domingo, outubro 22, 2006

A Livraria No Centro Do Mundo

Esta loja vai sentir a falta do Mestre, esse mito da matemática moderna. Nem que seja só pelo facto de ele ser, na sua essência, um íman de clientes bizarros. Veja-se o caso da cliente que, quando se aproxima do balcão, a primeira coisa que diz é “Posso mandar uma SMS?”. Eu e o Mestre olhámos incrédulos um para o outro, perante tão invulgar pedido. A senhora continuou: “É que eu perdi-me do meu marido e queria mandar-lhe uma SMS a dizer para ir ter comigo ao carro…”. Explicámos que não tínhamos maneira de enviar uma SMS, mas que se quisesse ligar do nosso telefone, estaria à vontade. Lá pegou no telefone, ligou ao marido, que não estranhou o facto de a mulher estar a ligar dum número estranho. E lá seguiu, toda contente. O episódio em si encerra pouca importância. Agora, porquê sempre na livraria? Porquê aqui? Há centenas de lojas aqui à volta. Porque é que ligam sempre para nós quando querem saber se o Continente está aberto, se há sapatarias e se vendem todo o tipo de marcas ou anda se sabemos o telefone de alguma loja em especial? Porquê nós? Depois admiram-se que eu seja um solipsista confesso…
Há famílias manifestamente estranhas. Reparem no caso da mãe que vem com dois filhos para a livraria. Enquanto ela e a filha mais velha estão descansadas no balcão a tratar dos seus assuntos, o filho mais novo anda para a frente e para trás na loja, com um livro qualquer na mão, de braços esticados para a frente, enquanto soltava um som que é particularmente difícil de descrever. Seria qualquer coisa como um HHHHHMMMMMMMMMMMMMMM gutural, tipo o som de um zombie, mas bastante mais prolongado e mais alto. E então lá andava ele, HMMMMM para um lado, HMMMM para o outro, parecia que vivia num sofrimento imenso. Sempre que se cruzava com outra criança eu temia que ele dissesse “Brains…” e tentasse mordiscar o frágil crânio da outra criança. Depois, cada vez que passava por trás da mãe, esta dava-lhe, vou tentar dizer isto de uma forma educada e suave, uma carga de porrada. Basicamente era isto. E o petiz lá continuava, completamente zombificado, a andar para trás e para a frente, sem proferir qualquer palavra, apenas a gemer como se não houvesse amanhã. E pelo tamanho da mão e da violência da mãe, talvez não houvesse mesmo.
Há casos de clientes que frequentam muito a loja, quase diariamente, mas nunca levam nada. Pelo menos de forma oficial, entenda-se. Os erros de stock têm que surgir de algum lado. E num destes últimos dias, enquanto partilhava o espaço com o grande Gulbenkian (o que já se sabe que é propício a acontecimentos de índole estranha e inacreditável), um desses clientes que nunca compra (aliás, o maior mito desse tipo de clientes) aproximou-se do balcão para comprar. Um livro. Com dinheiro. Eu e o Gulbenkian aguardámos aquele momento com uma enorme ansiedade. O cliente aproximou-se e o Gulbenkian, mais rápido do que a própria sombra, lança um sonoro e bem disposto “Bom dia!” na direcção do cliente. Só que este desviou-se do bom dia, e respondeu com um cantarolar, assim uma espécie de zumbido de vários tons. Meu Deus, pensei eu, sempre julguei que o cliente cantante fosse um mito, como o mito do cliente bem disposto e simpático ou da cliente divorciada de 43 anos que tem problemas afectivos e corpo de 23 anos (mito que agrada, e de que maneira, ao colega Santo). Mas não, era real, ele estava ali, perante nós, a cantarolar. Pagou e em seguida foi-se embora, e nós ficámos a apreciar o momento histórico. Em seguida, nas nossas habituais discussões filosóficas (que abrangem tudo desde o existencialismo, passando pelos mais variados problemas económicos e sociais, bem como pela inclusão de Hilário no onze titular do Chelsea frente ao Barcelona), discutimos o que fariam aqueles clientes que se deslocam diariamente à loja e nada levam. O argumento do Gulbenkian deixou-me logo sem palavras. Ele, um proficiente estudante de filosofia, um verdadeiro humanista, preparou-se para dar a sua visão do assunto e eu, mero aprendiz, esperava ansiosamente pela sua sabedoria. “Secalhar são indecisos”, disse, sabiamente. E calou-se. Que domínio da condição humana, das razões psicológicas e sociais que levam pobres almas a visitar uma livraria diariamente sem nada comprarem. Obrigado, Gulbenkian, obrigado…É que além de aprender sobre a vida em geral, ainda aprendo línguas, como o espanhol. Foi uma honra ver o Gulbenkian dizer a uma cliente espanhola, quando esta estava com dificuldades no multibanco: “Por EL código, por EL código”. É o maior.

6 comentários:

O Livreiro disse...

Muito bom, Santo, mais uma vez um comentário que se insere completamente no tema debatido e no tema do blog em si. Este blog não existia sem os seus préstimos. Tudo bem, eu entendo que o Porto empatou, mas vamos a comentar com cuidadinho? Ou não me diga que inalou algum produto para cuidar da sua preciosa relva, por si plantada?

Anónimo disse...

Estes comments andam muito parados...
" Misterioso é o Senhor, mas mau ele não é"

Anónimo disse...

Temos que estudar melhor a Teoria do Caos Professor...

Sr. Jurista disse...

Ouvi falar em inalação de produtos para a relva? ou "relva"?vulgo erva?

Os meus cumprimentos ao painel, ao sor livreiro, gosto muito do seu blog e do seu trabalho.

Anónimo disse...

oh senhor livreiro.. para quando um post novo?

Anónimo disse...

então o sr. livreiro anda muito ocupado? queremos um novo post (eu sei que a falta do Mestre é grande mas esta ausência dá-nos cabo dos nervos!)
Parabéns pelo Blog