sexta-feira, agosto 20, 2004

A reclamação

Nós, os livreiros, sendo pessoas que lidamos diariamente com o público em geral é perfeitamente natural que, mais cedo ou mais tarde, sejamos confrontados com uma reclamação. Como se pode constatar nos meus posts anteriores, os clientes são sempre educadíssimos, cultos, bem formados e informados, o que nos leva a uma simples conclusão: se algo corre mal a culpa é inevitavelmente do funcionário. E claro, se temos o azar de apanhar pela frente um cliente no seu período menstrual cerebral, vamos ter problemas. Deve ser bastante libertador e terapêutico despejar as frustrações mundanas num pobre livreiro. A sua mulher bate-lhe? É gozado no emprego? Não está contente com a sua performance sexual? Não se preocupe, vá à livraria e desanque o livreiro, verá que se sente melhor. Para quê gastar dinheiro em psicólogos e psiquiatras, em ciências ocultas? Descarregue no livreiro, ele é indefeso, ganha mal e não tem poder político. É como o AMUKINA, faz todo o sentido.
Certa tarde solarenga de Verão um cliente entra na livraria com o propósito de adquirir dois livros. Obviamente que nenhum dos dois estava disponível, como não podia deixar de ser. Pergunta a um colega, que desde logo inicia a pesquisa no computador. Uma pesquisa demorada. Demasiado demorada para o tempo cronometrado do cliente. Ao verificar que não dispúnhamos de qualquer exemplar, sugeriu ao senhor que encomendasse os livros em questão. Então, outro colega encarrega-se de ligar para as livrarias para confirmar a existência dos livros. Um processo igualmente moroso, novamente do desagrado do estimado cliente. Depois de confimarem a existência dos livros e quando iam prosseguir com o procedimento habitual em caso de encomenda, verificaram que o senhor não estava satisfeito e queria que os livros, que vinham de sítios diferentes, fossem entregues numa outra livraria. Portanto, vamos resumir: Pede na livraria 1 livros que vem da livraria 2 e 3 para serem entregues na livraria 4. Simples não é? Não. Educadamente, explicaram ao senhor que, pelas mais variadas razões, não era prudente fazer a encomenda desta forma. Seria, sem dúvida, mais simples se o cliente pedisse os livros na livraria onde queria que eles fossem entregues. Isto porque, nas palavras do sábio livreiro mestre, "entre prestar um mau serviço ou não prestar o serviço, mais vale não prestar o serviço". O senhor ficou aparentemente convencido.
Mas, eis que, para surpresa geral aparece uns dias depois uma reclamação desse prezado cliente. Nesta verdadeira obra-prima das reclamações, qual Saramago birrento, o senhor queixava-se de tudo. Só o ar condicionado e o brilhante soalho é que saíram incólumes desta carta de acusação. Vamos por partes: Primeiro, começa por explicar que existem várias razões objectivas nas quais o preço e qualidade da oferta o levariam a preferir a concorrência, apelidando carinhosamente o nosso serviço de manifestamente mau. O senhor queixava-se do tempo que o funcionário demorou a fazer a pesquisa, apelidando a mesmo de penosa. Como sabem, a velocidade de uma ligação Internet ou mesmo intranet está dependente dos empregados. São os empregados que determinam a velocidade da ligação dando à manivela. Como o tempo foi muito demorado, conclui-se facilmente que o responsável é o empregado. Realmente é inadmissível que ele tenha dado tão devagar à manivela. A sua formação a nível físico é indubitavelmente precária, algo incompreensível numa livraria. Em seguida, recalcitrou sobre o facto de o telefonema para as outras lojas ter sido longo. Temos que admitir que o senhor tem toda a razão. È do conhecimento geral que as outras lojas não tem clientes para atender, nem livros para arrumar. Estão o dia todo sentados junto ao telefone, quais adolescentes excitadas esperando o telefonema do dia seguinte, à espera de uma chamada nossa para encomendarmos os livros. Logo, se demora mais que 15 segundos, estamos a prestar um serviço péssimo. Há que protestar. Depois prosseguiu a sua delirante cavalgada literária pela planície das reclamações, apontando o facto de lhe te sido dito que era inexequível o tipo de encomenda que pretendia. Claro que retratou tudo quanto se passou, não distorceu discursos nem sentidos. O cliente retratou ipsis verbis a conversa. Aliás, citava mesmo a conversa, com a precisão de um relógio suíço, Só faltou dizer que os livros eram levados por elefantes voadores. Terminou esta parte dizendo que estava habituado aos frequentes erros da base de dados. Nós também. Chegamos aqui ao cerne da questão: porque é que os clientes deturpam por vezes a verdade? Com que proveito? Esta reclamação atingia alguém que não merece de forma alguma o que foi escrito, e sobretudo como foi escrito. Mas, felizmente e como já se sabia, a pessoa visada numa parte da reclamação é bastante superior a tudo isto e a sua resposta foi eficaz e tremendamente esclarecedora. Eu votava nele para Presidente da Republica. Onde é que ponho a cruz?
Continuando na reclamação, o senhor lá disse que os 150€ mensais que gastava em livros iriam ser, muito provavelmente, desviados para a concorrência. Realmente seria uma pena. Os funcionários em geral não fugiram às criticas mordazes, insinuando o senhor que nós não percebemos nada disto. Não satisfeito com o atendimento, ficou com algumas dúvidas quanto à sua encomenda. E então decidiu ser ele a ligar para as livrarias a saber da disponibilidade dos livros. Como sempre, encontrou facilmente motivos para se queixar. Primeiro, a pessoa que atendeu não sabia de livros nenhum, aliás, dificilmente se percebia que trabalhava numa livraria. E mais, falava de forma totalmente imperceptível. Aí o cliente não teve outra opção senão pedir que a pessoa passasse o telefone a alguém para que pudesse compreender e ser compreendido. Ele só queria afecto, não há que censurá-lo. Para terminar, não posso deixar de referir uma sugestão do cliente. Como, segundo ele, os funcionários não tem o conhecimento mínimo exigido numa livraria, e muitas vezes os clientes necessitam de luzes para os guiar no árduo caminho da literatura, há que inovar. Então a proposta do senhor era a seguinte: os livros teriam etiquetas com uma opinião dos funcionários que já leram o livro. Portanto, eu passaria de livreiro a leitor. Como nós não fazemos nada o dia todo, de acordo com o senhor, pelo menos íamos lendo e escrevendo a nossa opinião sobre os livros. Ora isto traria um grande problema. Como sabem, um livro torna-se algo muito pessoal, muitas vezes intransmissível. A minha opinião sobre um livro dificilmente será igual à de outra pessoa. Muito provavelmente não poderíamos ser totalmente sinceros, porque existem aqui livros que são indescritíveis. Não me peçam para opinar sobre o livro do Pauleta. Não que esteja mal escrito. Mas é do Pauleta.
Termina a sua epopeia referindo que desconhece os hábitos literários dos funcionários, ou se as escolha de empregados que possuam esses hábitos são vectores estratégicos de desenvolvimento. Mais uma vez, o senhor mostrou um total domínio da realidade. Na entrevista de emprego perguntaram-me de imediato se sabia a quantos graus deve ser servido vinho verde de 1985, quantas luas tem Júpiter, onde é que se encontra o fluido dos travões de um carro, ou ainda quantos bits são um byte. Livros? Para quê? Nós não trabalhamos com livros, logo um conhecimento sobre livros não interessa. Além disso, como não passamos 8 horas dentro da livraria, é normal que mesmo que não saibamos nada, nunca aprendamos nada. Tenho que confessar que passo a maior parte do tempo de olhos bem fechados que é para me precaver, não vá eu acidentalmente decorar o título de um ou dois livros, seria uma vergonha. Que faria o cliente se eu soubesse o que ele queria? Se mostrasse um pouco de cultura? A vida seria tão enfadonha. Como diz o nosso mestre, grande parte das pessoas pensam que nós temos a 3ª classe mal tirada e à noite, tal a forma como nos tratam. Aposto que há alguns clientes que ficam surpreendidos quando verificam que sabemos ler.
E finda, recomendando alguns títulos que comercializamos nas áreas do atendimento, prestação de serviço, competitividade organizacional. Isto sim é um cliente. Recomenda-nos livros a nós. Somos mesmo pequenos, quando é o cliente que nos recomenda livros. Enfim, resta subjugarmo-nos à magnificência e sapiência deste ser que nos deu a honra da sua visita.
Volte sempre, e um bem-haja!

4 comentários:

NR disse...

ah, o cliente tem (mesmo) sempre razão!
;)

Anónimo disse...

"Você consegue muito mais com uma palavra amável e um revólver do que apenas com uma palavra amável."
Al Capone (RG)

Anónimo disse...

como faço para cancelar minha conta com o livreiro?
não quero meu nome vinculado ao mesmo, mas o site falho nao apresenta nenhuma ferramenta para excluir!

Anónimo disse...

também quero excluir minha conta, como faço?