quinta-feira, setembro 09, 2004

Mortos e Enterrados

Diversas vezes sou confrontado com situações inesperadas e com as quais não sei como reagir. Vejamos os seguintes casos: há um tipo de clientes que se destaca por ser único 99% das vezes que vêm à livraria, os emigrantes de Leste. Seja por quererem dicionários de Croata – Português ou Ucraniano – Português ou seja por quererem livros escolares da 1ª classe para os filhos de 15 anos. Num destes dias, uma senhora de Leste, acompanhada de um filho com cerca de 16 anos e outro ainda bebé, aproximou-se do balcão e com o seu característico sotaque disse: “Olhe, tem livro Homens de Marte, Mulher de Vénus?”. Expliquei à senhora que de momento não tínhamos o livro. Ela ficou um pouco irritada e disse: “Em livraria de Faro havia livro.” Confirmei que efectivamente existia um exemplar em Faro, e expliquei que o facto de a livraria de Farto ter o livro não significava que nós o tivéssemos. Em seguida, pediu-me para ver se existia o livro em mais algum lado. Enquanto estava compenetrado na pesquisa, vejo pelo canto do olho o jovem a apontar para mim com um ar desconfiado. Aproxima-se do ouvido da mãe e, enquanto apontava ostensivamente, exclama: “Olha… Olha… (e diz o meu nome, duas vezes!). “Boa, sabe ler “ pensei eu. Daqui a uns anos já escreve. O problema é que o rapaz disse isso de forma totalmente audível. Então lá estava eu, empenhado como qualquer bom profissional do universo livreiro, a tentar pesquisar e a ouvir o rapaz repetidamente, a 1 metro (!) de mim, a dizer o meu nome e a apontar paro meu identificador. Nada constrangedor. Depois, quando estava a revelar o resultado da minha pesquisa, olhavam-me como se fosse alguma aparição divina.
Já hoje, o primeiro cliente que atendi foi um senhor acompanhado da mulher e do filho. Então, vinha com um desejo insaciável de livros do Gaston. Tudo porque, em Marrocos, aprendeu a falar francês com os livros do Gaston. Imagina-se o domínio extraordinário da língua. Primeiro, queria os livros em português, porque queria a colecção em português. Quando lhe mostro o livro que estava na montra, começa a reclamar, porque segundo ele: “Ah, MAS ISTO É IGUAL AO FRANCÊS! EU CONHEÇO ISTO!”. A perspicácia dele em relação a esta problemática deixou me de pé atrás. Neste momento, vi que estava a lidar com alguém cuja inteligência estava num plano muito superior ao meu. Tinha que agir cuidadosamente. Depois de lhe ter dado o primeiro livro, comecei a procurar mais livros da mesma colecção, pois foi essa a indicação que me deu quando nos encontrávamos junto ao balcão. Quando procurava fanaticamente a colecção, ouço do meu lado esquerdo o senhor a perguntar à sua mulher: “O QUE É QUE O GAJO ESTÁ A FAZER?”. Novamente, o cliente falava de forma perfeitamente audível e perceptível. Fingi que não ouvi, e a mulher também não retorquiu. Ele insistiu: “MAS O QUE É QUE O GAJO ESTÁ A FAZER?”. E depois, acrescentou: “desculpe, o que é que está a fazer?”. A procurar vida em Marte, acho que facilmente se depreende que é o que estou a fazer. E parece que encontrei. Lá lhe expliquei o que estava a fazer, o que deixou o senhor bastante espantado. Em seguida incitou-me a ler a BD de Gaston. Tive que concordar que tinha momentos engraçados. Seguimos para o balcão, para finalizar a transacção. Dei à sua esposa o nosso cartão de cliente, ela aquiesceu em preenche-lo, mas depois lembrou-se que tinha de ir almoçar, porque queria ir para o cinema. Segundo ela, “temos de ir comer, temos temos, senão o miúdo encharca-se em pipocas.” Dei o talão para a senhora assinar, e ela assina toda feliz da vida. Aí, exclama o marido: “O QUÊ?! ENTÃO ASSINASTE O MEU TALÃO DO MEU CARTÂO?!”. Ela sorriu e disse: “FIZ A TUA ASSINATURA, É O HÁBITO!”. Ele franziu as sobrancelhas e não disse mais nada. Antes de abandonarem as instalações, a senhora ainda teve tempo de mostrar por breves segundos o seu novo cartão de cliente, mais um cartão para gastar o dinheiro do seu marido. Ele viu o cartão e exclamou: “AH! MAS ESTAMOS NESTA LOJA?! MAS ISTO AINDA EXISTE?! PENSEI QUE TINHA ACABADO!” É, acabou. O que está ali escrito de termos algumas dezenas de lojas é só para enganar, já estamos mortos e enterrados. Eu próprio (e agora percebo o porquê de certas coisas, agora tudo faz sentido) sou uma assombração, que paira sem vida no limbo dos livreiros. Por quanto tempo?

1 comentário:

Anónimo disse...

71% - Bom