segunda-feira, julho 24, 2006

Boas Acções

Num regresso de férias que não pode ser considerado algo menor que heróico, volto para deparar-me com as adversidades e incidências rocambolescas do costume. Está tudo na mesma, basicamente. Tenho entrado 30 minutos antes da loja abrir, para tratar dos mais variados assuntos burocráticos, nomeadamente a “verificação do meu e-mail”, o protocolar “deixa lá ver o que diz A Bola hoje” e o administrativamente entediante “que CDs novos é que há aí para comprar”. Bom, é um trabalho árduo, tenho de admitir.
O problema é que, para além dos aromáticos entregadores de mercadoria, surgem alguns telefonemas que atrasam o bom funcionamento da livraria. Hoje, por exemplo, ainda faltavam 20 minutos para a loja abrir quando liga uma senhora que queria um livro de Virgílio Ferreira. Livro esse que, para não variar, encontrava se esgotado. Depois de recuperar da desilusão causada pela não disponibilidade do seu livro, a cliente diz o seguinte: “Olhe, e podia dar-me só uma informação…”. Pensei logo que queria saber o Continente estava aberto ou qualquer uma das outras perguntas do costume, mas não: “Olhe, por acaso conhece, ou sabe se está aberta, uma loja chamada FNAC, F-N-A-C, FNAC, conhece? Acho que também vende livros…”. Não amiga, eles vendem enchidos e dos bons, aquilo é qualidade… Depois quis o telefone da FNAC, e eu, num esforço desesperado para me soltar das suas amarras, dei-o de bom grado. Fiz a minha boa acção do dia...
Já diversas vezes mencionei aqui toda a problemática que envolve os pedidos de cliente. Verdade seja dita, a minha letra não é famosa. A do Santo também não é das melhores. Mas, a do Gulbenkian bate todos os recordes. A pessoa responsável pelos pedidos (vamos chamar-lhe, para protecção da sua identidade, “Noiva de Portugal”) queixa-se constantemente, e também muitas vezes, com toda a razão, da nossa letra. Nas suas palavras, a nossa “letra é má, mas a do Gulbenkian extravasa o razoável”. O meu problema em particular são os números. Entre quatros e noves, setes e uns, venha o diabo e escolha. Também, não vejo qual é o problema. Vão tentando todos os números até acertarem, as possibilidades não são infinitas. Mas, pelo menos, preencho na totalidade os dados absolutamente necessários para o bom desempenho de quem faz os pedidos. O Gulbenkian, para além da sua letra, também tem graves dificuldades no preenchimento das encomendas. Recentemente, apareceu um papel de encomenda com a letra dele (sem estar datado ou assinado) que dizia apenas México Insight Guide. Sem nome de cliente, sem número de telefone. Prevejo que, brevemente, Gulbenkian comece a deixar pedidos apenas preenchido com a palavra “LIVRO”. Apenas “LIVRO”. Para quê perder tempo com assuntos triviais? O que é a pessoa quer, afinal de contas? Um “LIVRO”, apenas e só um “LIVRO”. O resto a Noiva de Portugal que descubra. Para terem uma melhor noção da dimensão do problema do Gulbenkian, na semana passada, tive de me deslocar juntamente com ele, em mais uma boa acção, à Universidade que frequenta, numa viagem que somente posso apelidar de alucinante, para recuperar um teste de Filosofia. Digamos que o conceito de “redução” aquando de uma travagem é totalmente desconhecido para ele. Sobrevivemos. É o que importa. Gulbenkian, o primeiro filósofo-baixista-voluntário-livreiro-escritor (mas certamente não o último, tenho certeza que ele deixará um vasto legado) do Universo, recebeu, quando se encontrava na praia a vislumbrar a sombra causada pelo seu pêlo corporal na areia, um telefonema da sua professora. Esta disse-lhe que nem soletrando conseguia perceber o que estava lá escrito. Quando vi o exame, dei-lhe toda a razão. Nem o próprio Gulbenkian percebia o que estava lá escrito. E reparem, o homem tinha feito um rascunho antes. Mais valia ter entregado o rascunho. Como é que posso descrever a letra dele? Gostaria de ter um paleógrafo disponível para me ajudar neste caso, porque é deveras complexo. Ora bem, imaginem uma pessoa normal a tentar escrever, com a mão esquerda (no caso de ser dextro) enquanto se deslocava num jipe sobre as dunas, de olhos vendados. É mais ou menos esse o resultado final. Uns hieróglifos imperceptíveis, apenas ao alcance dos predestinados. Consta (e estou a tentar ao máximo trazer provas disso) que, quando Gulbenkian fez os seus hieróglifos naquele teste de filosofia, abriu-se um portal no Egipto, capaz de nos fazer viajar através do espaço e do tempo. É verídico.
Dêem graças a Deus de o blog não ser manuscrito.

9 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom! Fartei-me de rir, ainda bem que voltou a escrever!

Anónimo disse...

E o mais incrível é que é tudo verdade! Ainda bem que tirei 18 na cadeira de paleografia e dei aulas a miúdos de 13 anos, o ano crítico da mudança de letra...Parece que os meninos nunca escreveram em cadernos pautados a duas linhas...Se fossem meus alunos fariam cópias do livro Júlia e Julieta todos os dias, é pena que o livro tenha três páginas a contar com os agradecimentos, o prefácio e o posfácio. E agora com licença que tenho de ir resolver o problema dos meus sapatos de noiva...

Anónimo disse...

Estaremos aqui em presença do livreiro mais samaritano do mundo? Muito bem, umas boas acções por dia dão saúde e energia.

O Livreiro disse...

Samaritano? Não, sou Benfiquista. É um clube que me agrada mais. Saúde e energia? Geralmente as minhas boas acções só me colocam em imbróglios de díficil resolução, com especial incidência nos maus resultados para o meu lado.

Anónimo disse...

Por vezes fazer alguem sorrir já é uma boa acção e normalmente não vem acompanhada de nenhum imbróglio. Em suma a dica é fazer uma filtragem às boas acções.

O Livreiro disse...

Uma dica valiosa, mas que não consigo seguir. Já a minha esposa, lá está, numa boa acção, diz-me para ter cuidado. E eu não consigo. Ouçam sempre os conselhos das esposas, meninos...

Anónimo disse...

Obrigada Santo.

O Livreiro disse...

O Santo é o maior, uma verdadeira instituição provocadora de sorrisos. É só talentos, o rapaz.

Anónimo disse...

:)