sexta-feira, junho 30, 2006

C'est Les Vacances

Entrei de férias ontem, mas senti-me pressionado para vir cá deixar mais uma tese sobre a vida rural dos vendedores de cautelas em Celourico-da-Beira. Mas, como não fui capaz de urdir uma tese com pés e cabeça (o costume, portanto), deixo-vos com mais acontecimentos da livraria.
E se há acontecimento comum é o cliente que se encontra num dos maiores dilemas da humanidade (está actualmente classificado entre a discussão do aborto e da eutanásia) que é o “entro na loja com o carrinho das compras ou deixo-o lá fora, correndo o risco de ficar sem tomates”. Esta situação ameniza-se quando há companhia. Fica alguém a guardar as compras enquanto o outro vai e trata dos seus assuntos da livraria. E, foi mesmo ontem que, enquanto arrumava umas prateleiras na companhia do grande Gulbenkian, esse verdadeiro descende dos filósofos gregos (em pensamento e quantidade de pelo), surgiu um casal à procura do livro que optou pela táctica do “mulher fica com as compras, homem parte em busca do livro”. É uma táctica arrojada, poucas vezes executada. O senhor em causa não tinha muito jeito para encontrar livros, então a senhora, experiente, gritava lá de fora: “ESQUERDA, MAIS PARA CIMA, DIREITA, MAIS, MAIS PARA BAIXO!”. O Gulbenkian, mordaz e oportuno como sempre, disse que pareciam os saudosos Jogos Sem Fronteiras. E tinha toda a razão. Senti-me um verdadeiro Eládio Clímaco. Para mim, aquilo foi uma potente demonstração do primeiro “Marido Telecomandado” do mundo. Fiquei convencido.
Com a chegada do verão aumenta a procura dos guias turísticos e dos mapas. Além do choque que é não termos mapas de Cascais, os clientes arranjam sempre maneira de se queixar de alguma coisa. Ou porque o guia é pequeno, ou porque é grande, ou porque há da Itália mais não há da Toscana ou porque não encontram o guia do Benim ou do Burkina Faso. Mas ninguém bate a senhora que pede um guia de África. Eu digo que não temos, e que nunca recebemos um guia de África, perguntando-lhe em seguida se queria algum país em especial. “Não, quero mesmo de África toda!” responde ela, já meio chateada e eu, sem poder fazer mais nada, volto a dizer que não temos nem vamos ter um guia de África. “Desculpe lá, se tem da Índia ou Alemanha, porque é que não tem de África?” inquiriu ela. Não consegui evitar, tive que lhe indicar o óbvio: “Pois, é que a Índia e Alemanha são países, África é um continente.” E bem grande, por sinal. Depois da senhora deixar passar na sua cara algumas cores entre o vermelho e roxo, soltou fumo das narinas e disse: “OBVIAMENTE QUE EU SEI QUE SÃO PAISES! E SEI QUE AFRICA É UM CONTINENTE! EU SEI A DIFERENÇA! EU SEI!”. Não era para ofende-la, mas ela estava a insistir demasiado. “Então, mas tem ou não tem?” Eu já tinha dito que não várias vezes, mas quem sou eu para dizer uma coisa dessas não é? O que eu digo não se escreve. Voltei a explicar-lhe que não tinha guias relativos a um continente no geral, só a alguns países em particular. Ela ficou furiosa e saiu. Não tive sequer tempo de lhe desejar boa viagem.
Os clientes muitas vezes, apesar de dizermos que não temos um livro, insistem para que consultemos a base de dados. Mas, encontram sempre maneiras curiosas de o fazer. “Não pode ver no seu computadorzinho?”, “Não ver na sua list?a” ou o meu preferido “Pode consultar os seus ficheiros?”. Este último, quando é acompanhado de um ar desconfiado e tom de voz solene, faz me sentir como um agente da PIDE.
O verão é também a época de algumas loucuras. Veja-se o caso de três amigas que estavam a consultar a secção de história. Pareciam ser pessoas normais (o que é difícil, nesta livraria). Até que começam a rir, a rir, a rir. Perdidamente, e aparentemente sem razão. Pelo meio dos risos conseguia ouvir um trémulo “vai dizer ao senhor, vai dizer ao senhor”. Não estava mais ninguém na loja, o “senhor” deveria ser eu. A piada não é isto, não se riam. Bom, finalmente uma delas ganha coragem, e entre o limpar das lágrimas diz: “Desculpe, podia ajudar-me? É que caiu ali uma coisa para trás…”. As outras riam. Eu disse que não havia problema, que, eventualmente, nós apanharíamos o livro que tinha caído. Elas riram ainda mais. “Não está a perceber, foi a minha peça que caiu lá para trás!” E riam as três, perdidamente. Deixou cair a peça dela, portanto? Certamente que era uma peça da cabeça, tal a figura que ela estava a fazer. Sem outra alternativa, lá tive que abandonar o meu posto de trabalho e ir afastar a prateleira. Depois da nuvem de pó dissipar-se, encontrei um caderno caído lá atrás. Entreguei-lhe o caderno. “Obrigado, salvou-me a vida” disse ela. Não quis desiludi-la, mas acho que o que ela tem não tem cura ainda… A minha pergunta é a seguinte: O que é que raio ela estava a fazer para o caderno ir ali parar? Acho que nem elas sabem.
Boas Férias (para quem tem sorte de as ter…).

quarta-feira, junho 28, 2006

Live In Paris

Já não posso ouvir Diana Krall. Imaginem isto: 5 ou 6 horas seguidas, 3 vezes por semana, sempre o mesmo CD. Sempre. Eu já não aguento, torna-se difícil fazer seja o que for com a constante repetição das músicas. De vez em quando surge uma música nova, a aparelhagem carrega outro CD. Surge uma ténue esperança, mas logo logo aparece a Feiticeira, essa paladina da repetição musical, e volta a por o CD da Diana Krall. Como se não bastasse o factor repetição, também tenho que estar constantemente a dizer aos clientes o que está a tocar. Todos os dias alguém pergunta o que está a tocar. E todas as vezes que isso acontece, sinto-me muito tentado a dizer: “Gosta?! Então leve! Já!”, mas, a moral e os bons costumes impedem que faça isso. Mas, ainda há pior. Além da repetição e das perguntas, temos algo infernal, demasiado horrendo para ignorar: o dançar. E se eles dançam. Confesso que a utilização do termo “dançar” pode ser considerada inadequada, mas é um termo familiar para a maior parte das pessoas (veja-se, por exemplo, Jerónimo de Sousa). É vê-los ai, espalhados pela loja, a dançar. Depois de várias horas de estudo, devidamente fundamentado por alguma leitura técnica, consegui dividir os dançarinos em dois grupos distintos. O primeiro grupo, composto maioritariamente por homens, executa um rápido abanar ou bater do pé, sempre fora de ritmo, com ramificações ao nível do estalar do dedo ou abanar da cabeça. Basicamente parece que estão com espasmos. Eles tentam cantarolar alguma coisa, mas o som que emitem é altamente imperceptível. Geralmente encontram-se nos cantos da loja, soltando pequenos espasmos e tiques ao que eles julgam ser o ritmo da música. Usam calças beges e camisas lisas. O cabelo é geralmente grisalho. O segundo grupo é composto maioritariamente por mulheres, e a dança é mais ao nível da coxa (como movimentos para trás e para a frente) e do joelho (movimentos para a esquerda e para a direita). O abanar de anca é por vezes de tal forma que, se mascassem pastilha, fariam boa figura nas movimentadas noites do parque Eduardo VII. Geralmente encontram-se nas esquinas da loja, entre as gôndolas. Relativamente ao grupo maioritário, infelizmente não tenho em minha posse dados estatísticos e correspondentes gráficos, mas, com base nas minhas investigações, diria que o grupo dominante é o grupo que abana a anca. Sei que posso vir a ser condenado pelos mais variados quadrantes da comunidade cientifica por uma observação ousada e inovadora como esta, mas é assim que penso. Ontem temi pela vida. Do meio do nada, um dos adeptos do espasmo foi se deslocando ao longo da loja, na direcção de uma abanadora de anca. Bom, meus amigos, senti-me como se fosse um explorador a observar o acasalamento entre dois Pandas. Decidi afastar-me e manter me em silêncio. Não queria perturbar o momento. Foi fascinante. Olharam um para o outro, reflectiram-se sobre o ridículo da figura que observavam, o que levou a reparem no ridículo da sua própria figura. O senhor limpou a garganta e saiu da loja embaraçado. A senhora ajeitou o cabelo e isolou-se num canto a contar uns livros. A Diana Krall continuou a cantar, e eu, infeliz, imaginava a tampa do piano a cair sobre os dedos de uma canadiana (e não americana, como alguns incultos para aí apregoam...) loura…
No nosso balcão temos uns marcadores num expositor bastante curioso, e, obviamente, pouco prático. Digamos que a única utilidade que consigo deslindar é a sombra que lança sobre o monitor, impedindo que fique encadeado com os holofotes, enquanto escrevo estas linhas. Os marcadores dão mais trabalho do que dinheiro. É sempre comum ver putos ranhosos e pitas histéricas à procura do nome e seu significado. Soltam sempre uma leve risota por gostarem do significado do seu nome, ou arranjam sempre maneira de fazer troça do significado do nome dos companheiros. Mas, há sempre alguém que gosta de se desmarcar dos demais. Estava eu no back Office com aquele grande mouro de trabalho e colecionador de multas, Gulbenkian, quando ouvimos o seguinte comentário: “Filipe, amigo de cavalaria, Fransico, homem, livre, Aster… ASTER?! Que nome mais estranho!”. A jovem devia ter visto que estava a ler um marcador alusivo a uma flor. Sempre na ânsia de ir mais além, um cliente não quis ficar atrás: “Matilde, rainha da vitória, Daniela, juíza de Deus, João, agraciado por Deus, Gladíolo… GLADÍOLO?! QUEM É QUE SE CHAMA GLADÍOLO!? JOÃO, ANDA CÁ VER ISTO PÁ, Há UM GAJO CHAMADO GLADÍOLO!”.
Para quê procurar vida extra-terrestre quando temos inteligência deste nível tão perto de nós?

domingo, junho 18, 2006

É pá, realmente, pá!

Hoje atendi um verdadeiro marialva. Bigode, telefone bem seguro na mão, corrente de ouro no pulso e no pescoço, andar gingão, palmada no rabo da mulher logo à entrada. Vejo esta personagem e espero que não se dirija ao balcão. Provavelmente quer saber onde se vende A Bola, ou coisa parecida. Mas, afinal não: “Jovem, tudo bem? Pá, a minha mulher quer aprender de computadores, ou o caraças, podes me dar aí um dica?”. Muito bom, pensei eu, uma dica. Quem é que usa uma frase dessas, ainda para mais numa livraria. Acedi ao seu pedido e dirigi-me à zona de informática. Pelo caminho ainda o ouvi: “Esta mulheres, ainda agora saíram da cozinha e já querem computadores, oh caraças…”. Qualquer dia ainda votam, pensei eu. Chegámos ao local da informática e comecei a procurar a colecção “Para Totós” da Porto Editora. Era mais do que adequada. Não tínhamos o livro indicado, então procurei algumas alternativas. Devo dizer que foi complicado, porque procurar algo quando temos alguém ao nosso ouvido constantemente a debitar frases começadas e acabadas em “Pá” é uma tarefa árdua. Lá encontrei o livro e dei-o à senhora. Obviamente que o cliente o arrancou prontamente das mãos desta, e começou a folheá-lo. Claro que passado dois segundos, sem ter lido fosse o que fosse diz: “Pá, tão e não tens nada assim pó mais avançado?”. Ou bem que quer livros o mais básicos possíveis ou bem que não quer. Decidam-se. A senhora insistiu, e acabaram por levar aquele. E o que se seguiu, meus amigos, foi espectacular. O homem, tentando arrancar um desconto à força, lançou um número incrível de frases em apenas um minuto. Parecia saído de um concurso de televisão. Quem é que não se lembra daquela prova fantástica de um programa do Júlio Isidro, “Parvoíces para arranjar desconto, em apenas um minuto”? Ele seria imparável. Começou, ainda estava na zona da informática. “ISTO POR SER A PRIMEIRA COMPRA DÁ 50% DE ESCONTO NÃO É PÁ? PÁ, E SE FIZERMOS UM CARTÃO? E SE PROMETERMOS VOLTAR CÁ E FICAR CLIENTES? E SE FORMOS SÓCIOS PÁ? E SE PAGARMOS A PRONTO? E SE PAGARMOS A CRÉDITO SEM JUROS PÁ? E SE PAGARMOS A DINHEIRO?”. Claro que não teve desconto. Mas valeu o esforço, pá.
Realmente os clientes farejam o desconto. De vez em quando temos campanhas especiais de desconto, durante as quais alguns títulos seleccionados têm 10% de desconto. Obviamente que não pomos etiquetas de desconto em todos os livros. Mas, os clientes, sempre zelosos dos seus interesses, trazem sempre os livros que têm o autocolante, não vá o livreiro maldoso negar-lhes o desconto. Claro que, quando as campanhas acabam, acaba por ficar sempre um ou dois livros com a etiqueta. Aí, quando eles aparecem, não há outro remédio senão fazer mesmo o desconto. Mas, o que me intriga são alguns clientes acabam sempre por encontrar um livro perdido com desconto, por mais que tiremos etiquetas. No outro dia tive que mudar uma montra onde estavam alguns livros com desconto. Já estava em cima da hora de abertura, e se demorasse mais algum tempo lá vinha o segurança chatear. Então o que é que eu fiz? Escondi os livros com 10% de desconto debaixo dos que não tinham desconto, de modo a que não fosse possível vê-los. Ficou tudo em ordem. Ou assim pensei eu. Durante a tarde, surge uma senhora com o tal livro, com uma etiqueta de 10% de desconto. Perguntei educadamente à senhora onde é que tinha tirado o livro, pois podia haver mais livros com a etiqueta. “NA MONTRA, PORQUÊ?” responde ela. Na montra. Aqueles papéis com os avisos para não mexer na montra não interessam. Fui à montra e tinha a montra virada do avesso. A senhora, com o seu faro apurado, revirou a montra toda e lá encontrou, debaixo de 20 livros, um livro com desconto. Também devia entrar em concursos.
Por falar em segurança, os deste centro comercial são muito especiais. Quando a loja é assaltada, ninguém vê nada, mas ai de quem for à montra enquanto a loja tiver aberta. Surge logo um segurança a chamar a atenção, indicando obviamente as possíveis represálias. E reagem da mesma forma a atrasos e nudez. Nunca percebi porquê. O que acho mais piada nestes seguranças é que não podem entrar nas lojas sem autorização. Fazem me lembrar os vampiros da Buffy. Aliás, consta que um vampiro da Buffy, ao ser comparado a um segurança de centro comercial, espetou ele próprio uma estaca no seu coração. Não o censuro.

quarta-feira, junho 14, 2006

Só Às Vezes...

Há que dar mérito à Margarida Rebelo Pinto. Eu sei, eu sei, é uma maneira bombástica, diria até quase surreal, de iniciar um post, mas o que é para ser dito tem de ser dito. E porquê? Por causa da fita que fecha o seu mais recente livro, “Diário Da Tua Ausência”. A fita, de cor bordeaux, é a principal atracção do livro. Senão vejamos, esta aparentemente inocente e simples fita serve muitos propósitos. O mais óbvio é manter o livro fechado, para não corrermos o desnecessário risco de queimarmos alguns neurónios. Mas, se por acaso, por alguma tentação mórbida e fetichista decidimos retirar a fita e ler o livro, temos duas hipóteses: Ou usamos a fita como um bonito garrote de modo a salientar as veias do pulso para as cortar de seguida, pondo fim à nossa miséria, ou ainda pode servir para cortar a respiração através de enforcamento. É praticamente um canivete suíço.
Se há coisa que me deixa perplexo é o cartão de cliente. Esta prática de ter um cartão de cliente alastra-se a tudo o que são lojas, não sendo raro ver os clientes com uma carteira à parte só para albergar os vários cartões de clientes. E. o mais curioso de tudo, a maior parte dos clientes nem sabe para que é os cartões servem. “Tenho aqui um cartão, ou lá o que é, nem sei para que serve.”, ou então “Acho que tenho aqui um cartão vosso, isto serve exactamente para quê?” Quando eles dizem estas frases, os seus olhos brilham e o seu rosto ostenta uma curiosidade quase pueril, muitas vezes mostrando alguma dificuldade em conter a excitação. Porquê, pergunto eu? É apenas um cartão. Os clientes perguntam isto de uma maneira que faz-me sentir tentado a dizer: “Esse cartão dá-lhe automaticamente o super-poder da visão raio-x e força sobrenatural. Vai passar a conseguir saltar arranha-céus de uma só vez, fugir às bichas na ponte e às férias na Caaparica. Ah, e também acumula 10% de tudo o que compra, para depois receber um vale de desconto, mas isso pouco ou nada interessa!”.
É prática comum ligarmos para outras lojas para reservar ou pedir que transfiram algum livro. E, é também bastante comum esse acto, aparentemente elementar, demorar uma eternidade, e também revelar-se infrutífero, com o colega a não encontrar o livro. Depois de vários e longos minutos colado ao telefone à espera de um qualquer livro, fico sempre à espera de o caro colega do outro lado da linha diga o seguinte: “Olhe, não encontrei o livro que me pediu, mas, ali atrás de umas estantes encontrei o Santo Gral, não sei se lhe interessa , veja lá, você é que sabe…”
Uma das nossas colegas fez uma pequena operação cirúrgica às orelhas. Foi algo meramente estético, sem qualquer complicação, mas que, ainda assim, a obrigou a usar durante alguns dias uns enormes pensos brancos nas orelhas. Por muito que tentasse ocultá-los com o seu cabelo, eles eram por demais evidentes. Ora os clientes, simpáticos como sempre, não conseguiam desviar o olhar, algo que a incomodava. Claro que eu, altruísta como sempre, sugeri-lhe uma maneira de se divertir com a situação. Era muito simples, sempre que algum cliente ficasse especado a olhar ou referisse algo, ela diria apenas que tinha sido atacado por um bando de morcegos raivosos à saída do trabalho. Ela não achou piada. O humor não é o seu forte. E pelos vistos o meu também não.
Estava eu no balcão, sossegado como sempre, compenetrado no meu trabalho, quando surgem duas senhoras brasileiras junto ao balcão. Primeiro pedem-me calendários do mundial. Não temos, nunca tivemos, facto que as deixou deveras incomodadas: “Como é que é possível, no Brasil há em todo lado né?” Tem toda a razão, mas o mais provável era levar o calendário e ser raptada mal saísse da loja. Mas o importante é o calendário. Depois deu uma volta pela loja, viu uns livros e voltou para falar comigo: “Oi, você pode ler enquanto trabalha?”, pergunta ela, pertinentemente. Efectivamente posso ler enquanto trabalho, mas não dá muito jeito ler Paul Auster enquanto se carregam pilhas de 30 livros. Levem isto como um conselho. Respondi que não, não podia ler durante o horário de trabalho. Claro que toda a gente passa os olhos por um livro ou outro, mas não vou dizer isso a um cliente. E qual é a resposta dela? “Ah, então não quero trabalhar aqui não!”. E foi embora. E eu lá fiquei. A ler, porque não estava para me chatear muito. Ser Livreiro às vezes tem as suas vantagens. Às vezes…

terça-feira, junho 06, 2006

Porquê Eu?

Sem querer entrar em conspirações, acho que a maior prova de que o dia 6/6/06 não traz coisas boas é o lançamento do novo cd dos DZR’T. Imagino Satanás, no seu covil, a planear o seu regresso e escolher os seus súbditos: “Saddam, não… Muito velho… Bin Laden, não, pouca classe, vive numa caverna… O Goucha está ocupado… Hmmmm… Olha aqueles quatro abichanados que se abanam em palco como se fossem animais feridos… Sim, o terror! Vão ser estes os meus enviados para anunciar o fim do mundo! E que sons horrendos eles soltam! O quê Hitler? Eles estão a cantar?! Não posso! Tens a certeza?! Bom, se o dizes… Sim, sim, são estes os escolhidos!”
Desde os remotos tempos da antiguidade os filósofos como Sócrates tinham como hábito, para além de ler os diários desportivos, questionar tudo o que fosse possível questionar. Quem sou? Para onde vou? De onde venho? Porque é que raio sou sempre eu a atender os clientes mais tresloucados? Eram todas questões válidas. Quando confrontado com esta ultima questão, era frequente ver Sócrates chorar compulsivamente. E aqui estou eu, no século XXI, com a mesma questão. Porquê eu? Quatro pessoas numa loja. 25% de hipóteses de ser abordado por um qualquer louco. A percentagem parece jogar a meu favor, mas, obviamente, ele vem ter comigo. O que se seguiu foi algo de inqualificável. O senhor começou a pedir livros de 1928, e, obviamente, ficou chocado quando verificou que nós não tínhamos nada do que ele queria. Dai a maldizer o país, classificando-o como sendo de terceiro mundo, e a usar todo e qualquer palavrão comum da língua portuguesa foi um instante. “EU JÁ TIVE ESSES LIVROS, MAS EMPRESTEI E ROUBARAM-ME. QUERES O HERMAN HESSE? TOMA. E O LIVRO? TCHAU, NUNCA RECEBI NADA!” disse, enquanto fazia algo semelhante a uma dança, em frente do balcão. Depois falou da nossa livraria, de outras livrarias que tinha visitado. E isso levou-o a falar de lojas de roupa. Lá ia reclamando sobre os preços, enquanto dançava para a frente e para trás, soltando um palavrão aqui, um palavrão ali, como se fosse nada com ele. Segundo ele, ninguém quer dar quarenta contos por umas calças da Trussardi! Depois disse que eu não podia ter boa roupa porque estava ali, atrás de um balcão, e quando soube a marca da minha camisa explodiu novamente. Porque a marca em questão é demasiado clássica e está praticamente falida. E disse que “OS PORTUGUESES NÃO SÃO BRITISH! NÃO SÂO BRITISH!”. O que, indo ao fundo da questão, até faz sentido. Os portugueses são portugueses. Se fossem britânicos, já não eram portugueses. Eram britânicos. E continuou: “SE FOR A INGLATERRA TEM UM PRETO NO AUTOCARRO A DIZER TICKETS PLEASE! TICKETS PLEASE! E VOCE O QUE É QUE FAZ? MANDA O À MERDA! AGORA CA EM PORTUGAL? SE MANDAR O MOTORISTA, HOMEM OU MULHER À MERDA, ELE MANDA O DE VOLTA! SABE O QUE EU FAÇO? FUJO. SE ME MALTRATAM, FUJO. SE ME BATEM FUJO. SE OS POLICIAS ME MALTRATAM, FUJO. NUNCA BATI. SOFRI? MUITO! POR ISSO É QUE VOU SER CAMIONISTA!”. Eu, a esta altura, já estava a olhar em frente, a pensar no que iria fazer hoje, no que seria o jantar. E os meus colegas, sem saber bem o que se estava a passar, viam aquele cliente a saltar, dançar, berrar. Ele continuou, apontando para a tatuagem que ostentava no braço esquerdo: “E AGORA SOU GAY! Estou a brincar consigo. INDA ONTEM LEVEI UM PAR DE CORNOS! MAS ESTAVA PREPARADO! ERA UM HOMEM MARAVILHOSO! VAI A ESTA HORA A CAMINHO DE BARCELONA, NO SEU CAMIÃO!”. Lá está a tara por camiões. Mas o pior ainda estava para vir. “EU VOU SER CAMIONISTA. TENHO AULAS HOJE! SE FOR, VOU, SE NÂO, OLHA, FO… SABE O QUE EU FAÇO AO MEU CAMIÃO?” Eu já estava por tudo, mas nada me podia preparar para o que vinha a seguir. O cliente bate numa agenda do Rock In Rio e diz: “FAÇO ISTO!” E lambe o livro, de uma ponta a outra, da forma mais pornográfica e lasciva que possam imaginar. “FAÇO ISTO PORQUE AMO O MEU TIR!”. Já tinha visto muita coisa, mas um cliente lamber um livro de alto a baixo foi algo novo. Já estava desesperado a esta altura, sem saber o que fazer para sair dali. Ele não parecia ter intenções de se ir embora. E os meus colegas, simpáticos, não sei do que é que estavam à espera para por o telefone a tocar e dizer que era para mim. O cliente continuou a falar, sobre despedimentos prévios, idas a França (tinha sotaques inglês e francês irrepreensíveis), contactos com um gerente de uma grande entidade bancária nacional, que, segundo ele, remonta ao tempo da sua casa de 1610 de Manique. “E EU VIA O GAJO A VIR NA ESTRADA E DIZIA: EH GAJO! E TIRAVA AS MAOS DO GUIADOR! RESULTADO, CAI DA BICICLETA. E O CAPACETE? ESTAVA EM CASA!” Pronto, isto explica muita coisa. Antes de se ir embora, perguntou o meu nome e disse para eu não comprar nada na tal loja de roupa. E saiu da loja, abanando-se como se não houvesse amanhã.
E, tendo em conta que hoje é o dia 6/6/06, até podia ter razão…