terça-feira, janeiro 11, 2005

O Pêndulo

Qual é o nível aceitável de conhecimento que deve ser exigido a um livreiro? Mais uma senhora da alta sociedade (mora talvez no quinto andar) visitou a loja trazendo consigo uma pergunta curiosa: "Olhe, destes livros toooodos (apontando para metade da loja) o que é teve primeira edição este ano?" Falhei, estive muito mal. Ela apontou só para cerca de 1000 livros. Devia saber no mínimo de cór os livros que saíram o ano passado. Depois de um ou dois tiros no escuro, que obviamente falhei, consegui irritar a senhora, que disse o seguinte: "Mas se o senhor não sabe, quem é que há de saber? O senhor está aqui a fazer o quê?" Pensei em dizer que estava a estudá-la para a poder retratar no meu blog, mas duvido que ela soubesse o que era isso, o que daria azo a eu ver me obrigado a perguntar: "Se a senhora não sabe, quem é que há de saber? A senhora está aqui a fazer o quê?" Quando ela saiu, dei por mim a subir ao balcão e a pensar em acabar a minha vida na livraria, tal o impacto que a senhora teve em mim. Decidi viver, debaixo do aplauso dos presentes.
Realmente estas senhoras da alta sociedade são engraçadas. Têm piada, co'a breca. Era pegar numa mão cheia delas, pô-las em frente a uma cãmara e pronto, tinham programa. Não precisavam de motivo, nem de cenário, nem de nada. Deixeim nas falar e vão ver. Por exemplo: uma senhora queria um livro. De momento não tinhamos, mas a senhora queria encomendar. Depois de ter tomado nota dos dados da senhora (algo que demora cerca de 5 minutos, porque tenho de registar os 14 nomes da senhora, mais o telefone de casa e o celular, e o outro celular porque pode estar na ginástica ou a tomar o chá) ela diz o seguinte: "Olhe, se ligar e atender uma senhora MEIA estrangeira, não se assuste, diga só LIVRO, que ela depois diz me e eu percebo." Ora bem, temos aqui algo deveras interessante do ponto de vista sociológico: o MEIO estrangeiro. Não é português, não é estrangeiro. É apenas meio estrangeiro. Talvez nascido na fronteira com Espanha, talvez fruto de alguma experiência maligna, o meio estrangeiro está aí para ficar. Segundo a senhora, a inteligência do meio estrangeiro é limitada, daí a necessidade de refrearmos o palavreado, sendo necessário usar somente a palavra LIVRO, pois algo mais do que isso faria o meio estrangeiro entrar em curto-circuito e explodir, manchando a carpete persa da cliente.
A terceira senhora foi a estrela da companhia. Chegando cedinho, pela manhã, praticamente ao som dos galos, lá foi ela à procura de um livro de medicina veterinária para oferecer ao médico do seu cão. Não sei se é só de mim, mas oferecer um livro de medicina veterinária a um veterinário é um bocado mau. O pobre homem já faz disso a sua vida, tipo dissecar cães e gatos, fazer-lhes toques rectais e coisas que tais, e ainda por cima como agradecimente ainda recebe um livro que lhe explica as coisas que ele faz no dia-a-dia. Ou o senhor acima referido tem pouco ou nenhum jeito para a matéria (consta que a cadela Sissi da senhora antes de lá ter ido era um másculo pastor alemão chamado Rex) ou então a senhora acha que ele ainda pode melhorar. Porque não oferecer como forma de agradecimento livros de condução a estafetas ou mesmo livros de cozinha a cozinheiros? "A comida está tão boa que eu vou lhe dar um livro que ensina a cozinhar." Mas, isto nem sequer é a razão pela qual a senhora figura ilustremente no blog.
Quando lhe peço amavelmente que me siga, com o intuito de lhe mostrar a secção reservada aos livros de medicina, a cliente, como é normal, dirigiu-se em direcção à única saída do balcão, provocando um congestionamento na livraria. Nem eu saía, nem a senhora se mexia. É habitual, mas ainda ninguém conseguiu explicar o porquê de as pessoas, cada vez que saímos do balcão para mostrar algo, em vez de aguardarem dirigem-se em direcção a nós, cobrindo a única saída. Enfim. Quando finalmente resolvemos o imbróglio e seguimos caminho em direcção à distante zona dos livros de medicina, a cliente pára entre duas secções. Chegado à medicina, noto logo que falta qualquer coisa: a cliente. Olho para trás e deparo-me com ela parada, ainda um pouco afastada, entre duas secções (livros de bolso e humor) de braço estendido, assim tipo futebolista abixanado, com a mão suspensa. Castelo Branco não faria melhor. Aguardei com expectativa o próximo movimento, e o que se passou em seguida foi algo de mítico: a cliente leva a mão direita ao bolso (a esquerda continuava suspensa) e tira de lá um cristal preso a um fio. Boa, um pêndulo, pensei eu. De seguida, segura o pêndulo acima da sua mão esquerda ficando o pêndulo a cerca de 3cm das costas da mão, começando este imediatamente a girar à volta das costas da mão. A senhora estava concentradíssima, olha focado no pêndulo, não se mexendo um milímetro. E eu ali, especado, agarrado aos livros de medicina. Nisto se passaram talvez 5 minutos. Parecendo ter acabado, a cliente diz umas frases para ela própria e dirige-se para mim. Pensei que era algo estranho, mas já vi tanta coisa nesta loja que não fiquei afectado com aquilo. Já com a senhora ao meu lado, começo a procurar livros de medicina veterinária para ela. Estava dificil a busca, o pó era muito, o que me fez demorar uns minutos, facto que se veio a revelar fatal. A senhora saca do pêndulo em poucos segundos (vê-se que treinou e que está habituada a fazê-lo ao mais alto nível e nos maiores palcos europeus), estica a mão abichanada e volta a apontar o pêndulo, voltando este a girar. Deixou-me ali, ao seu lado, como nem sequer existisse. Passado pouco tempo, tive de vir ao balcão e ela lá ficou, a falar sozinha e a rodar o pêndulo durante uns bons 10 minutos. Voltou a guardar o pêndulo e a proferir algo que parecia uma oração e abandonou a loja. Há quem tenha medo, há quem goze, há quem respeite. No que toca a mim, pouco mudou aqui na loja. Sinto apenas uma leve dor de cabeça quando paro nos sítios em que a senhora usou o pêndulo, e ultimamente a minha bisavó, que morreu já à algum tempo, tem vindo aqui comprar uns livros de origami. Fora isso está tudo na mesma, portanto não há que temer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ola ricardo! Tenho lido o teu blog.. e sinceramente acho que esta muito bom, consistente =P e acho k tens realmente muito jeito.. tens um sentido critico impressionante.. e acho k deves continuar!! muitos beijinhos!! e boas vendas! Maria