domingo, dezembro 05, 2004

Divididos

Daquelas personagens típicas da loja há um que marca indelevelmente um dos nossos colegas. Obviamente, e como seria de esperar, não vou dizer o nome deste meu colega porque sei que, com toda a certeza, a sua popa cairia. Vocês sabem do que eu estou a falar. Relativamente à personagem em si, não há consenso quanto ao nome a atribuir lhe. Bicicletas para uns, bandeiras para outros. A divisão está instalada. O primeiro (e, sem dúvida mais importante contacto) ocorreu entre ele e o meu colega Mourinho. E esse encontro, passado numa penosa câmara lenta, marcou os para sempre. Imaginem… Cabelo ralo, braços atrás das costas, anafadinho, andar lento e desconexo. Nos lábios, sempre um sorriso que parece querer descambar em riso. Chega ao balcão, e começa a movimentar-se, dando a entender que vai encetar comunicações. Acontece, como quase sempre, aquele momento em que o cliente ameaça que vai falar mas depois opta por um silêncio incómodo. Aí, seríamos nós que devíamos encetar a conversação, mas estamos num impasse porque o cliente iniciou a comunicação. Até que enfim decide-se a falar. E mostra desde logo um dos seus principais atributos. A voz. E que voz, meus amigos, que voz…Ao pé do nosso cliente, o Nuno Guerreiro é um verdadeiro Conan másculo e viril, um barítono heterossexual de várias mulheres. A sua voz de contra-tenor eunuco, um verdadeira castrati, ecoa estridentemente pela loja, e quase sempre nas piores alturas. E o que deseja esta personagem? Simples. Livros de bandeiras. Agora imaginem, o meu colega, aparentemente sossegado no balcão, quando é confrontado com a seguinte situação: “Tem livros de bandeiras?” pergunta ele, no seu estilo eunuco. “Não, de momento não temos nada.” Responde cordialmente o meu colega. “E costumam ter?” “ultimamente não…” “e vão ter? estão à espera?” “Não lhe sei dizer…” “E são em português?” “Um ou outro…” “E são grandes ou pequenos?” “depende…” “E vão receber agora?” “Depende das editoras…” “E tem muitas bandeiras? E imagens? Em português?” “Depende do livro…” E por aí em diante, a conversa prolonga-se até ao infinito da paciência humana. Agora imaginem-se a ter que responder às mesmas perguntas num curtíssimo espaço de tempo, ao mesmo tempo que tentamos bloquear a situação toda, para não termos um violento ataque de riso. Claro que o risco de isto acontecer é directamente proporcional ao número de colegas ao nosso lado no balcão. E quando o meu colega pensava que já tinha passado o pior, ele volta a atacar: “E livros de bicicletas tem?” “Penso que não…” “E gosta? Gosta de bicicletas? Tem de ter cuidado, senão cai…”. Conhecendo o meu colega, aposto que por momentos passou lhe pela mente a tentação de dizer: “TU GOSTAS É DE ANDAR SEM SELIM!”. Bom, isso seria no mínimo curioso.
Quando encontrei este cliente pela primeira vez, tinha Greenpeace ao meu lado. E, como podem calcular, tivemos que evitar o contacto visual um com o outro, porque sabíamos que mal olhássemos um para o outro iríamos rir perdidamente. E, num momento raro de fraqueza, Greenpeace sucumbiu à pressão e fugiu para o back Office. O resultado foi só um: tive de aguentar sozinho, as perguntas do costume: “tem livros de bandeiras?” “São em português?” “Costuma ter?” “Quando vai ter?” e por aí em diante, até chegar às bicicletas. E é daqui que vem a discussão quanto ao nome. Se, por um lado, o seu primeiro amor são as bandeiras, o seu fervoroso interesse nas bicicletas faz com que outros pendam mais nesta direcção.
Desde esse primeiro encontro, o meu colega tem fugido dele como o Ricardo dos cruzamentos. Um dos episódios que recordo com facilidade consiste no seguinte: estava eu ao telefone com outra loja, à procura de mais um livro que não ia de certeza encontrar, quando olho para o balcão e vejo um vulto parado junto a este. Quando olho a segunda vez para ver se o cliente estaria à espera de ser atendido, parar chamar um colega, eis que reconheço a personagem: o bandeiras! E, pior de tudo: ele viu que estava a olhar. Ele viu que eu o reconheci. Então, alargou ainda mais o seu largo sorriso, e levantou a mão direita, dobrando o braço pelo cotovelo, num movimento único e firme. E eu… Bem, eu fugi, já a tentar controlar a explosão de riso. E, quando deveria ter chamado um colega imparcial, o que eu faço é, evidentemente, como bom colega, chamar o colega Mourinho. Entro no back Office, disfarço o riso e digo, com o ar mais sério possível: “Colega Mourinho, está ali um senhor para si.” Ele levanta-se apressadamente da cadeira que ocupava, e voa para o balcão. E, tão rápido como saiu, volta a entrar, com apenas 3 apoios, no back Office. Mas, desta vez, o seu destino não foi a cadeira que habitualmente ocupa. O seu destino foi a porta. Mais precisamente, o espaço entre a porta e as estantes. Espaço esse que ele encurtou, abrindo ainda mais a porta. Quando ouço o barulho e olho nessa direcção, pensando que o som vinha da loja, vejo o meu colega escondido, quase espalmado, atrás da porta do back Office, enquanto se ria perdidamente. Eu vi nos olhos dele o pânico, a agonia. E deixei-o lá ficar. Teve que ser o diplomata Greenpeace a resolver a questão.
O meu segundo encontro com ele ocorreu quando recebemos a visita de um ilustre administrador. Como devem calcular, não é a altura mais ideal para dar de caras com um personagem que tem em si o potencial para nos fazer rir. E a bandeiras despregadas. Portanto, neste caso, a luta foi ainda mais forte. Ele fez as perguntas do costume, eu dei as respostas do costume. Ele ia sorrindo maliciosamente, como adivinhando o meu sofrimento, e divertindo-se com isso. Entretanto, eu ia pensando em tudo e mais alguma coisa menos na situação que estava a viver, tentando ganhar o confronto. E, quando finalmente foi embora, respirei de alívio. O venerável administrador não deu por nada.
O derradeiro encontro do 3º grau foi o mais original de todos. E porquê? Porque, miraculosamente, ele tornou-se num cliente quase perfeito. Tirando a voz aguda que fere os ouvidos. E os tiques abixanados. Mas, reparem. Ele chegou ao balcão, e começou com as perguntas do costume. Mas, desta vez, espantem-se, ele próprio dava as respostas. O monólogo foi qualquer coisa assim: “Tem livros de bandeiras? Não, pois não? E costuma ter? De vez em quando não é… Pois… E, quando é que vai ter? Agora com o Natal é capaz de receber não é? Acha que vai ter em breve? É melhor ir passando, pois… Boa noite então, adeus…” Brilhante…
Nós já chegámos ao ponto de, depois de termos recebido um livro sobre bandeiras, termos colocado o livro no balcão de forma completamente visível. Estamos mesmo a pedi-las…E com o Natal aí a chegar, adivinham-se mais visitas. Venham elas!