domingo, janeiro 30, 2005

Na Iminência de Ser o Que Será

Na semana passada chegou uma encomenda com o bonito número de 450 livros, o que se veio a traduzir em 22,5 metros de etiquetas. Que diversão. Para piorar o caso, alguns dos livros não constavam da base de dados, o que significava que não se poderia finalizar a encomenda. Nestes casos à que recorrer a uma técnica samurai milenar: o pedido de abertura. E no que é que consiste o pedido de abertura? Simples (pelo menos para os mais dotados): inserir os dados referentes ao livro (título, autor, proveniência, tipo de livro, preço, etc, etc...). Há que referir desde já que, em 90% dos casos, todos os dados estão bem vísiveis nos livros. Greenpeace, esse monstro dos livros cujo balido faz tremer até os mais duros marujos do mar da literatura, esse salteador do cotão perdido, pegou num monte de livros e resolveu deitar mãos à obra. Qual treinador de pokemon, ele ia apanhá-los todos. E assim o fez. Aconchegou-se junto ao computador e lá começou ele a fazer os pedidos de abertura. Quando cheguei no dia seguinte, ao ver os pedidos de abertura todos feitos disse para mim mesmo: "Com mil raios, este homem é fenomenal, está tudo feito!". Tudo parecia em ordem para terminar a encomenda, mas a tragédia abateu-se sobre os céus da livraria umas horas mais tarde. O impensável aconteceu: 90% dos pedidos de abertura de Greenpeace foram rejeitados. Levado pela fúria, Greenpeace tenta corrigi-los, mas em vão. Foram novamente rejeitados. Tentou novamente, e novamente. E sempre com o mesmo destino: a rejeição. Imbuído de um espírito fraterno e altruísta, decidi partir eu na aventura de corrigir os pedidos. Ao fazê-lo, descobri algo que nunca tinha visto antes. Qual foi o meu espanto quando percorro a página do pedido até ao fim na ânsia de desvendar o erro, e dou de caras com algo chamado histórico do documento. Neste histórico vem discriminado as horas dos pedidos, as suas rejeições, e o porquê das rejeições. E é esse histórico que venho aqui transcrever, devido ao seu carácter único. Reparem bem, no ínicio do histórico tudo corria lindamente, mas a situação iria piorar... Tenha também atenção às notas deixadas pelo tribunal de decisão de pedidos de abertura.
Histórico do Documento
23/01/2005 20:05 (Sistema) Novo Pedido
23/01/2005 21:05 (Sistema) Pedido Submetido por Greenpeace
24/01/2005 18:03 (Tribunal) Pedido Rejeitado com a seguinte justificação: Insira o nome do autor correctamente, escolha o país de origem da editora, o tipo de encadernação e insira o nº de páginas.
24/01/2005 19:20 (Sistema) Pedido Re-Submetido por Greenpeace (NOTA: Será Desta?)
25/01/2005 12:50 (Tribunal) Pedido Rejeitado com a seguinte justificação: Verifique autor, país de origem da editora, tipo de encadernação e insira nº de páginas!!!! (NOTA: Irra que é chato)
25/01/2005 14:33 (Sistema) Pedido Re-Submetido por Greenpeace (NOTA: Não desistas.)
25/01/2005 14:50 (Tribunal) Pedido Rejeitado com a seguinte justificação: Verifique autor, país de origem da editora, tipo de encadernação e insira nº de páginas!!!! (NOTA: Quem é que contratou o Stevie Wonder para fazer pedidos de abertura?
25/01/2005 15:03 (Sistema) Pedido Re-Submetido por Greenpeace (NOTA: Força Martunis)
25/01/2005 15:10 (Tribunal) Pedido Rejeitado com a seguinte justificação: Verifique autor, país de origem da editora, tipo de encadernação e insira nº de páginas!!!! (NOTA: Tanto tsunami por aí e não há nenhum que leve este jovem.)
25/01/2005 15:33 (Sistema) Pedido Re-Submetido por Greenpeace (NOTA: Alguem dê vaselina ao rapaz...)
25/01/2005 16:04 (Tribunal) Pedido Rejeitado com a seguinte justificação: Verifique autor, país de origem da editora, tipo de encadernação e insira nº de páginas!!!! (Se erra mais uma chamem o Bibi por favor)
25/01/2005 17:13 (Sistema) Pedido Re-Submetido por Greenpeace (NOTA: És mais chato que o Santana)
25/01/2005 17:20 (Tribunal) Pedido Rejeitado com a seguinte justificação: Verifique autor, país de origem da editora, tipo de encadernação e insira nº de páginas!!!! (NOTA: Se fosses jogador de futebol eras o Iordanov)
25/01/2005 17:41 (Sistema) Pedido Re-Submetido por Greenpeace (NOTA: Alguém diga ao rapaz que o Castelo Branco não é, eu repito, não é um exemplo a seguir, alguém lhe baixe a mão)
25/01/2005 18:00 (Sistema) Pedido Aceite (NOTA: EEEH VIVAAAAAAAAAAAAAAAAA UAAAAAAAAAAAAAAAU Alguém dê a taça ao rapaz, já posso morrer descansada...)
Para terminar, uma palavra de apreço ao colega Greenpeace, não só pela sua determinante falta de jeito a fazer pedidos de abertura, mas pelo seu sentido de humor (não se chateia com pouco o rapaz, e pelo título, sugestão do próprio. És grande.

terça-feira, janeiro 11, 2005

O Pêndulo

Qual é o nível aceitável de conhecimento que deve ser exigido a um livreiro? Mais uma senhora da alta sociedade (mora talvez no quinto andar) visitou a loja trazendo consigo uma pergunta curiosa: "Olhe, destes livros toooodos (apontando para metade da loja) o que é teve primeira edição este ano?" Falhei, estive muito mal. Ela apontou só para cerca de 1000 livros. Devia saber no mínimo de cór os livros que saíram o ano passado. Depois de um ou dois tiros no escuro, que obviamente falhei, consegui irritar a senhora, que disse o seguinte: "Mas se o senhor não sabe, quem é que há de saber? O senhor está aqui a fazer o quê?" Pensei em dizer que estava a estudá-la para a poder retratar no meu blog, mas duvido que ela soubesse o que era isso, o que daria azo a eu ver me obrigado a perguntar: "Se a senhora não sabe, quem é que há de saber? A senhora está aqui a fazer o quê?" Quando ela saiu, dei por mim a subir ao balcão e a pensar em acabar a minha vida na livraria, tal o impacto que a senhora teve em mim. Decidi viver, debaixo do aplauso dos presentes.
Realmente estas senhoras da alta sociedade são engraçadas. Têm piada, co'a breca. Era pegar numa mão cheia delas, pô-las em frente a uma cãmara e pronto, tinham programa. Não precisavam de motivo, nem de cenário, nem de nada. Deixeim nas falar e vão ver. Por exemplo: uma senhora queria um livro. De momento não tinhamos, mas a senhora queria encomendar. Depois de ter tomado nota dos dados da senhora (algo que demora cerca de 5 minutos, porque tenho de registar os 14 nomes da senhora, mais o telefone de casa e o celular, e o outro celular porque pode estar na ginástica ou a tomar o chá) ela diz o seguinte: "Olhe, se ligar e atender uma senhora MEIA estrangeira, não se assuste, diga só LIVRO, que ela depois diz me e eu percebo." Ora bem, temos aqui algo deveras interessante do ponto de vista sociológico: o MEIO estrangeiro. Não é português, não é estrangeiro. É apenas meio estrangeiro. Talvez nascido na fronteira com Espanha, talvez fruto de alguma experiência maligna, o meio estrangeiro está aí para ficar. Segundo a senhora, a inteligência do meio estrangeiro é limitada, daí a necessidade de refrearmos o palavreado, sendo necessário usar somente a palavra LIVRO, pois algo mais do que isso faria o meio estrangeiro entrar em curto-circuito e explodir, manchando a carpete persa da cliente.
A terceira senhora foi a estrela da companhia. Chegando cedinho, pela manhã, praticamente ao som dos galos, lá foi ela à procura de um livro de medicina veterinária para oferecer ao médico do seu cão. Não sei se é só de mim, mas oferecer um livro de medicina veterinária a um veterinário é um bocado mau. O pobre homem já faz disso a sua vida, tipo dissecar cães e gatos, fazer-lhes toques rectais e coisas que tais, e ainda por cima como agradecimente ainda recebe um livro que lhe explica as coisas que ele faz no dia-a-dia. Ou o senhor acima referido tem pouco ou nenhum jeito para a matéria (consta que a cadela Sissi da senhora antes de lá ter ido era um másculo pastor alemão chamado Rex) ou então a senhora acha que ele ainda pode melhorar. Porque não oferecer como forma de agradecimento livros de condução a estafetas ou mesmo livros de cozinha a cozinheiros? "A comida está tão boa que eu vou lhe dar um livro que ensina a cozinhar." Mas, isto nem sequer é a razão pela qual a senhora figura ilustremente no blog.
Quando lhe peço amavelmente que me siga, com o intuito de lhe mostrar a secção reservada aos livros de medicina, a cliente, como é normal, dirigiu-se em direcção à única saída do balcão, provocando um congestionamento na livraria. Nem eu saía, nem a senhora se mexia. É habitual, mas ainda ninguém conseguiu explicar o porquê de as pessoas, cada vez que saímos do balcão para mostrar algo, em vez de aguardarem dirigem-se em direcção a nós, cobrindo a única saída. Enfim. Quando finalmente resolvemos o imbróglio e seguimos caminho em direcção à distante zona dos livros de medicina, a cliente pára entre duas secções. Chegado à medicina, noto logo que falta qualquer coisa: a cliente. Olho para trás e deparo-me com ela parada, ainda um pouco afastada, entre duas secções (livros de bolso e humor) de braço estendido, assim tipo futebolista abixanado, com a mão suspensa. Castelo Branco não faria melhor. Aguardei com expectativa o próximo movimento, e o que se passou em seguida foi algo de mítico: a cliente leva a mão direita ao bolso (a esquerda continuava suspensa) e tira de lá um cristal preso a um fio. Boa, um pêndulo, pensei eu. De seguida, segura o pêndulo acima da sua mão esquerda ficando o pêndulo a cerca de 3cm das costas da mão, começando este imediatamente a girar à volta das costas da mão. A senhora estava concentradíssima, olha focado no pêndulo, não se mexendo um milímetro. E eu ali, especado, agarrado aos livros de medicina. Nisto se passaram talvez 5 minutos. Parecendo ter acabado, a cliente diz umas frases para ela própria e dirige-se para mim. Pensei que era algo estranho, mas já vi tanta coisa nesta loja que não fiquei afectado com aquilo. Já com a senhora ao meu lado, começo a procurar livros de medicina veterinária para ela. Estava dificil a busca, o pó era muito, o que me fez demorar uns minutos, facto que se veio a revelar fatal. A senhora saca do pêndulo em poucos segundos (vê-se que treinou e que está habituada a fazê-lo ao mais alto nível e nos maiores palcos europeus), estica a mão abichanada e volta a apontar o pêndulo, voltando este a girar. Deixou-me ali, ao seu lado, como nem sequer existisse. Passado pouco tempo, tive de vir ao balcão e ela lá ficou, a falar sozinha e a rodar o pêndulo durante uns bons 10 minutos. Voltou a guardar o pêndulo e a proferir algo que parecia uma oração e abandonou a loja. Há quem tenha medo, há quem goze, há quem respeite. No que toca a mim, pouco mudou aqui na loja. Sinto apenas uma leve dor de cabeça quando paro nos sítios em que a senhora usou o pêndulo, e ultimamente a minha bisavó, que morreu já à algum tempo, tem vindo aqui comprar uns livros de origami. Fora isso está tudo na mesma, portanto não há que temer.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Isto é Verídico

Como diria o companheiro Greenpeace, isto é verídico. Tudo começou quando chego de mais um sossegado almoço e sou imediatamente chamado ao back office pelo mestre gerente livreiro. A urgência da chamada deixou-me um pouco preocupado, porque desta vez não tinha estragado nada ou não me tinha esquecido de nada. Pelo menos que me lembrasse, o que também não me ajudava muito. Mas não, não era nada comigo. "Olha, teve cá uma senhora que queria ser atendida por ti." disse ele, já sem conseguir conter o riso. Chamou os colegas para confirmar, e todos confirmaram. "A senhora queria ser atendida pelo senhor do blog." Duvidoso, pensei eu. E com razão. Era tudo mentira. "Mas, devias ter cá estado..." disse o gerente, passando depois a descrever me pormenorizadamente o que se passou. E o que se passou foi o seguinte, e atenção, isto é verídico: A senhora aproxima-se do balcão, onde se encontrava o senhor gerente, e de imediato iniciou os contactos: "Está a ver isto?" apontando vigorosamente para o canto da boca. A resposta foi positiva. "Está bem a ver isto?", apontando novamente para a boca, ficando mais nervosa. Depois continuou: "Está a ver aqueles livros deitados? Fui eu que os deitei. Porque ontem, quando ia tirá-los, levei com eles na boca!". A senhora era a personificação da fúria. Com toda a experiência e qualidade que lhe é reconhecida, o mestre livreiro respondeu um coloquial "E?". Brilhante. A cliente é que não achou piada. "E?!?!??! E!?!?!?!? Isso é resposta que se dê? E?!?!?! Devia me pedir desculpa!". Como o senhor doutor gerente não gosta particularmente de gritos, tentou refrear a conversa dizendo: "Minha senhora, se é isso que pretende, eu peço desculpa." Ela continua furiosa, e responde afirmativamente. "Então, desculpe." diz o gerente, ao que ela responde: "Desculpe? DESCULPE! Quero desculpas mas não com esse sarcasmo!" A perturbação da cliente era evidente, e lá saiu, furiosa como entrou. Mais um episódio curioso, entre muitos outros, mas que pensámos que tivesse acabado. Não podíamos estar mais enganados.
Ontem à tarde, com a loja relativamente calma, estava cada um para o seu lado a arrumar uma parte da loja, mais uma pessoa ao balcão. Tudo calmo, as arrumações estavam a ir bem, finalmente a livraria está com um aspecto minimamente apresentável. Estava a dedicar a minha atenção à zona da medicina, quando vejo um livro de BD entre os pesados livros de anatomia. Boa, pensei eu, mais uma maravilha da funcionária pública da nossa livraria. Pego no livro, e, enquanto me dirijo para a secção respectiva, vou folheando-o lentamente como costumo fazer com os livros que não conheço. Chegado à zona de BD, deparo-me com um cenário devastador: a zona do esoterismo estava virada do avesso. Prateleiras semi-vazias, livros sem ordem, na base das estantes um caos como nunca antes tinha visto, e pior, livros espalhados pelo chão. Então, antes sequer de ter tido tempo de me virar para a loja e perguntar que hecatombe teria passado por ali (ainda por cima porque, recentemente, tinha sido eu a arrumar aquela secção), ouço uns berros, tipo mistura de guinchos com grunhos, foi qualquer coisa dificil de explicar. "PELO MENOS NÃO ME CAIRAM EM CIMA!". A atenção de todos os presentes para a loja virou-se para uma criatura que trajava de branco, parada a meio da loja. Continuou: "A VINGANÇA SERVE-SE FRIA! VINGANÇA! NÃO ME CAIRAM EM CIMA PORQUE FUI EU QUE OS ATIREI AO CHÃO!" A minha reacção roçou a estupefacção, pelo que esbocei um sorriso provocado pela situação inacreditavelmente ridícula. Virei as costas e comecei a apanhar os livros, quando ouçou passos ao meu lado. Quando os passos cessam, os berros voltam: "ESTÁ SE A RIR?!?! NÃO TEM PIADA!" Eu, mudo de sítio e arrumo outro lado. O bicho persegue-me, continuando com os berros: "VOCÊ ESTAVA CÁ VOCÊ OUVIU O QUE O SEU GERENTE DISSE!" Eu não estava lá, mas enfim, não se contraria os loucos. "E?!?! E?!?!?! ACHA QUE ISSO É UMA RESPOSTA QUE SE DÊ?!? ATIREI AO CHÃO TUDO, NÃO ME ACERTARAM NA BOCA, TENHO JÁ UMA NODOA NEGRA, E AGORA O QUE É QUE EU FAÇO?" E aí, dirigiu-se rumo à porta, parando ainda para delirar sobre vingança e livros caídos. Ficámos todos em silêncio, a olhar uns para os outros, ninguém sabia bem o que dizer. Que mente retorcida é capaz de chegar a uma loja e atirar livros para o chão? Tudo bem que a governação de Santana Lopes não foi famosa, e ok, ele e Paulo Portas consumaram a união de facto, mas nada justifica isto meus amigos. Apelo aqui à calma. Será que o nosso querido Presidente da República também a pode dissolver?
Os livros que a atingiram na face, mais propriamente no canto da boca, foram uns manuais de TAROT. Pois, queria saber o futuro era? O futuro não digo, mas estrelas deve ter visto. Aposto que o horóscopo dela dizia: "Saúde: ATENÇÃO! Tenha cuidado com os problemas na zona da boca." Nunca a ensinaram a não brincar com o TAROT? É o que dá. Agora é que pode dizer que conhece o TAROT bem de perto. Aposto que a carta preferida de TAROT dela é a BOCA. Ela agora está qualificada para "falar" de TAROT. É mesmo uma mulher com o TAROT na ponta da língua. Deviam mudar o nome do livro para "TA-quieta ou levas com isto na boca". É tão esotérica mas não previu que o livro ia cair. (Foi a tentativa de entrar no Guiness com o maior número de chalaças sucessivas sobre TAROT mas sem piada nenhuma.) Realmente não estava lá quando os livros caíram, embora gostasse de ter estado. Para alcançar os livros da última prateleira, é necessário elevar o braço (caso seja uma pessoa com uma altura que ronde 1,70m) a um angûlo de aproximadamente 50º. Portanto, e tendo em conta a base alargada das estantes que tem espaço para conter livros, seria necessário uma posição estranha para ser atingida na boca por um livro. Ou isso, ou então ela puxou os livros com demasiada força em direcção a ela. Mas, digo desde já: não ponho de parte a hipótese da cliente ter tentado mesmo tirar o livro os dentes, ou então ter tentado tirar o livro de costas, tentando fazer algo parecido com a ponte. Pela maneira de agir dela, diria que o livro a tinha atingido em cheio na cabeça.
Fica no ar a dúvida: irá voltar? Aguardemos então. Eu só sei que vou estar atento, não vá cair me nada em cima. E, não se esqueçam: Isto é verídico.