sábado, agosto 21, 2004

Yin Yang

A vida é feita de contrastes. E como tal, os clientes não fogem à regra. Para cada cliente existe sempre o seu inverso, o seu gémeo maligno. Para cada Mr Hide um Mr. Jekkyl. No fim do dia, fica a sensação de equilíbrio natural. Este é um facto que vamos constatando e comprovando dia após dia, cliente após cliente.
Numa das noites que passou, fizemos o nosso habitual ritual de fecho de loja. Eu sei que pode ser uma desilusão, mas este não envolve sangue de qualquer tipo nem cânticos em latim. Depois de encostarmos as portas da loja, para indicar que já estávamos fechados, estávamos a fazer as contas da caixa. Já passava bem das 23. Como já é costume, alguém abriu a porta. Já estamos habituados. Levanto os olhos lentamente da caixa e dirijo-os calmamente até ver a porta. Aí vejo a cabeça de uma mulher com um ar irritante, demasiado irritante. Ao ver que tinha a nossa atenção pergunta: “Estão fechados?”. Nós nem pensámos no que responder. Respondemos afirmativamente, como não podia deixar de ser. Já passava das 2310, já estávamos prontos para ir. Ao ouvir a nossa resposta, a mulher sai disparada para fora da loja, deixando num ar um simpático e correcto “TAO FECHADOS?! ENTÃO FECHEM OLHA!”. O cliente tem sempre razão. Parece me óbvio que duas portas fechadas, mesmo não estando trancadas, umas luzes apagadas, não signifiquem que a loja está fechada. Como é que alguém poderia sequer pensar isso? Eu bem disse que era melhor termos colocado os cadeados, correntes, termos ligado o alarme e colocado a linha amarela DO NOT CROSS. Assim é que está fechado. Portas fechadas? Luz apagada? Só mesmo alguém com um conhecimento avançado sobre estabelecimentos comerciais é que poderia descodificar estes sinais como significando que a loja está fechada. Aproveito para assinalar que existem muitos clientes que nem sequer perguntam nada, entram e começam a ver livros, apesar de estar fechado. E normalmente, demoram sempre muito. É uma situação embaraçosa, porque o cliente muitas vezes olha para nós parecendo pensar: “Estão com pressa? Querem ir embora? Ai sim? Então vão ver… Onde é que está o livro do Cláudio Ramos? …”. E nós, não podendo fazer nada, ficamos a olhar para o cliente, com um sorriso forçado… Por vezes olho para o PHAIDON ATLAS OF CONTEMPORARY ARCHITECTURE e penso como seria libertador ver aquele livro de 150€ e muitos quilos descer suavemente sobre a cabeça oca de alguns clientes. Enfim, há que ter respeito. Pelo livro claro, porque são 150€ e é uma obra com qualidade. E depois, temos o oposto desta situação. Hoje, chegada a hora de abrir a loja, segui o procedimento habitual, que termina na abertura das portas. Está tudo pronto, tudo no sítio, luzes ligada. Só falta abrir a porta. Encaminho-me para lá, olhando discretamente os clientes que se vão aproximando da montra. Abro a porta… A loja está oficialmente aberta. Ou assim pensava eu. Volto para o balcão e lá fico, qual espantalho (e olhem que espantalho é um termo bem apropriado, depois explico), à espera que algo aconteça. E chega o primeiro cliente do dia. Mas, ao invés de entrar, fica parado na porta. Olha para a loja. Olha novamente. E aí pergunta: “ESTÂO ABERTOS?”. Já passava da hora de abertura, estão a luzes acesas e a porta aberta. O que o leva este ser perturbado a pensar que poderíamos estar abertos? Mas, atenção. Tenham medo. Muito medo. Não foi o único. Logo a seguir, aparece outro, exactamente com a mesma dúvida. Chamem me paranóico, mas cheira me a conspiração.
Os contrastes continuam ao longo do dia. Já abordei aqui a problemática do acto de pedir livros. Os clientes, como disse em ocasiões anteriores, raramente sabem o que querem. Nem autor, nem editora, e muitas vezes nem título. Às vezes só uma cor. Mas isso fica para mais tarde. Muitas vezes nem isso, só a frase: “não sei o que quero nem de quem é, nem sei bem o que é.”. Esteve aqui neste singelo espaço uma senhora, de cigarro em riste, que desejava um livro. E o que é que ela sabia do livro? Algo que torna muito fácil a sua pesquisa: sabia que tinha um poema que começava com “QUANDO MORRER QUERO PASSAR AS MÃOS PELO TEU PEITO”. E, pelo aspecto da coisa, o peito que se prepare, porque não deve faltar muito. Aqueles cigarros, um atrás do outro, não são um bom auguro. Até tive que trazer um cinzeiro para a senhora. A fumar na loja, até alguns clientes estavam incomodados. E sabem com são os clientes. Se está frio é uma vergonha porque o ar condicionado está muito forte e faz mal. Se está calor é vergonhoso como é que uma loja não tem os equipamentos em condições. Então com fumo, já imagina... Voltando à cliente, uma colega disse-me que suspeita que a senhora tenha alguma relação com o outro lado, com o oculto. Segundo a colega, ela pressente coisas… E até pode agoirar. Por falar nisso, está a dar-me uma dor no peito. E, como se esperava, a busca foi infrutífera. É como querer um filme só sabendo uma das falas. Pelo menos não se queixou (muito). Fosse outro cliente e haveria barraca. Fez a funcionária abrir os livros todos de Eugénio de Andrade, e apelidou carinhosamente a Florbela Espanca de parva. E a sorte da colega é que a senhora não comprou nada, senão tinha que lhe carregar os livros até à vassoura. Depois, temos o oposto. . Enquanto atendia uma cliente, entra um jovem alourado, com um ar de quem passou as últimas horas prostrado ao sol. Vinha com um andar tresloucado, e um ar levemente alucinado. Cambaleou lestamente para o balcão e apontou o indicador para mim e disse: “OH DESCULPE FAZ FAVOR”. Não sei se ele reparou ou não que estava ocupado, mas isso pouco interessa. Pelo menos para ele. Quando terminei, dirigi-me ao jovem. Depois de tudo o que passei, já espero tudo. Mas nada me podia preparar para isto. Pergunta o jovem: “COMO É QUE SE CHAMA O LIVRO O MEU PIPI? ERHN, AH, ER, COMO SE CHAMA? NÃO, QUANTO CUSTA? QUER DIZER, TEM?”. Eu fiquei sem palavras, não sabia bem a que parte responder. Um curto e eficaz: “pode repetir?” foi o que consegui dizer. Já passei por muitas situações estranhas. Talvez demasiadas. Mas nada como isto. Clientes que não sabem nada? Normal. Agora um cliente que me pergunta o nome do livro e ao mesmo tempo me dá a resposta, nunca antes visto. Elucidei o rapaz, dizendo lhe que não tínhamos esse livro à bastante tempo. E lá saiu ele, tresloucado como entrou.
E temos o caso das tias. E há tias de extremos. Temos aquelas tipo tia repenicada e finíssima, que nem sequer olha para nós, atira o dinheiro ou o American Express para cima do balcão enquanto ajeita o cabelo. Sempre socialmente correcta. Um destes casos é o da tia já famosa aqui no estabelecimento, pelas suas várias visitas. Da ultima vez que cá veio, queria guias de conversação, então levou de alemão e inglês. Ao sair, o alarme tocou. Ficou nervosíssima: “Ai que vergonha, que horror, odeio isto, não tenho nada, tire lá isso!”. Foi verificar os livros, nenhum tinha alarme. Expliquei isso à senhora, mas ela, não contente, saiu da loja sem os livros, pedindo que fosse eu a levar lhe os livros lá for, para provar que não tinha roubado nada. Sem mais opções, acedi ao seu pedido. Quando pensei que nos tínhamos visto livres dela, eis que ela volta furiosa. Então, segundo ela, os guias de conversação estavam errados. Eram as línguas erradas, não queria alemão-português, mas sim português-alemão. E claro, de quem é a culpa? Minha. Quando a senhora pediu os livros, eu indiquei-lhe as várias colecções, e foi ela mesmo que escolhe e os tirou. Eu apenas assisti. Mas a culpa é minha, que ninguém duvide! Depois, ao fazer a troca verifiquei que um dos livros era mais caro. A senhora ia explodindo, e ainda por cima, veja bem, “TOU COM UMA ENXAQUÊCA HO-RRO-RO-SA! TOU MESMO MAL, AI! E É SEMPRE A MESMA COISA, ODEIO VIR AQUI ODEIO ESTA LOJA! E VEJA LÁ SE ISTO NÂO TOCA DESTA VEZ!” Amorosa não era? Só o tom da sua voz seria suficiente para mais um post, agora juntem as parvoíces que ela diz, é o jackpot. Como oposto, temos as tias liberais. Ainda há poucos dias tivemos uma, que levou o PHAIDON ATLAS OF CONTEMPORARY ARCHITECTURE. Quando se aproximou notámos um leve aroma a alcoól, mas pensámos que pudesse ser um acaso. Mas não era. O discurso da senhora era impar: “MAS QUE LIVRO, ISTO É UM VERDADEIRO POCKET BOOK” dizia ela lentamente, enquanto enrolava a língua, qual Presidente da Junta, “A MINHA FILHA ATÉ COXEIA COM ISTO…” E lá pagou e saiu, cambaleante. Ao passar pela porta, o alarme tocou. Lá voltou ela “ELÁ QUE É ISTO? QUE SE PASSOU? ISTO TOCOU FOI?” E nós explicámos e pedimos desculpa pelo sucedido. Mas não encontrávamos o alarme. A minha colega perguntou educadamente se a senhora ia a mais algum lado, porque seria provável que o alarme voltasse a tocar. A senhora respondeu: “REALMENTE JÁ VIU? SERIA UMA CHATICE, EU IR A UMA LOJA, E ESTA MERDA COMEÇAR A TOCAR…” E depois despediu-se simpaticamente e educadamente e lá foi ela, feliz da vida.
Portanto já podem ver. Por cada cliente simpático e atencioso, aparece exactamente o oposto. Sempre que atendo uma velhinha simpática, tremo de medo com a visão do que poderá aí vir. Protejam-me!

Sem comentários: