quinta-feira, setembro 16, 2004

Doenças

Nem tudo tem graça neste espaço que a raça humana apelidou de loja. Aliás, nem há assim tanta coisa engraçada agora que penso nisso. Hoje, atendi um cliente. Chegou ao balcão, e parou para consultar o livro que carregava nas suas mãos. Pelo estado delas, pulso com um bruto relógio de ouro, via-se que era um senhor que levava uma vida dura. Deu mais um trémulo passo rumo ao balcão e chegando perto deste, deixa cair violentamente o livro em cima do balcão. O livro não cai por milímetros. A chave do seu BMW escorrega-lhe também pelos dedos, demonstrando algo que parecia inegável. Este homem, com porte atlético, relógio de ouro e BMW, sofre de Parkinson. Digo-lhe boa noite, ele não responde. Até a voz está afectada, pobre homem. Pensei de imediato em fazer lhe um desconto. Quando lhe disse o valor, deixou cair o cartão AMERICAN EXPRESS em cima do balcão. Novamente, a doença não o deixava segurar nada nas suas frágeis mãos. A natureza é bela, mas cruel por vezes. Processei a venda, pensando nas vicissitudes da vida mundana que levamos. Ao entregar-lhe o cartão, ouvi um ténue obrigado. Afinal, ele fala. Nem tudo está perdido. Fiquei um pouco mais em paz. Depois, lá seguiu ele, com a sua mulher loura, a caminho do sem BMW. Deus o proteja.
A ignorância é felicidade. Pelo menos é o que dizem. E se é verdade, anda por este mundo muita gente feliz da vida. Parece que os vejo agora, aos magotes, saltando pelos campos. Burros que nem uma porta. Uma senhora procurava uma GEOGRAFIA DO MUNDO. Queria uma geografia do mundo, dizia ela, apesar de eu lhe explicar que só tínhamos atlas. Segundo ela, uma geografia do mundo tinha: “MAPA DO PAISES DO MUNDO, MONTANHA DO MUNDO, RIO DO MUNDO!”. Tentei, com todas as minhas forças, explicar-lhe que os Atlas também continham tais informações. Acedeu, contrariada, a consultar um Atlas. Ao folheá-lo, parece que vislumbrou a face de Deus. Boca entreaberta, olhos escuros esbugalhados. Fecha o livro, visivelmente desiludida. “AFINAL QUERO SÓ MAPA MUNDO!”. O problema é que não temos mapas desse género. Mas, a senhora insistiu: “COMO NÃO TEM MAPA MUNDO?”. Não temos, não tivemos, não vamos ter, provavelmente. Pareceu convencida e afastou-se. Depois, qual Obelix a aproximar-se do caldeirão tentando enganar Panoramix e beber a mítica poção, a senhora passava por aqui e falava comigo de ângulos em que eu não a conseguia ver: “TEM MAPA MUNDO?” dizia, alterando ligeiramente a voz. À terceira ou quarta, passou à minha frente, e enquanto perguntava fazia um rectângulo com as mãos: “TEM MAPA? PARA POR PAREDE.”. Finalmente, decidiu-se por um mini Atlas. E lá seguiu, feliz.
Ainda há momentos, tivemos um jovem, com o cabelo à Beckham (tipo, como ele utilizou durante bastante tempo, talvez um mês, preso atrás) a perguntar pelos mini livros. O que eram, para que serviam. O jovem estava maravilhado. É então, no meio do delírio, que reparou no mini livro com o título ZARATRUSTA. “ZARATRUSTA… QUÉ ISSO, UMA DOENÇA?!”. Expliquei-lhe, e ele, como sinal de agradecimento, levantou o seu polegar e saiu em direcção a outros livros.
Num momento calmo da loja, uma jovem que deveria andar na casa dos 14 anos, não mais, aproxima-se do balcão. Como seria de esperar, não disse nada antes de passar à razão da sua vinda ao respeitável estabelecimento. Disparou: “ONDE ESTÁ O CINEMA?” Sparta, o velho Sparta, estava ao balcão, enquanto eu arrumava os livros. Olhou para mim, calmamente. Via-se nos seus olhos cansados que nem sequer tinha percebido bem a pergunta que lhe tinha sido feita. “Sabes onde está?”, perguntou-me. Apontei-lhe a zona dos livros práticos, onde estão os livros de cinema. Ele indicou à jovem o caminho. Ela bateu o pé e exclamou: “NÃO! ONDE ESTÁ O CINEMA! AQUI! AQUI NO CENTRO!!!”. Bateu novamente o pé, e saiu furiosa da loja. Devíamos proibir a entrada a raparigas que estão a ter o período pela primeira vez. Ainda pensei dizer a Sparta para segui-la e dar lhe o livro: O LIVRO DO PERÍODO. Mas, Sparta parecia exausto.
Dia após dia, a caça ao desconto perdido (obrigado LFL) continua. Em várias ocasiões manifestei ao meu superior mestre livreiro, esse mito do meio fundo movido a tabaco, que deveríamos criar uma nova categoria de descontos, categoria essa que devia figurar em letras garrafais na factura. Proponho a criação, para aqueles clientes com Gold Card e nome pomposo, de categorias como: DESCONTO PARA PEDINTES, DESCONTO PARA DESALOJADOS, DESCONTO PARA POBRES, DESCONTO PARA ANORMAIS, DESCONTO PARA PERSONAGENS, DESCONTO PARA MENDIGOS. Nos casos mais extremos poderíamos ter DESCONTO PARA ANORMAIS. Enfim, a lista pode ser interminável. A estupidez também o é.

1 comentário:

Anónimo disse...

89% - Muito Bom

Senhor Professor