quinta-feira, agosto 19, 2004

Malucos do Riso

Como devem saber, (a não ser que tenham vivido soterrados nalgum dos prédios devolutos em Lisboa durante os últimos meses) o Código Da Vinci tem sido o livro mais vendido dos últimos tempos, praticamente em todo o mundo. Tem mesmo sido um fenómeno de vendas, o que é bastante compreensível tendo em conta a qualidade e a polémica que envolve o livro. Logo, torna-se óbvio que o livro é uma presença mais que necessária em qualquer livraria. Este livro é sinónimo de dinheiro. Muito dinheiro. Podemos encontrar o livro nos mais variados sítios: na montra, na entrada, nas novidades, debaixo da mesa, em frente ao balcão em dois bonitos montes a iniciar uma espiral, com quase 1 metro de altura. Ainda assim, aparecem clientes na loja à procura do livro como se procurassem o significado da existência humana. Entram na loja, e olham à volta várias vezes, olham para as prateleiras e nada. Sem sucesso na sua demanda, dirigem-se ao balcão. Ao chegarem, perguntam "Tem o Código Da Vinci?" com um ar comprometido, como se tivessem à procura de algo secreto e que dificilmente seria encontrado. Claro, há sempre aqueles clientes que ignoram por completo a existência das estantes ou das montras e dirigem-se logo a nós. Existem também clientes que à frase "Tem o Código Da Vinci?" acrescentam coisas como: "Conhece?", "Já ouviu falar, por acaso?" ou ainda "Sei que pode parecer estranho, mas tem este livro?" e claro o já clássico "Não tem o Código Da Vinci pois não?". Outros clientes presumem correctamente que temos o livro, por isso passam logo para a pergunta sobre a sua localização: "Onde é que está o Código Da Vinci?". É uma pergunta legítima. Ou seria, se não estivessem a menos de 10cm de duas pilhas de livros com mais de 50cm de altura. E é neste momento, nesta fracção de segundos, que tudo acontece. Entramos na zona onde o tempo curva e as propriedades pelas quais nos regemos no dia-a-dia deixam de contar. Quem é que foi a pessoa dotada de um Q.I. altíssimo, digno apenas dos predestinados, que inventou uma frase tão usada pelos clientes e, pior, quem é que foi o génio transcendente que achou que tinha piada? Ao confrontar o cliente com o facto inverosímil de que tem cerca de 100 cópias do livro que procura a menos de 10cm de si, este, diversas, demasiadas vezes para ser coincidência, responde o seguinte: "AH POIS ESTÁ! SE FOSSE BICHO MORDIA! AHAHAHAHAHAH!" E riem, riem como loucos. Dizem a piada, e riem. Sozinhos, obviamente, porque eu fico sempre consternado quando esta situação acontece. Mas, há mais. Infelizmente há mais. Vendem-se por vezes 20 Código Da Vinci por dia. E imaginem ouvirem isto várias vezes por dia, sempre acompanhado do riso insuportável. E, como não podia deixar de ser, muitos clientes adquirem o livro tendo em vista oferecê-lo. Até aqui tudo bem, é um bom livro, não fosse o facto de haver sempre alguém que teve a mesmíssima ideia. Isto origina um número considerável de trocas. Quando solicitamos o talão para efectuar a troca as pessoas por vezes têm reacções tremendamente descabidas, chegando mesmo em casos extremos a ficarem visivelmente irritados com o pedido. Não entendo. Se não quisessem que a pessoa que recebe a prenda não soubesse o valor, não dessem presentes iguais. Além disso, quando há uma troca, a pessoa tem obrigatoriamente que saber o valor que pode utilizar nessa mesma troca. Voltando às prendas, quando me entregam o livro pergunto se é para oferta. Aqui aplica-se a lei de Murphy número 3 para os livreiros: A probabilidade de o livro ser para oferta é inversamente proporcional à nossa vontade de perguntar. Ou seja, se não perguntarmos é SEMPRE para oferta. Quando perguntamos, temos de lidar com os génios da comédia. E dizem os analistas que Portugal é um país triste a caminhar para a depressão. Quanto muito, e não sou nenhum analista (Graças a Deus, que a minha mãe tinha um desgosto), somos um país com a doença Bi-polar. Assim, quando cumpro o meu dever e pergunto se é para oferta, apagam-se as luzes, ficando apenas um ténue foco em cima do cliente. É a luz da ribalta. Aí, ele tem alguns segundos para brilhar. E tenta: "É para oferta é (pausa uns segundos) . PARA MIM! AHAHAHAHAH! PARA MIM!" . . . Palmas. Ou então: "NÃO!". E para aí. É a versão dramática, também muito apreciada pelo júri residente. Ainda: "NÃO, NÃO É OFERTA, É PARA EU LER.". Este tipo de esclarecimentos é sempre bem-vindo. Reina um medo nas nossas mentes perturbadas relativamente ao que os clientes vão fazer com os livros quando abandonam as nossas instalações. Deste modo, com a resposta do cliente, podemos dormir descansados.
O facto de o livro estar com desconto também leva a situações estranhas. Há sempre equívocos quanto ao preço. Não sabem se o preço marcado é já com ou sem desconto, ou quanto é o desconto. E depois de vendido, perguntam quase sempre se fizemos o descontinho. Apesar da resposta ser afirmativa, ficam muitas vezes na dúvida, consultando em seguida a factura, não vá o Diabo tecê-las e estarem a ser enganados por um livreiro mal formado.
E hoje, um cliente aproximou-se novamente da pilha, perguntou onde estava o livro. Ao ser lhe indicado o caminho para a luz, o cliente ficou surpreso, e em seguida inquiriu sobre o preço. A minha colega respondeu "16 e 16" ao que o cliente responde todo contente "32!!!!". Boa. Além de engraçado também é matemático e sabe contar, aplaudam por favor o artista convidado.
Já se sabe que eu tenho um amor tremendo pelo acto de embrulhar livros. Simplesmente não combinamos. Somos tipo Pinto da Costa e Del Neri, Camacho e Roger, Scolari e Baía. Uma cliente, embebida num espírito natalício precoce, decide oferecer 3 Código Da Vinci, mas em versão original, em inglês. Até aqui tudo bem, sempre entra mais dinheiro. Mas depois vem a temida resposta "sim" à enfadonha pergunta "é para oferta". E logo 3 livros. Quando acabo de cortar o papel e começo a embrulhar o primeiro livro, a senhora pede histericamente que pare. "AH, PARE! DEIXE ME FAZER DEDICATÓRIAS NOS LIVROS! PODE ESPERAR? NÃO ESTÀ CÀ NINGUEM!". Posso esperar, posso. Eles só me libertam e soltam a corrente que tenho no tornozelo às 23 horas. Por isso não se preocupe, esperar é a minha função, o meu modo de vida. E lá começou ela a fazer as dedicatórias, enquanto se ia rindo. Também é engraçadinha, isto cómicos não faltam. Quando finalmente terminou, deu me os livros para embrulhar. Embrulhei os livros com uma rapidez estonteante. E olhem que não ficaram nada mal. Quando me preparo para por os livros no saco, a senhora intervêm: "AHH! ESPERE! Como é que eu distingo qual é qual? Tem que desembrulhar!". E pronto, toca a desembrulhar. E tenho que admitir que, surpreendentemente, tenho bastante mais jeito para desembrulhar do que para embrulhar. Depois da cliente identificar e separar os livros, volto a embrulhá-los. Enquanto embrulhava, ela ia lendo as dedicatórias e rindo, virando levemente o livro para mim. Sinceramente não sei qual o objectivo da senhora, se queria que lesse e achasse o máximo, ou se queria que lesse só para me repreender. De qualquer das formas não lhe dei esse prazer. Com os livros devidamente identificados e embrulhados, lá seguiu ela o seu caminho, qual mãe natal fora de horas.
Agora está tudo calmo, mas sei que em breve assistirei a nova demonstração de talento do cliente português.

1 comentário:

m disse...

Caríssimo também eu detesto fazer embrulhos e ter que meter aquela etiquetazinha no final.
Um abrçao