sábado, agosto 14, 2004

Os avós são nossos amigos!

Após um pequeno hiato na vida de livreiro, cá estou eu novamente ao vosso dispor. E que melhor maneira de assinalar o meu regresso do que dedicar este humilde post à terceira idade? Os avós são nossos amigos. E dão uns clientes únicos e inigualáveis.
Os idosos e a religião. Eu sei que é um cliché, mas asseguro-vos que é verdade. Uma boa fatia de idosos que frequenta este estabelecimento procura livros de alguma forma relacionados com religião. Senão vejamos os seguintes casos:
Certo dia, surge uma idosa com uma demanda curiosa: arranjar um missal para o neto, que ia para Barcelona estudar, inserido no sobejamente conhecido e virtuoso programa Erasmus. Parece me óbvio que o objecto que o jovem mais necessitaria seria de um puro missal, tão necessário para o sucesso do jovem em terras catalãs. Chegada ao balcão a senhora pede, educadamente (há que elogiar sobremaneira a boa educação dos idosos em geral. Atenção, falo em geral, porque existem casos particulares, igualmente maus ou piores que o resto dos clientes) um missal em espanhol, explicando-me em seguida o caso do seu neto. Primeiro, comecei por elucidar a senhora dizendo-lhe que se o neto ia para a Catalunha o melhor era arranjar um missal em catalão e não em castelhano. A senhora não ficou muito contente, pedindo-me novamente para verificar se tinha alguma coisa. Após nova consulta no sistema, digo novamente que não temos qualquer missal em catalão. Nitidamente incomodada com as sucessivas respostas negativas, pede que lhe indique o local onde se encontram os missais, ou nas suas palavras: “A ESTANTE DOS MISSAIS”. Qualquer pessoa sabe perfeitamente que qualquer livraria tem estantes de economia, literatura, arte, e MISSAIS. É do conhecimento geral. Ao indicar-lhe o local, lá seguiu ela decidida a encontrar o missal perdido. Sem qualquer surpresa, a sua busca foi em vão. Voltou furiosa para junto do balcão, mas, como se exige a uma senhora, manteve a sua postura. Chamou-me novamente e disse: “Realmente não tem nada.” Jura… “O senhor sabe onde posso arranjar?”. Mais uma vez, o dever cívico chama-me. Mais que meros livreiros, nós, que partilhamos este espaço, somos verdadeiros bombeiros do conhecimento, sempre prontos a apagar os fogos da ignorância das pessoas. Claro que há uns que estão tão queimados que não há salvação. Tentei explicar à senhora onde poderia arranjar o seu missal. Não ficou minimamente satisfeita, o que não me espantou. É então que faz a million dollar question: “PODIA ME DAR O TELEFONE DA OPUS DEI POR FAVOR?”. Claro senhora, deixe me só tirar o cilício e o hábito e vou já ali dentro buscar o meu telemóvel que já lhe dou. Às vezes parece que diz PÁGINAS AMARELAS na porta.
Também encontramos idosos com uma certa aversão à leitura. Entra uma criança a correr pela loja, com uma idosa mostrando sérias dificuldades em acompanhá-la. Excitadíssima, a criança exclama: AVÓ QUERO UM LIVRO! e rodopia pela loja. A resposta surgiu prontamente: "LIVROS? NÂO QUERO ESSAS PORCARIAS EM MINHA CASA!" Viva a cultura.
Muitas vezes fala-se na generation gap. Por vezes encontro pessoas que não estão separadas de nós, comum mortais, por gerações. Não. O tempo mental que nos separa é tão grande que tem de ser medido em séculos. Numa noite particularmente calma entra um duo dinâmico: a senhora idosa com voz fina e que ouve mal e a sua acompanhante, uma senhora máscula, bastante mais nova mas assim já a atirar para o idoso, com voz viril. Primeiro, a idosa pede me um livro para o seu neto, que ia fazer a primeira comunhão. Levei-a à zona dos livros infantis e juvenis, de modo a satisfazer a sua necessidade literária. Depois de me indicar a idade da criança, indiquei-lhe uns livros para crianças, que contam histórias sobre acontecimentos passados, com uma grande vertente didáctica. A senhora não ouviu a minha resposta, dizendo para a amiga com voz esganiçada: “NÂO OUVI NADA, NÂO PERCEBO”. A amiga, com a sua voz de tenor retorquiu: “SÂO ROMANCES.”. Resposta da idosa: “Eu não quero romances, essas perversidades, essas porcarias, não quero poluir a criança.”. A conversa decorria assim, com três intervenientes, de modo desordenado e caótico. Procurei elucidar a senhora, tentei fazê-la ver que aqueles livros eram ao mesmo tempo úteis e divertidos a o seu neto. A amiga voltou a traduzir o que eu disse. Mas ela não se demovia. “São perversidades, obscenidades! Quero um livro com moral, religioso, com uma lição de vida moral!”- Pensei em dar-lhe um livro intitulado AS MENTIRAS DA IGREJA CATÓLICA, mas o mais provável era ficar logo ali prostrada no chão.
Outro caso semelhante é o da tia idosa que quer um livro de uma autora portuguesa, que não sabe quem é, que tem um título, que ela não sabe bem qual é, mas que tem a ver com desordem. Segundo as palavras dela “ai, o livro, tem assim um título maluco, qualquer coisa da desordem, que horror.” Depois de descobrir o livro que a senhora desejava, e de lhe indicar que o título era VIVA A DESORDEM, entrou em histeria: “VIVA A DESORDEM? Ai, que louca, que parvoíce, que loucura, então esta autora não pode estar de todo boa da cabeça!” É, a autora é uma anarquista com o corpo todo tatuado que assalta velinhas e vive numa casa ocupada com dois cães, escreveu o livro com o seu próprio sangue em honra de Satanás…. “Já me viu isto? Desordem, o mundo está perdido!”. Nem sabe o quanto…

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