quinta-feira, outubro 21, 2004

Hilda Furacão

O Natal aproxima-se a passos largos, e com ele vem todo o caos e aumento no fluxo de pessoas, livros e dinheiro. O que é uma boa notícia. Pelo menos para alguém. Este caos vai aumentando lentamente, quase sem se dar por ele, provocando assim alterações na nossa vida profissional, até se apoderar totalmente de nós. Este aumento no fluxo de pessoas e livros abre também todo um novo mundo de possibilidades. Mais pessoas, mais variedade de pessoas, provavelmente um novo rol de situações caricatas. Aguardamos com expectativa.
Mais uma vez, a minha profissão provou ser uma fonte infindável de conhecimento. Numa noite calma, quase tão calma como a noite de Natal, fiquei a saber o porquê de os furacões terem nomes de mulher. Com a loja completamente vazia (o que neste caso, diga-se de passagem, foi extremamente benéfico porque de outra forma teria sido complicado) entra uma mulher com a mala na mão direita e o cartão de crédito em riste na mão esquerda. Andava rápida e decididamente, com um olhar esgazeado e raivoso, enquanto se abanava como uma cana ao vento. Mal pôs um pé na loja (e ao que tudo indica, já assim era antes de entrar) começou um berreiro infernal. Bem, berreiros na loja até é uma coisa compreensível, mas depois de acontecer algo que, com ou sem razão, despolete reacções mais fortes nos clientes. Desta vez não. Mal entrou desatou aos berros, deixando-me completamente estupefacto. E aviso desde ja que não é fácil. As primeiras palavras dela foram: "A GAJA NAO ME QUER FAZER O VISA MANUAL! EU FAÇO AQUI E DOU LHE COM O CARTAO NA CABEÇA!" Uma entrada no mínimo original. Dirigiu-se para o balcão, e como seria de esperar, bate com a mala violentamente na mesa e diz: "QUERO UM LIVRO! UM LIVRO QUALQUER!". Apesar de ter visto muita coisa, tal como pessoas não saberem o nome do livro que querem e coisas afins, devo dizer que fiquei surpreendido com este pedido, especialmente devido ao que a senhora acrescentou, antes sequer que pudesse tentar falar: "DE ME UM LIVRO! RAPIDO! QUERO IR ALI E DAR LHE COM O LIVRO NA CABEÇA!". Portanto, alem de querer um livro qualquer, queria o livro não para ler, mas para dar com este violentamente na cabeça de alguém. Imparável esta mulher. Na altura não tive o discernimento necessário, mas agora que penso nisso podia ter dado à cliente um livro bastante caro, podia ser que ela não se tivesse importado. Além disso, sendo um livro caro provavelmente seria bastante maior, o que viria a ser crucial para a bonita intenção de dar com o livro na cabeça de alguém. "QUERO UM LIVRO, UM LIVRO QUALQUER, RÁPIDO!" continuou ela, sem sequer nos ter dado tempo para nos mexer. Perguntámos o que queria, ela continuava a insistir que queria qualquer coisa. Em seguida, prosseguiu as reclamações, mas desta vez explicou o porquê de tanta raiva: "ISTO É UMA VERGONHA! A GAJA DA LOJA NÃO ME QUER PASSAR O CARTÃO! NÃO QUER FASER MANUALMENTE NA MÁQUINA! E AGORA DESMAGNETIZOU ME O CARTÃO A CABRA! VOU LÁ E VOCÊ VENDE ME UM LIVRO E FAS MANUAL E EU DOU LHE COM O LIVRO EM CHEIO NA CABEÇA!" Manual na máquina é algo estranho pensei eu. De qualquer forma, não convêm contrariar o bicho, não vá eu ser atacado. Então, com o objectivo de esclarecer tudo isto, ligámos para a UNICRE, para indagarmos da possibilidade de fazer então um VISA manual utilizando o terminal de Multibanco. O curioso (apenas para quem não está habituado a este tipo serviços) é que o jovem que atendeu do outro lado negou peremptoriamente a existência deste serviço, remetendo nos assim para a utilização do velho visa manual. Claro que, no dia seguinte, o venerável e sábio mestre livreiro elucidou-me e mostrou-me como se faz. Depois de explicarmos isso com tremenda dificuldade à senhora (enquanto tentava falar ela só mencionava as palavras LIVRO e CABEÇA de forma repetida, desconexa e, diria mesmo, assustadora), ela lá acedeu em fazer o Visa manual. Enquanto preparava o engenho, ela deslocou-se para ir buscar um livro qualquer, vociferando: "DE ME UM LIVRO! UM QUALQUER! E RÁPIDO, PORQUE QUANDO ESTOU NERVOSA FICO PERIGOSA". Acho que isto era desnecessário, porque alguém que menciona diversas vezes a sua vontade imparável de bater na cabeça de alguém com um livro não necessita propriamente de avisar que é perigosa. Acho que se nota. Não sei, se calhar sou só eu, mas eu sou demasiadamente atento e picuinhas com os detalhes. "NA ÁFRICA DO SUL ISTO NUNCA ACONTECE E ELA VAI VER!" Claro, na África do Sul já tinham dado um tiro ao comerciante, especialmente a um português. Por sua vez, ela saia e levava ela um tiro. Ficava tudo bem. Depois de ter pegado num livro de Margarida Rebelo Pinto, essa Bíblia da violência, dirige-se para o balcão. "AQUELA GAJA.. O MEU CARTAO TEM UM PLAFOND DE 10 MIL EUROS! E ELA NÃO ME ACEITA! É UMA VERGONHA! AQUELA GAJA, TOU FARTO DE ESTRANGEIROS! FAÇA ME LA O VISA ENTAO E EU VOU LA! E DESMAGNETIZOU ME DE PROPÓSTIO". Devo acrescentar, para fazer justiça, que, obviamente, o cartão não estava desmagnetizado. Lá fechei a conta, ela pagou, guardou as coisas, e lá foi ela, livro em riste numa mão, mala e cartão noutra, tão rápida como entrou. A seguir, ficámos a observá-la na loja em frente. Ela gritava e gesticulava como uma maníaca, e a senhora da loja estava assustada. Nós deste lado sempre à espera do momento em que ela desse com o livro na cabeça, como tanto prometeu. E por uma ou duas vezes temi o pior, pensei que ela fosse mesmo partir para a agressão, pensei que fosse tirar de esforço a empregada. Mas não, ficou-se pelas intenções. E foi se embora, tão chateada como nunca.
Quando pensámos que tinha sido o fim da passagem do furacão, uns dias mais tarde, e aparentemente mais calma volta à loja. E para quê? Para trocar o livro da Margarida, porque o achou entediante. Ou, para citá-la "Boring...". Quando me deu o talão para efectuar a troca, verifico que o talão não corresponde ao livro. Então, explico-lhe o sucedido e pergunto se tem o talão certo. A mulher, até então calma e civilizada, esplode novamente: "O QUE? ESTA A DUVIDAR DE MIM? EU COMPREI AQUI O LIVRO! ESTA A VER O SACO? O PREÇO? EU COMPREI AQUI! NÃO, ISTO É UM ULTRAJE!" Com os berros, o meu cabelo foi violentamente projectado para trás, deixando o de tal maneira que ainda hoje não se move dessa posição. Talvez seja medo. Não o censuro. Expliquei-lhe, calmamente, como deve ser, que não era isso que eu estava a dizer, que apenas queria saber se tinha o talão para saber se tirava um talão novo ou não. Ela assentiu com a cabeça, mas o olhar violento e lunático continuava. Depois de efectuada a troca, ela foi embora, sempre a reclamar com qualquer coisa, seja a má impressão da factura, o preço do livro, o papel do livro, o ar condicionado estragado. Deve ser da oposição. Digo eu, mas eu não percebo nada disso. Alias, nem sei bem de que é estou a falar. Até breve, espero eu!

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