sexta-feira, janeiro 27, 2006

Problemas do Oculto

Estava eu, mais ou menos coberto por facturas, naquele verdadeiro armazém / escritório de grande porte e indubitável qualidade que é o nosso back office, quando ouço a seguinte frase lá vinda do balcão: “Olhe, se faz favor, é aqui que posso fazer uma reclamação?” Saltei debaixo das facturas e, afastei-me do computador e aproximei-me da porta, o que significa que me movi cerca de 10cm. Bom, por muito versado que eu seja nos assuntos do sub mundo das livrarias, nada me poderia preparar para isto. Depois da minha colega ter perguntado o que se passava, eis o que diz a estimada cliente: “Olhe, (apontando para o livro) estes pés são do meu filho!”. Depois de a minha colega ter respondido qualquer coisa impossível de decifrar (o que acontece 80% das vezes. Os outros 20% correspondem a respostas ou perguntas feitas de um modo altamente bruto), a cliente continuou: “Pois, é que estes são os pés dele, juro! Eu conheço o meu filho”. A minha colega assentiu, e tratou de dar qualquer tipo de número de telefone ou endereço de e-mail que fizesse com que a cliente fosse reclamar com alguém que não ela. E a senhora continuou:”O meu filho entrou com esta foto num concurso, há um tempo atrás, e agora a foto surge aqui, e não há nenhuma referência ao trabalho dele. Uma pessoa sente-se enganada, porque olha para aquilo e sente que é nosso, que é um bocado de nós. Reconheço os pés do meu filho!”. Temi que fosse dizer que tinha reconhecido pelo cheiro, mas não foi tão longe. Depois abandonou a loja calmamente, pronta para ir reclamar a outra freguesia.
Num destes dias que passou fui arrumar a secção de esoterismo, o que já não fazia desde Novembro. E qual não é o meu espanto quando encontro, numa prateleira, um separador denominado “Problemas Do Oculto.”. E, essa secção, de aproximadamente 10cm, estava vazia. Faz sentido, temos secções altamente dominadas pelos caos, sem separações, e depois temos um separador para problemas do oculto. Para quê separadores para Design Visual, Design Industrial, Design de Interiores, por exemplo? Importante é o separador dos “Problemas do Oculto” Que não tem livros. Compreendo que sejam problemas difíceis de resolver. Talvez porque estão ocultos. Não sei, não domino o esoterismo.
A obsessão que as pessoas têm com os preços e os embrulhos. É inenarrável. É difícil TIROU O PREÇO estar a tentar TIROU O PREÇO trabalhar e estar alguém TIROU O PREÇO constantemente a TIROU O PREÇO perguntar-nos algo TIROU O PREÇO. Deviam ser avaliadas psicologicamente. Especialmente quando nós dizemos que já tirámos e não acreditam em nós. Imagino o choque que seria se um colega meu fosse à televisão, e lhe chamassem, vamos supor, “GULBENKIAN”, lhe distorcessem a cara e a voz, e dissesse: “Havia um senhor idoso sentado num banco que me fazia festas na mão e… Ah, é para falar da livraria, desculpe… Durante todo o tempo que trabalhei lá… Nunca tirei o preço quando embrulhava livros.” Seria o drama para muitas pessoas, imagino várias senhoras de mão no coração a tentar controlar as batidas galopantes e os senhores a engasgarem-nos charutos enquanto diriam: “Sim eu logo vi pela cara dele que ele não tirava preços, a mim nunca me enganou.” E, mesmo quando chamados à atenção pelas senhora que, a sua cara estava distorcida, eles diriam: “Não me venhas com isso, eu sabia! Além disso, a cara dele não é assim tão diferente na realidade”. Tenho de arranjar uma t-shirt a dizer: “Eu não tiro os preços. E você?” Claro, há sempre pessoas que, depois de fazerem essa pergunta, sempre acrescentam: “Pois, eu sei que faz milhares de embrulhos, e que está habituado a que lhe perguntem, mas pronto, estou a só a perguntar por perguntar. Não vá esquecer-se”. Vê-se facilmente que nestes clientes já há uma ténue tentativa de comunicação entre neurónios, mas mesmo assim, não chegam lá.
Foi exactamente há duas tarde atrás que fui abordado por um senhor que trazia consigo, qual aura nefasta, a seguinte pergunta: “Tem outros livros de poesia sem ser infantis?”. Eu tive que parar para reflectir, pois nem sequer me recordava de termos livros de poesia infantis. Bem, resolvi não questionar o cliente e levei-o até à secção de poesia, onde temos todo o tipo de autores portugueses e não só. Ele começa a ver os títulos, folheia um ou dois livros e diz: “Pois, isto é poesia..:” Eu aí fiquei de pé atrás, pois vi que estava a lidar com um ser extremamente inteligente, e deixei o continuar a falar: “Mas é infantil, ora veja lá, isto é infantil.” Claro que já tinha percebido o que ele queria, mas ele continuou: “Percebe? Infantil, eu quero poesia, assim, de adultos, percebe?” Tenho que assinalar o facto de ele, quando disse adultos, ter movimentado o braço várias vezes para trás e para frente. Eu expliquei ao cliente que não tinha conhecimento de nenhum livro de poesia desse tipo, que o que tínhamos estava aqui, que ele desse uma vista de olhos que podia ser que algo lhe interessasse. Ele não perdeu tempo: “Não, você não percebeu, eu quero poesia de adultos (novamente o gesto do braço), isto é de criança, ora veja lá”. Eu perguntei-lhe se conhecia algum título ou autor, ele disse: “Não está a perceber, é poesia de adulto (e lá veio o gesto)”. Eu imagino o que é que alguém que nos estivesse a observar pela montar pudesse pensar. Optei por deixá-lo lá sozinho, não fosse o homem fazer uma distensão de tanto abanar o braço para trás e para a frente.
Um bem haja, eu voltarei em breve com mais notícias do bizarro e do inconcebível.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Queixas e Reclamações

Como todos devem saber, o livro de reclamações é agora obrigatório em todo o tipo de estabecimentos onde haja contacto com o público. Assim, os clientes mais amuadinhos podem, facilmente, queixar-se de tudo e mais alguma coisa com a maior das facilidades. Sendo uma medida que devemos aplaudir, pois poderá vir ajudar a melhorar a qualidade do comércio em Portugal, não consigo deixar de me sentir um tanto ou quanto injustiçado. Existem reclamações que têm e devem ser feitas, para o bem de todos. Mas, se leram o que venho a escrever à mais de um ano (o que é altamente improvável, sejamos realistas) já deviam saber que há clientes, quais seres demoníacos vindos das profundezas do Inferno (sem ofensa para a Manuela Moura Guedes, obviamente) que são capaz de reclamar por e tudo e por nada. Sendo o por nada mais frequente, claro. O que deixa antever muitas e boas injustiças por esse país fora. Mas, pelo menos agora os consumidores têm, ao alcance de um pedido, uma ferramenta que lhes irá fazer valer todos os seus direitos. Maravilha não é? É a segunda melhor invenção do Séc. XXI, logo atrás do Kit Sócio.
Mas, onde param os direitos dos comerciantes, neste caso, dos livreiros? Se, vamos supor, um livreiro de barba rija, músico e escritor, vamos chamar-lhe de "Gulbenkian" para proteger a sua identidade, expulsar um cliente da loja por passar da hora e este decidir reclamar, está no seu direito. Mas, e o pobre “Gulbenkian”, cansado de 8 horas de trabalho árduo, que não pode reclamar junto de nenhuma instituição o facto de o cliente ter ignorado as portas e luzes fechadas do estabelecimento e ter ignorado os avisos de que a loja já se encontrava fechada? Eles podem queixar. Nós não.
Por exemplo, ainda agora, eu tinha um cliente assim a atirar para o estrábico (acho que é mesmo o termo técnico, "assim a atirar para o estrábico"), que, enquanto lia com um olho a mensagem que tinha no telemóvel com o nome do livro que queria, ia lendo com o outro olho a pesquisa que eu estava a fazer no computador. É inadmissível, violação de privacidade do Livreiro!
Considero, portanto que os direitos dos Livreiros não estão acautelados. Como tal, enviarei a seguinte carta para a Deco:

“Exmos. Srs. Da Deco

Venho por este meio apresentar as minhas queixas (tipo Pinto da Costa) relativamente aos livros de reclamações.
Não será injusto, quer do ponto de vista humano quer institucional, apenas os clientes terem o direito de reclamar? Então e os comerciantes, não são pessoas? Tudo bem, concordo que para a maioria dos clientes seremos apenas capachinhos (e daqueles muito maus, vendidos pelos ciganos na feira, já usados). Mas, mesmo assim, penso que devíamos ter o direito de fazer queixa dos consumidores. Se o Porto pode queixar-se porque o Petit deu uma festinha ao jogador do Estrela, porque é que nós não podemos fazer o mesmo?
E, já agora, podíamos queixarmo-nos dos nossos colegas também? Queixas e reclamações são salutares. Por exemplo, o Baixas passa a vida a ver fotos dele em tronco nu. É motivo para queixume. O Gulbenkian anda sempre a por aqueles CDs de Jazz insuportáveis. Também é motivo de protesto.
Mas, voltando ao assunto que motivou o envio desta carta, considero uma medida positiva a criação do novo livro de reclamações. Tenho apenas um leve reparo a fazer. O livro contém, por cada reclamação, uma cópia para a loja, outra para a entidade competente, e outra para o cliente. Até aqui, tudo bem. Então, mais uma vez, onde está o comerciante nisto? Onde está a sua cópia para levar para casa e emoldurar? Já me estou a ver, com a minha filha, num local de destaque da sala: “Estás a ver filha, Verão de 2006, disse a um cliente que quando ouvi a voz dele pensei que fosse o Serginho. Por pouco não fui despedido… E com razão!”
Já agora, porque é que a letra “e” aparece virada ao contrário na palavra “de”, tanto no livro de reclamações como no cartaz que o anuncia? É alguma piada?
Espero que tomem as minhas sábias palavras em consideração, e que tomem providências quanto às injustiças que ocorrem neste mundo.
Já agora, podem fazer qualquer coisa quanto à inclusão do Beto no onze titular do Benfica? Eu sei que é pedir muito, mas dêem lá um jeitinho.

Muito obrigado pela atenção,
O Livreiro

P.S.: Já agora, o Baixas diz que já resolveu o problema com a sua boneca insuflável, já não há qualquer necessidade de processar a loja “Depravarium.”
Até à próxima.