domingo, agosto 08, 2004

Terrorismo Literário

Domingo. Chuva. Muita Chuva. Gente. Muita Gente. E, caros leitores, para quê ir a um museu ou teatro quando se pode ir para um shopping cheio, quente e mal frequentado? Cultura? Não, que isso pega-se. Deus nos livre. Enfim, a gerência agradece o maior afluxo de pessoas à loja. E claro, eu também tenho de dar a mão à palmatória: é deveras extenuante o fim-de-semana, mas, as situações fora do comum sucedem a um ritmo impressionante. E, com esta conjuntura, não poderia ser de outra forma.
Ainda estou para perceber a conexão (ou a falta dela) entre as famílias domingueiras e as crianças. A meio da manhã, entra uma senhora bem constituída na loja. E quando digo bem constituída, atenção, estou a referir-me a bem constituída tipo Margarida Martins pré-banda gástrica e não bem constituída tipo Marisa Cruz. Dirige-se calmante, como não poderia deixar de ser, em direcção aos livros de criança. Passado 2 minutos de ter entrado, ou seja, ia a meio caminho dos livros, entra o marido: barrigudo, sandálias com os dedos todos pretos a saírem por fora, com a elegante camisola de alças com os pelos do peito de fora. Obviamente que se começou a queixar da cônjuge ir delapidar património na livraria. Farto da situação, exclama: “VA VAMOS EMBORA, E TRAS O FRANCISCO!”. A senhora olha com um ar extremamente preocupado, respondendo: “Mas, ele estava contigo”. O homem enfureceu-se, e disse com tom raivoso: “PERDESTE-O MIUDO? TU PERDESTE O MIUDO!”. Assustada, a cliente prontificou-se logo a explicar. Disse que ele é que tinha a criança e que esta não queria ir à livraria. “ÈS SEMPRE A MESMA COISA!” disse o homem enquanto saiu apressado da loja. Bom, a senhora, chegado este ponto, baixa a cabeça e sai da loja dizendo para si mesma em voz alta: “A culpa é sempre minha, a culpa é sempre minha, a culpa é sempre minha”. E lá foi ela. Muitos clientes entram na loja, despejando logo as crianças para o seu canto apropriado. Não é de estranhar que por vezes se esqueçam delas. Então ao domingo…
Usualmente encontro sempre algum tipo de explicação, mesmo que não pareça inteiramente lógica, para as situações que vivemos diariamente. Mas, há decididamente casos perdidos. Qual a motivação de um senhor que fica na porta à espera que a esposa pague, e quando esta sai diz lhe: “anda embora que eles são da Al-Qaeda.” Eu disse à minha mulher que não me apetecia ir de turbante, HK-45 ao ombro e barba por fazer para a loja, mas ela insistiu que ficava com um ar distinto. A Al-Qaeda… Nós somos a Al-Qaeda. Eu sempre estranhei o facto do Greenpeace falar árabe de vez em quando, mas pensei que fosse dos anos que passou a inalar os humores da cozinha de uma famosa companhia de fast food. E o colega Poeta também fala muitas vezes do Vizir e do Sheik nos seus ensinamentos para a vida. Agora tudo faz sentido.
Ocorreu também uma série de pedidos estranhos, que fazem com que tenhamos de suster o riso com todas as forças do nosso corpo e mente. “Tem o Macaco Nu?” “Tem o Xangu?” “Tem o gines 2?”, e por aí fora. Tudo de seguida, muitos deles ininteligíveis, para cada pessoa que me virava, recebia um pedido peculiar. E, mal encetava a pesquisa, já estava outra pessoa a fazer um pedido, e a que fez o pedido inicial já estava a indagar se existia o livro. Não são raras as ocasiões em que os clientes fazem o pedido e, depois de eu baixar os olhos para me certificar se temos o livro em stock e vou responder, vão se embora. É delirante falar para o ar. Outras vezes tentam ler o que estamos a pesquisar, pondo se em bicos de pés e depois rodando a cabeça 45º. Já estive tentado a pedir a um cliente, que estava demasiadamente interessado no que estava a escrever, para virar a cabeça 360º. Também tenho direito a entretenimento. E claro, muitas das vezes não acreditam na nossa palavra. Pedem um livro, e quando respondo educadamente que não temos, perguntam “Ah, onde é a secção que eu vou dar uma olhadela?”. Veja lá não lhe caiam os olhos, seria uma chatice para a Dona Branca limpar. Se eu estou atrás de um balcão, se eu tenho um identificador a dizer LIVREIRO, eu é que sei. Ponto final. Duvidam de tudo. Então quando se trata de descontos ou facturas, se for preciso, ficam o dia todo a dissecar a factura letra a letra. Já chegou ao cúmulo de ter de fazer as contas com os descontos e sem os descontos com uma máquina de calcular à frente de uma senhora, e nem assim ela acreditou na minha palavra. Outra situação recorrente é pedirem nos livros de um autor, teimar que ele chama Lowitt quando é Lovet, e duvidar de nós quando afirmamos peremptoriamente que não temos nada desse autor. Depois, temos a tia que quer livro do Maharaji. Nem ela sabia soletrar. Queria meditar dizia ela. Aconselhei-lhe o Dalai Lama. Retorquiu: “Não, esse não. Quero um que esteja vivo.” Não há meditação que a safe, Deus a ajude. Pedem os nomes mais incríveis, e não fazem ideia de como se soletra, nem sequer os pronunciando bem! “Tem livros do Mosgrab? (Musgrave)”. “Tem livros do Birone? (Byron)”. Com o título dos livros passa-se a mesma coisa: "Marafonas e Matrioskas" (Nazarenas e Matrioskas), "A Terra Vista de Avião" (A Terra Vista do Céu) "China em 1421" (1421, O Ano Em Que A China Descobriu o Mundo"), o Barracão (A Caverna, de Saramago), "Evangelho não sei quê da Nossa Senhora" (Evangelho Segundo Jesus Cristo), "Albertina, Valha te Deus (Albertina Que Deus Haja). A lista é interminável.
Não poderia terminar sem referir a senhora que tentou e conseguiu ir mais além na longa e sinuosa avenida do ridículo. Ao pedir me uma obra, expliquei à cliente que estava esgotado e que só poderia encontra-la na loja em Lisboa. E ela pergunta: “NA FNAC DE LISBOA?”. Eu pensei que lá tinha de vir a estupidez habitual, a história da Fnac, ao que respondi: “Não, na nossa loja de Lisboa, não é na FNAC”. E ela, não contente com o que tinha feito até então, e, decididamente apostada numa saída em grande diz: “AH, ENTÃO VEJA ME LÁ SE TEM NA FNAC DE LISBOA!” com um tom indignado, como se eu não quisesse pesquisar para a senhora. Expliquei-lhe que não podia fazer isso. Ela não ficou convencida. Se os terroristas conseguem fazer atentados pela Internet, se há pessoas que tem inclusivamente sexo na Internet, como é que eu não podia verificar a existência de um próprio livro?
Já não vou ser trabalhador do mês…

1 comentário:

Anónimo disse...

ole! caro colega.voltei hoje de ferias, volto amanha p o meu inferno literario. um colega, com quem procurava esclarecimento sobre os eventos ocorridos durante o meu idilio veraneante, falou me deste blog. senhor, parece um universo paralelo. tudo bem que pertencemos a mesma casa... mas serao os clientes sempre os mesmos... a fazerem umas rondas cronometradas de livraria em livraria? twilight zone to say the least. sera o cliente misterio o unico cliente razoavel que posso contar um dia atender?
e... qual e a diferenca entre um centro cultural e um centro comercial? aqui n ha fnac! mas dizer que nos da em stock no chiado ( e eu sei que isto de termos uma livraria no chiado pode confundir um bocado os mais desatentos... desde 1752!) significa "na fnac ha!"
bom valha nos sao hernani das encomendas.
saudacoes literarias... e o departamento de marketing deseja e aconselha: uma continuacao de bom trabalho. e nao se esqueca de sorrir.sorrir muito. sorrir sempre sobretudo! :)