terça-feira, agosto 10, 2004

Novidade, ou talvez não.

Com o imparável passar do tempo vamos conhecendo figuras sui generis que por diversas vezes visitam a nossa loja. Não satisfeitos por espalhar o seu encanto numa única ocasião voltam uma e outra vez, sempre com a esperança de se superarem. São os denominados clientes habituais. E evidentemente que querem, ou melhor exigem, o descontinho. Mas por agora não vou voltar a esse tema, fica guardado para outra oportunidade.
Sendo assim, recebemos hoje a visita de uma cliente habitual. E que cliente. Estava eu ocupado com um cliente enquanto colava etiquetas, quando ouço uma voz ao fundo da loja. Em tom bastante alto e, direi mesmo, quase agressivo diz a senhora: “ONDE É QUE ESTÂO AS NOVIDADES?”. Pensei logo para mim: “Aí está, ainda agora cheguei, já estou a receber a má educação do costume, nem olá nem bom dia, nada. Bonito.” Quando desvio o meu olhar para o canto longínquo da loja, de onde veio som, vejo uma cliente que reconheço com alguma facilidade. Mas, qual o meu espanto quando verifico de imediato que a cliente está de costas para o balcão e agarrada à prateleira mais alta. Por momentos, duvidei seriamente da minha sanidade mental. Porem, fiquei rapidamente descansado. A senhora, sem se virar ou largar a prateleira do topo, volta a bradar: “ENTÂO, ONDE ESTÂO AS NOVIDADES? NÃO CHEGOU NADA HOJE?”. Fiquei atónito. Já vi muita coisa nesta vida, mas nunca uma senhora a interrogar uma prateleira, querendo saber onde estão as novidades. Pelo ar da prateleira posso assegurar que ela estava bastante intimidada. E não era para menos. Por breves instantes fiquei a contemplar a senhora, esperando que ela tivesse um pingo de lucidez e me fizesse a pergunta directamente. Claro, isso são só os seres racionais que fazem. Eu sei, e perdoem-me a incorrecção, mas era isso que eu esperava. E, para espanto dos presentes, a senhora voltou-se. Mas, desta vez, ainda mais enraivecida. Clamava pelas novidades como se não houvesse amanhã. “ONDE ESTÃO AS NOVIDADES? NÃO CHEGAM LIVROS HOJE? QUANDO É QUE CHEGAM?!”. Eu, amavelmente, expliquei à senhora que as novidades se encontravam junto à entrada, e que no presente dia, até à presente hora, ainda não tinham chegado qualquer tipo de novidades. Obviamente que não ficou satisfeita com a minha resposta, perguntando novamente: “ENTÃO MAS NÃO SABE QUANDO CHEGAM?!”. Retorqui educadamente, explicando-lhe pausadamente que íamos receber livros durante todo o dia, e toda a semana. E, perguntei-lhe se procurava algo em particular. Resposta: “NÃO. QUERO AS NOVIDADES! NÃO TEM É?”. E saiu porta fora. Passado uns minutos, a calma reinava na loja. Uma calma enganadora… Ao efectuar um embrulho entra novamente a senhora na loja. Ao ouvir a voz inconfundível pensei: “A quem é que vou impingir esta personagem?” Olhei em meu redor. Estava sozinho. Ainda pensei em fingir deixar cair alguma coisa e esconder-me atrás do balcão. Mas, já não tinha tempo. Ao chegar junto ao balcão, exclama furiosa: “O SENHOR NÃO ME EXPLICOU QUE ESTA ALTURA DO ANO É MUITO FRACA EM NOVIDADES! OS EDITORES VÂO DE FÉRIAS!”. E saiu. Curta e eficaz. É inaceitável que alguém que trabalhe há 2 meses e meio numa livraria não saiba já tudo. Editores de férias? Informação crucial, vital. Não saber isso é a mesma coisa que não saber quanto calçava Eça de Queirós. E não informar a cliente disso? Falta de rectidão profissional.
Pensei que já a tinha visto pela derradeira vez. Mas não. Para quê ir a mais sítios quando se pode ir chatear o pobre e solitário livreiro? Ele não tem nada para fazer, nem sequer ninguém para aturar. Melhor só mesmo se tivéssemos um alvo na cara e dessem dardos aos clientes. Desta vez, estava a loja desprovida de clientes. Aproxima-se do balcão e com um ar tranquilo, como se nunca tivesse entrado naquela loja, pergunta: “Onde está o Messias?”. A última vez que o vi estava na cruz, acho que não ia a lado nenhum. O que é que eu respondo numa situação destas? Nessa altura lembrei-me do primeiro encontro que tive com esta cliente. Fez me dezenas de perguntas sobre o Código Da Vinci, o Código Da Vinci Descodificado, O Sangue de Cristo e o Santo Graal e o Segredo dos Templários. E fica desde já aqui o aviso, numa nota à parte: se me voltam a perguntar qual a diferença entre o Código Da Vinci e o Código Da Vinci Descodificado eu despeço-me logo ali. Todos os dias. Todos os dias alguém pergunta qual a diferença. E todos os dias alguém não percebe a diferença, e pergunta novamente. E eu explico. E apesar de responderem afirmativamente, continuam a não perceber. Enfim. Continuando, a senhora nessa primeira ocasião não se cansou de falar na Opus Dei. Avisou-me para não me aproximar dessa associação secreta. Eles eram maus. E que se eu não fosse “rico, filho de ministro ou do Pintassilgo” (palavras da senhora) eles não me queriam lá. Apesar de frisar diversas vezes que poderia ficar descansada que eu não iria lá, a senhora insistia nos avisos. “Não vá lá. È no Estoril (e dizia me a localização precisa). Não vá lá!”. Logo aqui comecei a descobrir o potencial da cliente. Depois, teve a aconselhar-me livros. Todos eles rodavam à volta de judeus, do Judaísmo, ou até do Holocausto. Acho que se ela tivesse visto o Mein Kampf na loja teria tido um enfarte. Ou isso ou o funcionário é que iria pagar, como sempre acontece. Pelo que os meus colegas me confidenciaram esta senhora já teve bastantes situações desagradáveis com eles. Não é de estranhar. Embrenhado nos meus pensamentos, distanciei-me um pouco da realidade. Mas, sou abruptamente desperto por um novo grito do outro lado da loja: “OH FAZ FAVOR, ONDE É EU QUE EU POSSO SUBIR LÁ ACIMA? TIREI O LIVRO MAS NÃO CONSIGO POR! NÃO HÁ BANCO NÃO HÁ NADA?”. O meu primeiro pensamento foi chamar um colega para pegar a senhora às cavalitas. Obviamente que tive pena, e pedi à senhora que deixasse o livro lá perto que eu já o arrumava. Finalmente decidiu o que queria levar. Um livro sobre o Judaísmo. E partiu…
Graças a Deus. Ou ao Messias. Onde quer que ele esteja.

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