tamanha pérola. Uma senhora com pouco mais de 30 anos aproxima-se da entrada. Pára, decidida, junto ao local onde se encontra um cartaz com o nosso Top semanal, num pedestal. Até aqui, tudo bem. Mas, eis senão quando ela, sem qualquer tipo de aviso retira o top cuidadosamente do seu pedestal e caminha com ele em riste, loja adentro. Temi o pior. O top enrolado seria indubitavelmente uma arma perigosa, e tanto eu com o mestre livreiro estávamos em alerta. Surpreendentemente, passou pelo balcão, seguindo para o lado direito da loja. Em seguida, e debaixo dos nossos olhares espantados, ergue bem alto o top, e colocou-o mais ao menos nivelado com o top que se encontra do lado direito do balcão. Aí, comparou os livros um a um. Satisfeita com o que conseguiu apurar, voltou para a entrada da loja e saiu, colocando depois o top no seu berço habitual. Desapareceu por entre a multidão, sempre sem dizer uma única palavra. Há pessoas que gostam mesmo de marcar a diferença, seja de que maneira for.
Do mesmo modo, se eu dissesse que, quando estava a atender um cliente, olhei para o lado direito da loja e vi nem mais nem menos do que um miúdo de origem asiática vestido de homem-aranha com sapatos de vela, sentado com as pernas cruzadas em cima dos livros que estavam de lombada, acreditavam? Se me contassem, eu não acreditava. Aliás, eu mesmo tive de olhar outra vez, não fosse algum glitch na Matrix. Mas, não era. O miúdo estava mesmo lá, descansado, com o seu fato de homem-aranha, e sapatinho de vela com as meias por cima do fato. Esfreguei os olhos e olhei outra vez, ele não desapareceu. Senti-me tentado a lançar um livro na sua direcção a ver se o livro lhe acertava, para desfazer as minhas dúvidas. Mas, ainda estragava o livro. E mesmo que fosse algo que dificilmente se pode considerar livro, como o Ciber Apanhados, teria de entrar em despesas, o que não é nada agradável. Passado algum tempo, o aracnídeo oriental saltou da zona onde estava e foi para o meio do chão ler, fugindo algum tempo depois. Nunca mais o vi. Desapareceu tão depressa quanto apareceu.
Também hoje, pediram-me um livro mítico. A PROFECIA DO CELESTINO. Atenção aos mais desatentos, não confundir com A Profecia Celestina, famoso livro que se pode encontrar na zona do esoterismo. Não. A senhora disse explicitamente a Profecia do Celestino. Para quem não sabe, Celestino foi um mito dentro do mundo do futebol. Defesa central ao serviço do Famalicão, esteve presente na última grande goleada do Glorioso SLB no saudoso Estádio da Luz. Ele não esteve só presente. Ele participou activamente, contribuindo com 2 auto-golos para a folgada vitória por 8 bolas a 0. E mais, um dos golos foi mesmo de belo efeito. Celestino, esse terror dos guarda-redes da mesma equipa, não voltou a ter outra actuação tão marcante, caindo posteriormente no esquecimento geral. Mas, não deveria ser esquecido. Não é qualquer jogador que marca duas vezes numa só partida a favor do Benfica. Parece que ainda o vejo, pulando alegremente, qual bailarina transformista, caracóis castanhos ao vento, marcando que nem uma doida na própria baliza. Bons velhos tempos.
As devoluções vão-se sucedendo, impiedosas. Tal como o livro do Pauleta, muitos outros vão, talvez nunca mais voltando. Falando em Pauleta, parabéns pela nomeação para capitão da selecção. Já agora nomeavam um dos postes da baliza capitão, assim sempre havia a probabilidade da bola bater lá e entrar. Agora, com o Pauleta… Um dos livros devolvidos foi o formidável Diário do Miguel. Quem é o Miguel? – Perguntam vocês. Não sei, e pelo número de vendas, também ninguém quer saber. 0 livros vendidos, em 3 meses. É obra. Força Miguel, continua que vais ser alguém.
As pessoas tendem a apelidar de OBRA qualquer tipo de livro ou publicação literária. Talvez a culpa seja minha, mas não me soa nada bem ouvir dizer: “O Cláudio Ramos tem mais alguma obra além desta?” Bom, que eu saiba ainda não tem nenhuma obra. Mas, há que manter a esperança…

quarta-feira, setembro 01, 2004

Uma Lição Valiosa

Aqui está o Livreiro, de volta novamente para o servir. Ou tentar. Não garanto nada.
Diversos indivíduos vivem com a concepção errada que eu, mero Livreiro, sou o engraçadinho do estabelecimento. Enganem-se todos os que pensam assim, pois o meu colega Greenpeace é um doidivanas. Cada cliente é um júri, e ele, qual artista a ser observado, dá o se melhor na nobre ânsia de entreter o cliente. Vejam o mais recente exemplo, e atentem bem a sagacidade e capacidade humorística deste rapaz. Uma senhora já com uma idade respeitável adquire dois livros. Eu pergunto se ela deseja que os livros sejam embrulhados, ao que ela responde: “Não, não, ponha só um laço”. Aí, ele decide intervir. “Laços não temos”, diz ele… “Mas, se desejar, posso embrulhar com fita-cola!” E começa a rir-se perdidamente. Eu olhei para a senhora que por sua vez, o mirava estupefacta. Ao olhar para a cliente e verificar que ela não estava a rir-se com ele, riu com ainda mais força. Este homem é genial. Já no outro dia, ao ser inquirido sobre se tínhamos “fita cola dos dois lados” também não conseguiu conter o riso. Mas, quem sou eu para o censurar? Ainda hoje, mais um miúdo que não sabe o significado da palavra educação aproximou-se do balcão, interrompendo a cliente que estava a falar, e pediu bem alto: “Tem Pickles?”. Eu sei que existe uma BD com esse título, mas, num momento de fraqueza, não consegui suster o riso. Ele não me levou a mal. Mas, a genialidade do Greenpeace não fica por aqui, não senhor. Ele chega mesmo a desejar Bom Natal às pessoas... Em pleno Verão! É o maior. O hábito de interromper, tanto a mim como os clientes, é típico da juventude. Também hoje um jovem já na casa dos 13 veio ao balcão todo decidido e, sem sequer saudar o Livreiro ou esperar que a conversa entre o funcionário e o cliente anterior cessasse, perguntou: “OLHE TEM LIVROS POLICIAIS, OU DE SUSPENSE?”. Sim, temos o PUTO QUE CHEGOU À LIVRARIA E NÂO DISSE BOA NOITE E FOI CORTADO AOS PEDAÇOS E ESCONDIDO NAS GAVETAS DESSA MESMA LIVRARIA. Um best-seller. Mas, não era do seu agrado.
Ainda relativamente a embrulhos tenho que focar outro ponto. Queixo-me constantemente da falta de cultura do povo português. Mas, cada vez mais provam-me que estou errado. Os livros não podem ser só para oferta. Podem ser embrulhados, para prenda, para oferecer, para dar, para presente, para fazer um embrulho, por um laço, caprichar um embrulho, dar aí um jeitinho, enfim, o meu léxico não é de maneira alguma tão abrangente como o dos estimados clientes. E depois, temos aqueles clientes que dizem: “Pode embrulhar-me?” ou então o já clássico homem que agarra as partes baixas, remexendo as em círculos enquanto diz: “Pode-me embrulhar?”. Falando em classe, temos o inolvidável momento em que um cliente, mais uma vez, pergunta se pode rasgar o invólucro do livro. Respondi que sim, que não havia problema, e o cliente, qual predador, estica a famigerada unhaca do dedo mindinho, e num só gesto, num único e mortífero gesto, desfere o golpe que dilacera o invólucro. A natureza em acção, e eu a assistir, privilegiadamente, no lugar da frente.
Verão é sinónimo de invasão estrangeira. A loja enche-se de espanhóis, divertidos nas suas excursões. Sim, porque é tão perto que eles nem se digam a dormir. Nem sequer turistas se podem considerar, mas sim excursionistas. Acho que foi a única coisa que aprendi no curso. O gasto e a permanência média dos espanhóis é mínimo. E isso reflecte-se na venda de livros aos nuestros hermanos. Vêem muito, compram pouco. Mas quando paga com Visa, há que lhes dar o mérito, mostram sempre o B.I. Outro grupo que invade as terras lusas são os emigrantes. E estes detectam-se à distância. Seja pelo sotaque, pelas roupas ou pelas escolhas literárias, são facilmente reconhecíveis. Um casal de emigrantes aparece no balcão com o livro da Cristina Candeias, essa Messias do povo luso emigrado, vidente dos trabalhadores além fronteiras, feiticeira das donas de casa. O livro dela é muito procurado, e quase sempre por emigrantes. Pousam o livro na mesa, e dizem que é para oferta. Segundo eles, o livro ia para Paris, para uma tia-avó que não pode sair de França pela idade. E queriam que deixasse o preço, não fossem ser acusados de burla. Ela, longa cabeleira falsa de cor branca, que combinava com as suas bota de pele branca, que por sua vez contrastavam com o seu vestido azul espampanante, frontispício colorido por camada atrás de camada de maquilhagem. Ele, com o seu porta-chaves do Peugeot 206 muito provavelmente todo artilhado. Outros emigrantes que tiveram aqui, levaram o livro da Alexandra Solnado, Este Deus Que Vos Fala. O interesse deles pela “cabritinha” (é o nome que Deus lhe deu, eu não invento nada) era muito. Então, dei-lhes os dois volumes. Queriam que embrulhasse, mas que não tirasse o preço, porque era para levar para a Suíça. E, segundo eles, na Suíça não há nada disto. Pensei em alertar imediatamente as autoridades Suíças, com a esperança que o país não fosse corrompido. Seria logo dado o Alerta Vermelho. Curioso… Na Suíça não há. Ora, isto explica muita coisa. A Suíça, um país mais desenvolvido, com melhor nível de vida (isto se não contarmos com a parte militar claro…) não tem estes livros. Qual será a ilação a tirar?

domingo, agosto 29, 2004

Surf's Up

Ah! O ar fresco da manhã de Domingo… Que, infelizmente, em breve será trocado pelo ar condicionado de uma loja pequena, atafulhada de livros poeirentos e clientes mentalmente empoeirados.
O primeiro artista do dia é um senhor estrangeiro, mas com algum domínio do vernáculo luso. Queria um livro relativo à alimentação e tipo sanguíneo. Este livro tem sido um sucesso, encontra-se sempre esgotado. Bom, encontrei um livro sobre o mesmo tema, e entreguei ao senhor, que o folheou demoradamente. Lia, virava o livro para ler os quadros, voltava atrás, como se tivesse a memorizar o texto. Após a consulta, pousa o livro e diz-me: “Muito interessante, agora só me falta descobrir o meu tipo de sangue!” e ri-se. Antes sequer de eu poder dizer qualquer coisa, rematou: “Por acaso não posso tirar sangue aqui não? (e mal termina a frase estica o braço esquerdo, com a mão direita faz o sinal da seringa junto do braço e solta o som CLOCK. Duas vezes). E olha para mim, à espera duma resposta. CLOCK? Isso nem com medicamentos lá vai, é melhor tratamento de choque.
Domingo, sinónimo de eventos estranhos. Uma senhora de meia-idade, aparentemente da alta sociedade, aproxima-se do balcão. Pergunta se vendo envelopes. À minha resposta negativa, diz: “E sabe onde posso comprar aqui dentro? É que eu não sou daqui…”. Pois, não é de espantar, eu conheço poucas pessoas que tenham nascido num centro comercial, ou que tenham nele a sua residência. Não está sozinha, estimada cliente, não desespere. Falando em envelopes, certa vez, um cliente (não sei porque lhes chamo clientes, quando eles apenas vêm à loja para pedir informações, nada mais) aproxima-se do balcão e diz: “Desculpe, têm aqui um marco do correio? Posso deixar esta carta?” Sim, deixe ali entre a máquina de selos e a máquina de preservativos. Por vezes também pedem para que coloquemos os livros dentro de envelopes, e ficam chocadíssimos porque não temos envelopes para o efeito. Às vezes, pedem para levar o papel e embrulham em casa. Mas, segundo me contaram, até já chegaram a pedir o papel e um rolo de fita-cola para embrulhar em casa. E claro, há sempre uma desilusão relativamente ao papel. Muitas vezes até pedem para virá-lo ao contrário. Obviamente que não resulta.
Livros para crianças. Sempre um problema. “Olhe, faz favor, tem livros para crianças de 1 ano e meio?” ou então “o meu sobrinho tem 13 anos, tem qualquer coisa para ele?”. Muitas vezes, ainda tento estabelecer uma linha de comunicação com o cliente, e tento saber os interesses da criança, se gosta ou não de ler. A resposta é invariavelmente a mesma: “Não sei nada”. Já saber que é seu sobrinho é uma sorte, há alguns que demonstram algumas dúvidas. E depois claro, é inacreditável como é que este país está na cauda da Europa quando 99% das crianças são sobredotadas. Senão vejamos: cada vez que proponho um livro para uma criança, recebo muitas e muitas vezes a resposta: “Ah não, isso não isso é muito atrasado para ele.” Mostro por exemplo o livro Uma Aventura para uma criança de 8 anos, e a resposta da mãe é: “Isso é para bebés comparado com o que ele lê”. Ou um daqueles livros para iniciar a leitura e ensinar a contar a uma criança de 2 anos: “Não, isso não, porque a minha filha já lê perfeitamente.” Se fosse a si propunha-a para oradora. O futuro do país está assegurado. Há sempre também aqueles clientes que não percebem nada, mas mesmo nada, de livros. Nem de crianças. O que torna o trabalho bastante mais simples e divertido. E depois nunca gostam de nada: “Harry Potter? Mas alguma criança gosta disto? Isto vende? Tenho dúvidas.” E depois temos o caso da senhora, a quem eu recomendo vivamente os livros de Uma Aventura, que pega nos livro, olha para a lombada e diz: “Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada, Caminho”. Pega no outro, diz: “Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada, Caminho”. Ao terceiro, diz exactamente a mesma coisa, acrescentando bastante espantada: “Porque é que eles têm todos o mesmo nome? Chama-se todos Caminho?”. Expliquei-lhe que era apenas o nome da editora. O nome do livro está mais abaixo. Não pareceu esclarecida, tenho que melhorar impreterivelmente a minha capacidade de persuasão.
Mal cheguei hoje para iniciar mais um dia de trabalho duro, deparei-me com um cenário à muito desejado: a venda da grande Enciclopédia do Surf. . E porquê a minha aversão a esse livro? Tudo começou quando o livro chegou, e não havia qualquer interesse nele, e uma rapariga com o seu namorado quis reservá-lo. Perguntou-me quanto tempo guardávamos o livro, mas disse logo imediato que vinha de certeza amanhã. E frisou isso várias vezes durante o processo de reserva. E que vinha, e de certeza, e que se não viesse, mas vinha de certeza. Nunca mais veio. O livro, entretanto, foi para a montra. E aí piorou tudo. Diariamente, várias vezes, vinha alguém pedir para ver o livro do Surf. E lá ia eu, para a montra, todo encolhido, espalmado contra o vidro, buscar o livro. À terceira vez desisti e pus o livro na ponta da montra, já estava a ver que ia continuar o martírio. E as pessoas, o que dizer? Viam o livro, folheavam, diziam obrigado e punham-no em cima do balcão. Constantemente. Não percebo o que é que as pessoas esperavam do livro, se esperam encontrar algum segredo mágico ou alguma fórmula especial. Mas não, é a desilusão total. Um cliente chegou mesmo a pousar o livro no balcão e dizer: “Ah, obrigado, mas é só uma enciclopédia”. Jura. Pelo título não chegava lá. É essa a decepção das pessoas. Lêem Enciclopédia do Surf e pensam em emoções fortes e raparigas semi-nuas usando bikinis reveladores. Mas não. É apenas uma Enciclopédia. Com entradas e uma outra foto. Uma enfadonha Enciclopédia. Até o Gervásio, o macaco da reciclagem, conseguiria perceber que se o livro se chama ENCICLOPÉDIA é porque é uma enciclopédia.
Os nossos clientes não.

sábado, agosto 28, 2004

Hide and Seek

Talvez seja só de mim. Talvez o problema seja mesmo eu. Mas não consigo de deixar de achar no mínimo estranho que, constantemente, venham pessoa pedir-nos coisas que não constam na nossa loja. Reparem, tudo o que temos à venda está à nossa volta: Livros, algum software, pouco mais. E no entanto, a cena repete-se: "Boa tarde. Era este livro, e um Camel Light, por favor.". O que é que leva alguém, aparente de boa saúde física e intelectual, a chegar ao balcão e atirar uma nota com o maior desprezo e afirmar: "Era um Marlboro."? Eu por vezes, incrédulo, volto-me para trás, na esperança de verificar se puseram tabaco à venda na nossa livraria. Mas não, não há tabaco. Em lado nenhum. Há colegas que até já se riem. De vez em quando clientes perguntam se temos tabaco. Tudo bem, é aceitável. Agora os outros. Diz aqui Livraria, não tabacaria, ou mesmo papelaria. E não há tabaco em lado nenhum. Volto a frisar.
Realmente existem pessoas que deviam pensar bastante antes de falarem. Uma cliente apanha uma inocente chucha caída no soalho. Olha para ela com um ar curioso, quase com a minúcia de um investigador. Vira-se para o balcão e dirige-se para ele. Sempre sem tirar os olhos da chucha. Ao chegar, pergunta: "É sua?". Claro que é minha, deixe me só mudar a fralda e acabar o biberon e já a atendo. E eu estava atrás do balcão. Se a senhora perguntasse a alguém que tivesse uma criança junto dela, era uma boa acção, seria compreensível. O que é que passa pela cabeça desta cliente para poder sequer considerar a possibilidade da chucha ser minha? Provavelmente no pequeno mundo dela tudo faz sentido.
E depois há aqueles clientes que fazem pedidos em sentidos diametralmente opostos um do outro. Um cliente chega à procura de livros de avicultura. Tudo normal. Quando lhe digo que não temos nada, ele exclama: "AH! ESTÃO AQUI!", pegando rapidamente num livro de vinicultura. Expliquei-lhe que aquele livro não era de avicultura. Ele depois de ler a lombada três vez aquiesceu. É o que dá, fala-se em algo relacionado com vinho e fica tudo maluco. Quando se convenceu que não havia mesmo nada, diz: "Pronto, já que não há nada, podia me arranjar alguns livros sobre cadeiras eléctricas?". Esta é nova, pensei eu. O cliente continuou "ah, o meu irmão, ele não sabe bem o que fazer com os pintos, então está a pensar em montar umas cadeiras eléctricas, não sei bem para quê". Para fritar os pintos, para que é que havia de ser? Um belo churrasco. E fez me deslocar até ao balcão, para pesquisar no sistema cadeiras eléctricas. Nada. Absolutamente nada. Até que arranjei coragem para perguntar ao senhor se ele queria livros sobre CHOcadeiras eléctricas. Nem mais. "Ah, eu bem me parecia que era um bocado estranho, mas como foi o meu irmão que pediu.". Tenho que admitir que, por momentos, a ideia de dois irmãos malévolos a fritar pintos em cadeiras eléctricas me passou pela mente. E que belo espectáculo seria.
Já aqui abordei a problemática da saudação. E eis que os clientes não param de arranjar maneiras de me tentar surpreender. Quando pensei que a única maneira de troçarem de mim era responder sempre de maneira diferente à minha saudação trocando a altura do dia, eis que a inovação chegou. Não se pode parar o progresso. Ao meu Boa Tarde, respondiam sempre com Boa Noite ou Bom Dia. Mas eis que agora, sem aviso prévio, encontraram uma nova maneira de gozar. Respondem com a mesma altura do dia, mas com uma nuance: ao meu boa tarde respondem: "BOAS TARDES", ao meu boa noite, respondem: "BOAS NOITES". A criatividade dos clientes não pára de me surpreender. Temo com o que possam inventar a seguir.
Um cliente que merecia o prémio Altruísta 2004, é o cliente que anda demoradamente a escolher um livro, enquanto distrai a cônjuge. Finalmente escolhe um e, sorrateiramente, aproxima-se do balcão, assim como quem não quer a coisa. Quando chega o momento de efectuar o pagamento, alcança um cartão. Quando me entrega, reparo, por acaso, no nome do cartão. Um nome feminino, vamos supor, Maria. Curioso, pensei eu. Primeiro ele age de maneira sub-reptícia, e agora isto. Paga, pede me para embrulhar e para guardar no saco. Em seguida, já de saco em punho dirige-se para a companheira. Surpreende-a com um toque nas costas, e oferece-lhe o saco. Ela abre o saco, rasga o papel e exclama de felicidade: “OH!!! OBRIGADO! ÉS O MELHOR! NÃO TINHAS QUE GASTAR DINHEIRO NISTO! OH, OBRIGADO!”. E responde ele: “De nada Maria, não custa nada”. Claro, com o cartão dela não custa nada. E olha embaraçado para o balcão. Isto sim é um bom parceiro. Oferece prendas à rapariga com o cartão dela. Brilhante.
Falando em sub-reptício, aconteceu uma situação curiosa num dos dias que passou. Um senhor de meia-idade entregou me um livro e pediu que embrulhasse. Parecia bastante apressado. Bom, lá fui eu calmamente buscar o papel e iniciar o moroso e delicado processo de embrulho. Sei que há de chegar o dia em que digo ao cliente: “aqui tem o seu embrulho” e ele responde-me: “desculpe, isso não é um embrulho, é um ornitorringo de Origami”. Sim, tenho assim tanto jeito. Quando pouso o papel na mesa, e vejo o cair, como se de uma folha caída de Outono se tratasse, exclama o senhor: “RAPIDO RAPIDO! ESCONDA O LIVRO, ESCONDA-SE! VÁ BAIXE-SE RAPIDO RAPIDO! VA-LA HOMEM! AH, PORRA, QUE ELA VAI VER!”. O homem estava quase a saltar para trás do balcão, tipo Western, e mergulhar comigo para a mulher não o ver. Ele estava exaltadíssimo, quase a empurrar-me para baixo. Para a próxima já sabe cliente, traga os utensílios de camuflagem e aí já embrulhamos tudo calmamente, sem sobressaltos. Mais um bocado e o senhor tinha um enfarte. E aviso já que eu não lhe fazia respiração boca-a-boca.