E se há acontecimento comum é o cliente que se encontra num dos maiores dilemas da humanidade (está actualmente classificado entre a discussão do aborto e da eutanásia) que é o “entro na loja com o carrinho das compras ou deixo-o lá fora, correndo o risco de ficar sem tomates”. Esta situação ameniza-se quando há companhia. Fica alguém a guardar as compras enquanto o outro vai e trata dos seus assuntos da livraria. E, foi mesmo ontem que, enquanto arrumava umas prateleiras na companhia do grande Gulbenkian, esse verdadeiro descende dos filósofos gregos (em pensamento e quantidade de pelo), surgiu um casal à procura do livro que optou pela táctica do “mulher fica com as compras, homem parte em busca do livro”. É uma táctica arrojada, poucas vezes executada. O senhor em causa não tinha muito jeito para encontrar livros, então a senhora, experiente, gritava lá de fora: “ESQUERDA, MAIS PARA CIMA, DIREITA, MAIS, MAIS PARA BAIXO!”. O Gulbenkian, mordaz e oportuno como sempre, disse que pareciam os saudosos Jogos Sem Fronteiras. E tinha toda a razão. Senti-me um verdadeiro Eládio Clímaco. Para mim, aquilo foi uma potente demonstração do primeiro “Marido Telecomandado” do mundo. Fiquei convencido.
Com a chegada do verão aumenta a procura dos guias turísticos e dos mapas. Além do choque que é não termos mapas de Cascais, os clientes arranjam sempre maneira de se queixar de alguma coisa. Ou porque o guia é pequeno, ou porque é grande, ou porque há da Itália mais não há da Toscana ou porque não encontram o guia do Benim ou do Burkina Faso. Mas ninguém bate a senhora que pede um guia de África. Eu digo que não temos, e que nunca recebemos um guia de África, perguntando-lhe em seguida se queria algum país em especial. “Não, quero mesmo de África toda!” responde ela, já meio chateada e eu, sem poder fazer mais nada, volto a dizer que não temos nem vamos ter um guia de África. “Desculpe lá, se tem da Índia ou Alemanha, porque é que não tem de África?” inquiriu ela. Não consegui evitar, tive que lhe indicar o óbvio: “Pois, é que a Índia e Alemanha são países, África é um continente.” E bem grande, por sinal. Depois da senhora deixar passar na sua cara algumas cores entre o vermelho e roxo, soltou fumo das narinas e disse: “OBVIAMENTE QUE EU SEI QUE SÃO PAISES! E SEI QUE AFRICA É UM CONTINENTE! EU SEI A DIFERENÇA! EU SEI!”. Não era para ofende-la, mas ela estava a insistir demasiado. “Então, mas tem ou não tem?” Eu já tinha dito que não várias vezes, mas quem sou eu para dizer uma coisa dessas não é? O que eu digo não se escreve. Voltei a explicar-lhe que não tinha guias relativos a um continente no geral, só a alguns países em particular. Ela ficou furiosa e saiu. Não tive sequer tempo de lhe desejar boa viagem.
Os clientes muitas vezes, apesar de dizermos que não temos um livro, insistem para que consultemos a base de dados. Mas, encontram sempre maneiras curiosas de o fazer. “Não pode ver no seu computadorzinho?”, “Não ver na sua list?a” ou o meu preferido “Pode consultar os seus ficheiros?”. Este último, quando é acompanhado de um ar desconfiado e tom de voz solene, faz me sentir como um agente da PIDE.
O verão é também a época de algumas loucuras. Veja-se o caso de três amigas que estavam a consultar a secção de história. Pareciam ser pessoas normais (o que é difícil, nesta livraria). Até que começam a rir, a rir, a rir. Perdidamente, e aparentemente sem razão. Pelo meio dos risos conseguia ouvir um trémulo “vai dizer ao senhor, vai dizer ao senhor”. Não estava mais ninguém na loja, o “senhor” deveria ser eu. A piada não é isto, não se riam. Bom, finalmente uma delas ganha coragem, e entre o limpar das lágrimas diz: “Desculpe, podia ajudar-me? É que caiu ali uma coisa para trás…”. As outras riam. Eu disse que não havia problema, que, eventualmente, nós apanharíamos o livro que tinha caído. Elas riram ainda mais. “Não está a perceber, foi a minha peça que caiu lá para trás!” E riam as três, perdidamente. Deixou cair a peça dela, portanto? Certamente que era uma peça da cabeça, tal a figura que ela estava a fazer. Sem outra alternativa, lá tive que abandonar o meu posto de trabalho e ir afastar a prateleira. Depois da nuvem de pó dissipar-se, encontrei um caderno caído lá atrás. Entreguei-lhe o caderno. “Obrigado, salvou-me a vida” disse ela. Não quis desiludi-la, mas acho que o que ela tem não tem cura ainda… A minha pergunta é a seguinte: O que é que raio ela estava a fazer para o caderno ir ali parar? Acho que nem elas sabem.
Boas Férias (para quem tem sorte de as ter…).