segunda-feira, agosto 02, 2004

Dia da Família

Isto há coisas que são inexplicáveis. Quando divido o espaço do balcão com um certo colega (vamos chamar lhe apenas de Greenpeace, para preservar a sua identidade, qual super-herói livreiro) a probabilidade de acontecer algo de estranho aumenta consideravelmente. E assim foi este Domingo.
Sensivelmente a meio da tarde, a loja estava repleta de crianças que berravam, corriam, desarrumavam, choravam e chateavam até à morte os seus pais. Até que um casal sai da loja, deixando as suas duas crias lá dentro. Ele, preocupado, pergunta: "Então e os míudos?!" Ela responde sem hesitações: "Os senhores ficam a tomar conta deles, anda!". Bem, não sei bem como reagir a isto. Se por um lado ninguém me paga para tomar conta de crianças, por outro lado temos que ficar honrados pela confiança depositada em nós. Parece me apropriado. Quando alguém que esteja aí a ler queira ir às compras e não tenha onde depositar os rebentos, venha a uma livraria. Se deixar as crianças ainda recebe um desconto. Para quê amas ou infantários quando se tem livrarias?
Um pouco mais tarde, e num momento de calma e sossego, entra um senhor cheio de notas e um maço de papéis na mão, pedindo desde logo uma caneta. O meu colega, prestável como sempre a cumprir o seu dever cívico, acedeu ao seu pedido, dando-lhe uma caneta. O senhor pega na caneta, dá meia volta e sai da loja. Vira à direita, e desaparece no horizonte. Obviamente que a nossa reacção foi olharmos um para o outro e desmancharmo-nos a rir. Mas que idiota é que entra numa livraria, pede uma caneta e vai se embora?! Uma caneta que nem 0.2€ deve custar! O ar natural e descontraído, como se não fosse nada com ele, com que o homem fez tudo isto. Parece-me correcto. A esta hora estará ele com a caneta nalgum orifício recôndito do seu corpo, barrado de manteiga, com as cuecas da avó a ver o Olá Portugal e a entoar músicas da Ana Malhoa. Desafortunada alma.
Depois, já perto do fim tivemos a principal atracção da noite, o verdadeiro artista convidado, estrela principal de uma noite já de si pródiga em vedetas. Entra uma família de emigrantes vindos directamente dos States. As camisolas com imagens de futebol vindas directamente da feira, os fios de ouro e o sotaque característico não enganam. Quando pensámos que já tinha entrado tudo, que já tínhamos visto a nata da sociedade, eis que entra o artista. Vinha desde lá do fundo a assobiar, e a mexer os braços como se tivesse a nadar. A cada braçada o homem ia assobiando. E depois, coordenava as braçadas conforme os seus confiantes passos e com os obstáculos que se deparavam no seu caminho. Desvia se dos alarmes, uma braçada, um assobio, desvia se dos livros da entrada, outro assobio acompanhado de mais uma esforçada braçada. Pensei em dizer: "Oh amigo, Atenas fica para aquele lado. A natação é só daqui a uns dias." E assim vinha rapidamente dirigindo se para nós. O Greenpeace já estava pronto para entrar em acção, com as suas tácticas de dissuasão contra potenciais agressores. Mas, não foi necessário. O homem, chegado ao balcão, pergunta: "TEM O LIVRO QUE AINDA NÃO FOI ESCRITO?!?" Eu e o meu colega desmanchámo-nos novamente a rir, como não podia deixar de ser. Ele diz que não temos o livro, e eu, distraído ainda fui ver no computador. Ao receber uma resposta negativa o senhor exclama: "AHAH NÃO TEM PORQUE AINDA NÃO FOI ESCRITO AHAHAHAHAHH! SECALHAR ESCREVO-O EU AHAHAHAH!" E lá seguiu ele, loja fora, assobiando feliz da vida, e cantando. Depois, o seu filho ou sobrinho pega no livro Euro 2004 Em Imagens e abre na página em que uma jovem croata exibe o peito, e foi uma festarola. Falando num inglês perfeito, lá estavam eles, aos berros, a enaltecer as qualidades peitorais da jovem. Adequado para uma livraria familiar. Depois continuou a bambolear se pelo estabelecimento, proferindo coisas sem qualquer nexo. Até que volta à carga, gritando do outro lado da loja para nós: "OLHE, TEM AÍ A MARGARIDA DOS PINTOS?" Ele estava decidido a deixar uma marca indelével na nossa memória e na loja. E estava a conseguir. Ainda conseguiu chamar mais uns familiares seus, e por breves momentos, com aquela comoção toda, com os berros e todo o barulho, com os sotaques, pensei estar numa qualquer feira no Portugal interior e perdido. Faltava o cheiro a fritos.
Chegada a hora de fechar, já com tudo pronto para irmos embora, porta bem fechada, entra uma senhora com a filha, que, soluçando e balbuciando, queria um livro. Agora qual, ainda hoje, a esta hora, ela não deve saber. Realmente, é incompreensível. Quando fechamos a porta, significa que a loja fechou. Mas não, para outras pessoas, nós só fechamos a porta porque está frio. Porta fechada? Não interessa. Entra-se à mesma. Se está fechada é para abrir, não há que negar a utilidade natural das coisas. Viva o respeito por quem trabalha. 23. 23:05. 23:10. A criança não se decidia. A mãe, visivelmente incomodada, dizia para a criança: "OH FILHA, LEVA O SHAREKA! O SHAREKA É BONITO! ANDA, VAMOS EMBORA!". A criança não se demovia da sua cruzada em demorar horas a escolher um livro. É bom ver a juventude determinada. E nós, ali especados, a ver os minutos a passar lentamente... A mãe insistia: "OH FILHA, A SÉRIO, DESPACHA-TE! LEVA O SHAREKA! OS SENHORES QUEREM IR EMBORA!" Oh minha senhora, porque é que diz isso? Quando a senhora, com todo o respeito, finalmente desamparar a loja, nós não vamos embora. Simplesmente nos penduramos nuns cabides ali atrás e ficamos prontos para ser usados outra vez amanhã. Somos reutilizáveis e amigos do ambiente. Aliás, atrevo me mesmo a comunicar que somos pouco mais que meros joguetes na mão dos clientes. Finalmente, quando já tinha perdido toda a esperança e estava prestes a comunicar à minha mulher que iria ficar por aqui, a senhora pegou no Shrek e pagou. Mas, esperem. Ela primeiro disse que ia pagar com Multibanco. E nós, contámos o dinheiro todo. Duas vezes. Mas não, a senhora pagou com dinheiro. Ou seja, vamos contar tudo outra vez. Acabámos de fechar tudo às 23:26.
Agora, dêem-me licença, se não for muito inconveniente, que o cabide não me permite chegar ao computador para o desligar...

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