sábado, agosto 28, 2004

Hide and Seek

Talvez seja só de mim. Talvez o problema seja mesmo eu. Mas não consigo de deixar de achar no mínimo estranho que, constantemente, venham pessoa pedir-nos coisas que não constam na nossa loja. Reparem, tudo o que temos à venda está à nossa volta: Livros, algum software, pouco mais. E no entanto, a cena repete-se: "Boa tarde. Era este livro, e um Camel Light, por favor.". O que é que leva alguém, aparente de boa saúde física e intelectual, a chegar ao balcão e atirar uma nota com o maior desprezo e afirmar: "Era um Marlboro."? Eu por vezes, incrédulo, volto-me para trás, na esperança de verificar se puseram tabaco à venda na nossa livraria. Mas não, não há tabaco. Em lado nenhum. Há colegas que até já se riem. De vez em quando clientes perguntam se temos tabaco. Tudo bem, é aceitável. Agora os outros. Diz aqui Livraria, não tabacaria, ou mesmo papelaria. E não há tabaco em lado nenhum. Volto a frisar.
Realmente existem pessoas que deviam pensar bastante antes de falarem. Uma cliente apanha uma inocente chucha caída no soalho. Olha para ela com um ar curioso, quase com a minúcia de um investigador. Vira-se para o balcão e dirige-se para ele. Sempre sem tirar os olhos da chucha. Ao chegar, pergunta: "É sua?". Claro que é minha, deixe me só mudar a fralda e acabar o biberon e já a atendo. E eu estava atrás do balcão. Se a senhora perguntasse a alguém que tivesse uma criança junto dela, era uma boa acção, seria compreensível. O que é que passa pela cabeça desta cliente para poder sequer considerar a possibilidade da chucha ser minha? Provavelmente no pequeno mundo dela tudo faz sentido.
E depois há aqueles clientes que fazem pedidos em sentidos diametralmente opostos um do outro. Um cliente chega à procura de livros de avicultura. Tudo normal. Quando lhe digo que não temos nada, ele exclama: "AH! ESTÃO AQUI!", pegando rapidamente num livro de vinicultura. Expliquei-lhe que aquele livro não era de avicultura. Ele depois de ler a lombada três vez aquiesceu. É o que dá, fala-se em algo relacionado com vinho e fica tudo maluco. Quando se convenceu que não havia mesmo nada, diz: "Pronto, já que não há nada, podia me arranjar alguns livros sobre cadeiras eléctricas?". Esta é nova, pensei eu. O cliente continuou "ah, o meu irmão, ele não sabe bem o que fazer com os pintos, então está a pensar em montar umas cadeiras eléctricas, não sei bem para quê". Para fritar os pintos, para que é que havia de ser? Um belo churrasco. E fez me deslocar até ao balcão, para pesquisar no sistema cadeiras eléctricas. Nada. Absolutamente nada. Até que arranjei coragem para perguntar ao senhor se ele queria livros sobre CHOcadeiras eléctricas. Nem mais. "Ah, eu bem me parecia que era um bocado estranho, mas como foi o meu irmão que pediu.". Tenho que admitir que, por momentos, a ideia de dois irmãos malévolos a fritar pintos em cadeiras eléctricas me passou pela mente. E que belo espectáculo seria.
Já aqui abordei a problemática da saudação. E eis que os clientes não param de arranjar maneiras de me tentar surpreender. Quando pensei que a única maneira de troçarem de mim era responder sempre de maneira diferente à minha saudação trocando a altura do dia, eis que a inovação chegou. Não se pode parar o progresso. Ao meu Boa Tarde, respondiam sempre com Boa Noite ou Bom Dia. Mas eis que agora, sem aviso prévio, encontraram uma nova maneira de gozar. Respondem com a mesma altura do dia, mas com uma nuance: ao meu boa tarde respondem: "BOAS TARDES", ao meu boa noite, respondem: "BOAS NOITES". A criatividade dos clientes não pára de me surpreender. Temo com o que possam inventar a seguir.
Um cliente que merecia o prémio Altruísta 2004, é o cliente que anda demoradamente a escolher um livro, enquanto distrai a cônjuge. Finalmente escolhe um e, sorrateiramente, aproxima-se do balcão, assim como quem não quer a coisa. Quando chega o momento de efectuar o pagamento, alcança um cartão. Quando me entrega, reparo, por acaso, no nome do cartão. Um nome feminino, vamos supor, Maria. Curioso, pensei eu. Primeiro ele age de maneira sub-reptícia, e agora isto. Paga, pede me para embrulhar e para guardar no saco. Em seguida, já de saco em punho dirige-se para a companheira. Surpreende-a com um toque nas costas, e oferece-lhe o saco. Ela abre o saco, rasga o papel e exclama de felicidade: “OH!!! OBRIGADO! ÉS O MELHOR! NÃO TINHAS QUE GASTAR DINHEIRO NISTO! OH, OBRIGADO!”. E responde ele: “De nada Maria, não custa nada”. Claro, com o cartão dela não custa nada. E olha embaraçado para o balcão. Isto sim é um bom parceiro. Oferece prendas à rapariga com o cartão dela. Brilhante.
Falando em sub-reptício, aconteceu uma situação curiosa num dos dias que passou. Um senhor de meia-idade entregou me um livro e pediu que embrulhasse. Parecia bastante apressado. Bom, lá fui eu calmamente buscar o papel e iniciar o moroso e delicado processo de embrulho. Sei que há de chegar o dia em que digo ao cliente: “aqui tem o seu embrulho” e ele responde-me: “desculpe, isso não é um embrulho, é um ornitorringo de Origami”. Sim, tenho assim tanto jeito. Quando pouso o papel na mesa, e vejo o cair, como se de uma folha caída de Outono se tratasse, exclama o senhor: “RAPIDO RAPIDO! ESCONDA O LIVRO, ESCONDA-SE! VÁ BAIXE-SE RAPIDO RAPIDO! VA-LA HOMEM! AH, PORRA, QUE ELA VAI VER!”. O homem estava quase a saltar para trás do balcão, tipo Western, e mergulhar comigo para a mulher não o ver. Ele estava exaltadíssimo, quase a empurrar-me para baixo. Para a próxima já sabe cliente, traga os utensílios de camuflagem e aí já embrulhamos tudo calmamente, sem sobressaltos. Mais um bocado e o senhor tinha um enfarte. E aviso já que eu não lhe fazia respiração boca-a-boca.

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