sábado, setembro 04, 2004

Afinal havia outra

Ao abandonar a casa olho, ensonado, para o céu que cobre todo o globo. E, a visão amedronta-me: nuvens. Nuvens negras. Chuva. Só pode significar uma coisa. Vocês sabem do que eu estou a falar.
Logo para começar em beleza o dia, temos as habituais mães/avós a comprar os livros para as crianças, logo pela manhã. Uma das primeiras mães, não conseguindo encontrar nada naquele monte interminável de livros desarrumados que apelidamos de zona infantil, dirige-se a mim e diz: “OLHE… TEM O BAMBI 4?”. Para quem não conhece, é o livro em que o Bambi, munido da sua fita vermelha e da sua arma de destruição maciça, destrói o Iraque para construir um oleoduto e um gasoduto. Além de extremamente educativo, tem um forte cariz histórico. A não perder.
A cultura e versatilidade dos nossos clientes não para de surpreender quem diariamente faz a sua vida atrás daquele balcão. Senão vejamos: uma senhora, de meia-idade, pretendia o livro Os Últimos Instantes Da Vida. Obviamente, não sabia a autora. A busca do nosso extenso catálogo veio a revelar-se infrutífera. Frustrada, a senhora queria pelo menos ver se tínhamos em Inglês. Perguntei-lhe qual o título do livro em Inglês. A cliente pensou, pensou, pensou e disse: “LAST INSTANTES LIFES”. Muito bem, pensei eu. Que honra, devo estar perante uma daquelas pessoas que traduz os títulos do cinema americano em algo mítico. Um pequeno exemplo: o filme THE ONE, com Jet Li. Em português, FORÇA EXPLOSIVA. Faz sentido: The = Força; One = Explosiva. Tradução literal.
Tivemos também a visita de mais uma das muitas comediantes perdidas do nosso país. Estava com uma amiga. A cliente pergunta-me insistentemente se faço o desconto com o cartão ACP, apesar de este ter passado de validade à 3 anos. Lá encontrou o certo, pudemos prosseguir. Então, a amiga estende a mão gentilmente e oferece-me o livro para passar, acompanhado do seu cartão de crédito. Passo o livro, e digo prontamente o preço à senhora. A amiga, simpática, debruça-se sobre o balcão, olhando para o preço, perguntado depois: “O preço é esse? Então o desconto?”. A amiga leva o livro, a outra é que tem cartão, o que me fez perguntar: “mas quer que faça desconto?”. Ao que a senhora, inteligentemente, responde: “ERA ESSA A IDEIA!”. E ri-se muito, muito… E toda a gente à volta, calada e circunspecta. Somos um público difícil. Depois, seguiu o espectáculo. A sua amiga estava a tentar inserir o código do cartão, mas a outra não se calava. O resultado só podia ser um: o engano. A senhora ficou bastante envergonhada, e a amiga, não contente, disse: “TAS A VER, NÃO TE DISSE PARA NÃO USARES O CARTÃO ROUBADO?”. E voltou a rir-se, sozinha. Acho que estava a gostar, e quem sou eu para lhe negar, certamente, o único prazer da vida dela?
Comparativamente a alguns clientes, eu, mero livreiro, não sou digno de partilhar o mesmo espaço que tantas obras afamadas. Reparem na inteligência suprema de um senhor, que, chegado ao balcão diz: “QUERO LIVROS DE AGRICULTURA… A-GRI-CUL-TU-RA.TEM?”. O que levará alguém, aparentemente normal, a dizer estas coisas? Problemas na infância? Só Deus saberá. Só falta mesmo dizer que não sei ler e escrever. Não sei se ele me tomou por algum emigrante de Leste, e que, deste modo, não entendesse a língua de Camões. Algo foi. Quantos neurónios tinha ele queimado durante a guerra do Ultramar? Provavelmente pensou: “Ah, ele trabalha numa livraria, usa computadores, está ali já à algum tempo a atender clientes. Pois, tudo indica mesmo que não fala português. É melhor falar como se tivesse uma deficiência na fala e na mente, talvez me perceba melhor.”
No nosso balcão pode-se encontrar algo curioso: os Mini-Livros. Os clientes geralmente chegam ao balcão e perguntam, muito admirados: “Ah, Mini Livros… O que é isto?”. Respondo que são Mini Livros, ao que se segue invariavelmente o seguinte: “Mas… São o quê? Mini Livros? Que é isso?”. São livros pequenos, em tamanho, explico eu. As pessoas parecem desiludidas. Não sei que tipo de milagre ou invenção inigualável esperavam ver nos Mini Livros. Aliás, o nome é enganador. Mini Livros deveria-se referir a enciclopédias ou atlas, e nunca a livros com 5cm de altura e largura. Depois temos clientes que, mergulhados no fascínio dos Mini Livros, estão a fazer a colecção toda. Existe uma cliente em especial que é obcecada, levando sempre bastantes, até mesmo repetidos, a cada visita. Hoje, um cliente, depois de fazer a pergunta da praxe sobre os Mini Livros, ficou curioso acerca de um deles. Chamou a minha atenção e exclamou: “Faz favor, queria levar aqui o livro do Bob Marlon”. Que não me respeitem a mim, é uma coisa. Agora faltar ao respeito à memória de um ícone do século XX é inacreditável. O cliente ainda acrescentou: “Sou mesmo admirador dele…”. Tanto que nem sabe o nome.
Para finalizar, o meu colega Poeta assistiu a uma cena no mínimo caricata. Um cliente, aparentemente calmo, dirige-se ao balcão para efectuar (mais uma) troca do Código Da Vinci. Eis senão quando, do meio da bruma, aparece uma senhora, a sua mulher. Antes mesmo de se aproximar dele dispara: “Queres trocar esse livro para poderes ir ter com a outra! Queres é estar com ela! É para a tua amante! Andas a enganar-me! ” A mulher estava bastante perturbada, e chegou a exclamar mais coisas que se tornaram imperceptíveis... O cliente não parecia minimamente afectado com a situação, e prosseguiu com a troca. Deixou o seu capacete na mesa e seguiu com a senhora para uma zona mais calma da loja. Aí, conversaram durante algum tempo, até que, quando se dirigiam para o balcão ela foge da loja. Ele, abismado, corre atrás dela gritando o seu nome, como se de um filme se tratasse. Ao vê-la fugir, ecoou durante uns míseros segundos, que no entanto pareciam eternos, o hit de Mónica Sintra, Afinal Havia Outra. Foi um momento que me tocou bastante, a música combinada com o que os meus olhos testemunhavam... O problema é que a esta hora ainda não tirei a música da cabeça. Ela desapareceu por entre a multidão, ele voltou para trás, desolado… Depois levou o seu livro, como se nada tivesse passado. O mesmo acontece com a loja. Dia após dia, personagem após personagem, continua igual a si mesma. Graças a Deus.

Sem comentários: