quinta-feira, julho 29, 2004

O último?

Não percebo porque é que as pessoas têm ideia de que as folgas são para repousar. Quando tenho folgas faço tudo menos descansar, e não param de acontecer imprevistos desagradáveis. Deste modo, o meu regresso ao ambiente de trabalho não poderia ser mais chato. A minha paciência para lidar com má educação estava num nível extremamente baixo hoje, mas, há que fazer um esforço. Pelo lado positivo, o dia foi fértil em situações caricatas.
E por onde começar? Bem, primeiro vamos conhecer a história de um indivíduo que teve um daqueles momento ridículos, passível de acontecer a qualquer ser mais distraído. Quando digo ridículo, refiro me a ridículo tipo anúncios XAU, não a ridículo tipo "ESTA SOU EU, ESTA SOU EU COM MAIS 4000€". Ainda não presenciei nada tão ridículo e tenho sérias duvidas que algum dia venha a testemunhar algo desse gabarito. O senhor chega à caixa para pagar, segurando a auto-biografia de João Paulo II, "Levantai-vos! Vamos!" na mão direita, e, com o dedo indicador da mão esquerda bem apontado para o II na capa do livro. E então pergunta: "olhe, quero levar este, tem cá o primeiro?". Eu fiquei sem perceber, fiquei, diria mesmo, catatónico por uns segundos, e finalmente perguntei a que primeiro é que se referia. "Ao primeiro. Á primeira parte." Eu elucidei o senhor, e disse lhe que a auto biografia de Sua Santidade era composta apenas por um livro, um único e sagrado volume. "Mas está aqui um II, eu quero a primeira parte, não levo só a segunda!", retorque ele, apontando vigorosamente para o II da capa. Quando expliquei delicadamente que esse II fazia parte do nome do Papa, o senhor bateu com o livro na cabeça, exclamando bem alto: "QUE ESTUPIDEZ!". Temos que admitir que o cliente reconheceu a qualidade do seu acto, merecendo os nossos maiores e mais sinceros parabéns. Ao contrário da grande maioria, este apercebeu-se que não esteve bem. Os outros continuam a achar se os maiores.
Em seguida, temos a ocorrência da senhora que chega ao balcão, e sem demoras murmura para mim: "vou lhe dizer uma coisa, provavelmente não lhe vai fazer sentido nenhum, mas vou dizer". Aí, eu tremi. Qual confidência divina, maldição egípcia ou esconjuro grego estaria prestes a ser revelado para mim? E porquê a mim? Seria eu digno? "Onze minutos" diz a senhora. E olha para mim durante um longo, quase eterno, segundo. "Faz algum sentido?" pergunta ela. "Ouvi isto em qualquer lado, gostava de ter este livro. Não sei o autor, não sei nada." Quando abandonou a loja, com o seu livro pela mão, uma negra tristeza abateu-se sobre a minha pobre alma. Por breves momentos, pensei ser o escolhido para uma revelação. Mas não, contínuo a ser apenas e só um pobre livreiro.
Falando em falta de paciência, uma cliente, depois de não ser atendida 15 segundos após ter entrado no estabelecimento, brama “OH FAZ FAVOR, ALGUÉM ME PODE AJUDAR?”. Por momentos, pensei que o nosso crocodilo de estimação (Auster de seu nome, em honra de um colega) tivesse voltado a atacar, já estava preocupadíssimo. A senhora estava aflitíssima. Mas não, a senhora só queria um pouco de atenção. É que o meu colega estava a atender 2 pessoas e eu estava lá atrás a ordenar e colar etiquetas num monte de livros, ou seja, estávamos na pândega. É que não se trabalha mesmo naquela casa.
Isto leva-me a outro tema, quiçá controverso. A carência de espaço. Os funcionários têm de ser verdadeiros mestres da arrumação, técnicos das gavetas, engenheiros espaciais ou até mesmo mágicos do desaparecimento para arrumar esta livraria. Hoje foi exemplo disso. Imaginem uma estante, com capacidade de 100 livros. Ora, chegaram cerca de 300 para essa estante (no total foram talvez mais de 500). Confesso que não sou nenhuma Manuela Ferreira Leite, mas algo está errado aqui. À primeira vista a loja está cheia. Muito cheia. E chegam caixas e mais caixas de livros. Parece me bem. É bom arrumar. Especialmente quando estamos concentrados a arrumar algo e somos constantemente a ser interrompidos porque uma senhora não encontra “Conversas com Deus” de Alexandra Solnado, ou porque o único exemplar do livro do Cláudio Ramos está ligeiramente sujo. Claro que nós, funcionários, arrumamos com gosto e determinação, nomeadamente porque sabemos que a qualquer altura nos pode calhar o bónus, esse Santo Graal do arrumador de livros: bolas de cotão do tamanho de bolas de ténis. É um assombro, um justo prémio para tão vigoroso esforço. Como diria o nosso colega: “Há tanto cotão que dava para fazer uma camisola!”. Nem mais.
Outro evento curioso, vendeu-se o segundo livro do Pauleta. É verdade, venho com enorme tristeza anunciar que alguém comprou o livro desse grande dínamo goleador do ataque nacional. E, obviamente, a venda de livros está a ganhar em comparação com o número de golos que o aríete luso apontou no Euro2004(2-0). Portanto, com estes dois fãs e com o Scolari, o Pauleta já vai em 3 admiradores. Força rapaz, és o maior.
Sendo eu um livreiro, não posso terminar sem deixar de mencionar a estreia literária de José Castelo Branco, na TV7. Aqui ficam alguns excertos desta pérola literária, cortesia de O Período. Depois de ler algo tão profundo e genial, fico francamente com pouca de vontade de redigir seja o que for. José Castelo Branco, será você o responsável pelo fim d’O Livreiro?

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