segunda-feira, abril 18, 2005

O Sorriso

Regressado de África, depois de um mês a passar fome, cá estou eu renovado. As coisas por aqui estão basicamente na mesma. Vende-se pouco, reclama-se muito, enfim, o costume. As segundas de manhã continuam a ser uma longa caminhada no deserto. De vez em quando lá aparece um vendedor ou outro, ou algum cliente perdido à procura de jornais ou onde comprar o pão e pouco mais. Os vendedores por vezes até dão para entreter, seja pelos livros mais ridiculos ou pelos desesperados pedidos de verificação de vendas de um qualquer título. Mas, melhor é mesmo quando aparece alguma mulher. Melhor ainda, se for vendedora. Os vendedores são na grande maioria, quase na totalidade, homens. É raro aparecer aqui alguma vendedora. Desde que aqui estou (neste mesmo local, porque raramente saio daqui seja para o que for) só me recordo de ver três vendedoras. E a última que vi veio numa segunda-feira. Se acham que os homens da obras tem piropos caricatos, nunca viram um vendedor de livros a babar-se por uma congénere. E as conversas que eles arranjam para falar com ela também são muito usadas. É o típico: "Ah e tal, eu conheço esta pessoa da sua familia e andei consigo ao colo e tal...". O costume, portanto. Claro que, quando ela sai ouve-se logo: "Aquilo é que é uma mulher bem criada", seguindo-se mais mil e um comentários impercetíveis entre os vendedores. Não me admiro, portanto, que se ouça: "É tão linda que deve vir com 19% de IVA" ou ainda "Queria fáctura-la com 42% de desconto", ou o já famoso "Facturava-te a firme sem direito a devolução" ou até mesmo "Consignava-te até ao fim da minha vida." (Piadas de livreiro. Se não perceberam ou não acharam piada não se molestem por causa disso. É muito à frente).
Em ensaios passados abordei a problemática do sentido de humor dos clientes, no qual salientei, com toda a justiça, a frase: "Se fosse bicho mordia-me.". Frase essa que é utilizada quando algum cliente procura um livro e ele está mesmo à sua frente. Pois bem, hoje defrontei-me com a versão rural deste dito popular, tão do agrado do cliente. Lá estava ele, o cliente, atarantado à procura de livros, quando eu, no pleno cumprimento das minhas funções, lhe indico o livro desejado. Surpreendido, quiçá maravilhado, o cliente solta um sincero: "Epá, é como se tivesse no meio da horta e não visse as couves.". Elucidativo.
Quem esteve cá, depois de uma longa (e sentida) ausência foi a nossa personagem favorita dos Sábados de manhã: Bin Laden. Quem desconhece este mito incontronável vá AQUI. Pronto. Estava eu no balcão a tratar de uns papéis. Atenção, não disse que estava a trabalhar, estava apenas a tratar de uns papéis, fazendo uns desenhos e coisas afins. E vejo-o, qual miragem tornada realidade, a caminhar ao longo da montra. Ciente do que aí vinha, e temendo o pior, digo para a minha colega: "Olha, eu vou só ali dentro ver qualquer coisa." E lá fui eu assim como não quer a coisa lá para dentro. Ela ficou impávida e serena. Já co um pé dentro do back office, já com o doce sorriso da vitória, ouve-se um sonoro: "OH JOVEM!" vindo do interior da loja. Tinha sido apanhado. Apesar da colega se encontrar no balcão, ele queria o expert em terrorismo da loja. E lá tiver que ir. Cheguei ao balcão, ele cumprimentou-me como é hábito. Desta vez, o cheiro a alcoól tinha sido substítuido por um forte odor a perfume. Ficamos agradecidos. Estava mais calmo e bastante mais perecptível que o habitual. Desta vez, por cada 10 palavras que dizia já percebia 4. Como não podia deixar de ser, vinha perguntar pelo Bin Laden, e se já saiu o segundo. Também não sei qual segundo, nem sequer o que era o primeiro, mas é isso que ele quer. Estava calmo e amigável, o que me motivou a dar-lhe uma resposta simpática, o habitual: "não temos, não está previsto a saída, deve estar mesmo esgotado na editora." Antes sequer de conseguir abrir a boca, a minha colega dispara: "NÃO NÃO TEMOS NADA NEM VAMOS TER NEM TAMOS A PLANEAR A TER ESTÁ ESGOTADO E NÃO SAI MAIS!". O homem, deu alguns passos para trás assustado, agradeceu e saiu. A minha colega cruzou os braços e disse: "Aprendeste como é que se lida com eles?". Eu levei as mãos à cabeça e disse: "Tu estás doida? Este homem é um fã do eixo do mal, ele venera o Bin Laden e o 11 de Setembro, tens muita sorte se não tiveres uma bomba no carro." Impenetrável como sempre, a resposta da colega foi: "Quero lá saber." Eu disse que também não queria saber, mas que se depois não conseguisse processar vendas só com um braço ou subir ao escadote sem uma perna que não contasse com a minha ajuda.
Há várias capas de livros que são enigmáticas. Talvez a mais enigmática de todas seja ESTA. Miguel Sousa Tavares, famoso jornalista e escritor responsável pelos best sellers aclamados pela crítica Equador e SUL - Viagens, aparece sentado, ostentando um largo sorriso, no meio de uma estrada, algures em África. O seu olhar está suspenso no horizonte, focando algo que será o motivo do seu sorriso. Durante meses nós olhámos para a capa e pensámos no que estaria fora do enquadramento da fotografia. Alguma explosão? Jovens a fugir de uma manada de bois selvagens? Algum desastre natural? A Manuela Moura Guedes a ser atropelada por um camião de gado? Todos davam as suas razões e já havia até uma aposta relacionada com isso. O que faria o sério, sisudo e carrancudo Miguel Sousa Tavares sorrir? Muitas vezes se pôs a hipótese de ser um sorriso forçado para a capa do livro. Duvido. Tenho-o como uma pessoa íntegra. Rabugenta, mas íntegra. Ontem, olhando para a capa pela mílésima vez, vi a luz. Miguel Sousa Tavares apresenta aquele esgar que se assemelha a um sorriso por uma simples razão: Está sentado em cima de um ouriço. Faz sentido. Ele apresenta um ar como quem diz: "Tirem a foto rápido que já não aguento mais a dor." As melhoras, e esperamos ansiosamente pelo próximo livro.