sábado, outubro 02, 2004

Lenda Viva

Há situações realmente curiosas. E pessoas realmente inacreditáveis. Não me canso de repetir, aliás, não posso fazer outra coisa. É verdadeiramente irreal muito do que se passa neste estabelecimento denominado comercial.
Temos clientes, que, quer pelo andar cambaleante ou indeciso quer pelo ar tresloucado ou desligado da realidade, mostram logo que quando abrirem e moverem os músculos da sua boca não vai sair coisa boa. Mas, caros amigos, estes não são os piores. Nem de perto nem de longe. Os mais perigosos são aqueles que se apresentam como sendo pessoas sãs e equilibradas. Por exemplo, vejam este caso. Uma mulher, 30 e poucos anos, vêm comprar um livro. Tudo normal. Escolhe o livro, demora o tempo que tem a demorar sem exageros, leva o Código Da Vinci. Muito normal. Quando vai pagar, pousa os sacos em cima da mesa, juntamente com a sua mala. Aí, começa a desvirtuar-se. “Olhe, pode me tirar a carteira da mala?” Seria uma pergunta com rasteira? Teria que responder afirmativa ou negativamente? Com muitas questões em mente, decidi seguir à risca as instruções da cliente, tirando a carteira da mala. “Agora, pode tirar-me o dinheiro da carteira?” Devo ter feito um ar espantado, e ela continuou: “Tire, por favor, é que eu tou chea de verniz e não posso mexer em nada.”. Bom… Muito bom… Os pedidos seguiam-se: “Guarde o troco”; “Ponha a carteira na mala”; “Feche a mala”. E depois o melhor. “Espere, espere! Eu agora estico as mãos, e o senhor enfia me os sacos nos dedos, mas sem tocar nas unhas, pode ser?” Vamos a isto, disse eu, nunca virando a cara ao desafio. Então lá estava ela, manápulas esticadas, unhas vermelhas e compridas apontadas na minha direcção, quais punhais afiados, e eu cheio de sacos de lojas de mulher na mão. Aí, lentamente para não enfurecer o animal, fui colocando um a um dos sacos nas mãos da senhora. Tarefa difícil e que requeria demasiada perícia. Depois de estar tudo colocado, lá seguiu ela, mãos paralelas ao chão com os sacos pendurados. Entrou como uma pessoa normal, saiu como uma louca.
Existem comportamentos que eu não consigo mesmo explicar. Quando estou atrás do balcão e me pedem um livro que eu sei que se encontra na loja, ou que já pesquisei e vou confirmar se temos, eu digo para esperarem um momento e começo a dirigir-me para o local do livro. Agora reparem: o balcão encontra-se no canto superior direito da loja, o que significa que não há quase nada junto ao balcão. Mas, ainda assim, quando começo a sair detrás do balcão, as pessoas que estão à minha frente, dirigem-se na mesma direcção que eu, encurralando me na única sáida do balcão. Agem como se tivessem um íman poderosíssimo a ligá-las a mim. Eu movo-me para a direita para sair do balcão e posteriormente procurar na loja, e as pessoas, em vez de esperarem quietas, começam também a mover-se para a direita, encurralando me entre a mesa e o balcão. Mas porquê? Porquê? Querem saltar às minhas cavalitas enquanto procuro? Ir para o meu colo? Porem se de quatro patas para eu as cavalgar triunfantemente até ao livro? Não entendo. E nem sei se quero entender. Há coisas demasiado complexas para o meu pequeno e ignorante ser.
Um destes dias recebi a visita de uma personagem no mínimo genial. Baixo, gordo, meio careca, com óculos redondos e com um apetite por arquitectura, mas não era arquitecto. Faz vos lembrar alguém? Os iluminados, discípulos de Seinfeld, saberão do que falo. Aproximou-se do balcão, e naquele estilo envergonhado e desconexo pediu-me revistas Arquitectura, porque segundo ele: “Apesar de não ser arquitecto, gostava muito de ser…”. Eu tive de olhar duas vezes para ele, para me certificar que não era mesmo o George. Lá o levei para ver a revista, mas ele ficou um bocado desiludido com a nossa oferta. Saiu, desapontado da loja. Uns largos minutos depois, enquanto atendia mais um cliente, aparece ele, de revista na mão, colada ao peito com a cara virada para mim. Entra quase a correr pelo estabelecimento a dentro, interrompendo o cliente que estava a falar comigo e diz: “Vê? Vê? É esta!” Enquanto ajeita os óculos, mesmo como o George. Por momentos, tenho que admitir, arrepiei-me. Parecia que estava defronte duma lenda viva. E saiu, tal como entrou, correndo, revista junto ao peito, todo desconexo e trapalhão.
Estou definitivamente de volta…

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