quinta-feira, julho 22, 2004

Esqueci-me...

Desta vez, venho por este meio apresentar às massas dois problemas que parecem assolar uma parte considerável do povo português. Diversas vezes sou confrontado com pessoas que chegam ao balcão e pedem determinado livro. Até aqui nada de anormal, mas é a partir daqui que surgem os problemas.
Por vezes, os pedidos contêm algo de estranho na sua fonética: a troca do “i” pelo “e”.
“Olhe, se faz favor, tem aí o livro ReikE Essencial?”
“Tem o Código Da VincE?
“Tem o Poder InfEnito Da Mente?”
“Já chegou Os Mistérios de OsírEs?
“Onde encontro livros da Julliete BenzonE?
É verdadeiramente curiosa esta situação, especialmente se tivermos em conta o facto que o a televisão favorita de grande parte destes clientes é a TVI. Aposto que VIDAS REAIS, BATANETES e MORANGOS COM AÇÚCAR dizem eles sem trocarem letra que seja... O “i” está a perder a sua supremacia para um “e” que parece não dar quaisquer tréguas.
O outro problema é, sem qualquer margem para dúvidas, bastante mais preocupante: a falta de memória. Não é raro chegar um cliente ao balcão e pedir um livro. Mas, não se lembra do autor. Nem do título. Nem da editora. Nada. “É um livro assim (faz um rectângulo com as mãos) e é amarelo, sabe qual é?” Perfeitamente, vou já buscá-lo. Aliás, a nossa sorte é que os nossos livros são assim (faço o gesto do triangulo com as mãos), e são todos vermelhos, logo o amarelo rectangular não deve ser difícil de encontrar! Temos também clientes que dizem coisas como “Não sei o título, mas sei que o livro foi escrito por dois americanos”. Não vejo qual poderá ser o problema. Existem apenas cerca de 200 milhões de americanos, não deve ser difícil encontrar os autores. "A autora é jovem", "Acho que é um homem. Ou secalhar é uma mulher", "o autor é espanhol" são frases que ouvimos vezes sem conta, e todas elas bastante elucidativas. Também temos clientes que querem um livro, do qual não se lembram de nada, mas acham que nós, mergulhados numa imensidão de obras, com dezenas e dezenas de lançamentos todos os meses, temos o dever de conhecer todos os livros e todos os autores. Se Miguel de Sousa escrever uma tese sobre o Óráculo de BellinE e a sua relação com o facto de Manuel Luís Goucha ser de origem extraterrestre, é bom que nós saibamos onde está, sobre o que fala, qual a data da 1ª edição, número de páginas, etc, correndo o risco de sermos apelidados de, e passo a citar um afável cliente, “maus profissionais!”
A falta de memória acontece não só em relação aos livros, mas também em relação à própria localização espaço-temporal do cliente. Temos clientes que entram aqui às 23 horas de óculos escuros e dizem bom-dia, ou então chegam às 10 da manhã com um sonoro e vigoroso “Então uma BOA NOITE sim!?”. E, ainda hoje, a meio da tarde, entra uma senhora na loja e desde logo começa desvairada a disparar perguntas em voz alta desde a porta, qual Manuela  Moura Guedes em pleno Jornal Nacional, e eis que senão quando pára mesmo no meio da loja, e pergunta a si mesma: “MAS, ESPERA, EU ESTOU NA LIVRARIA? AH! POIS, ESTOU!” O ar filosófico e de quem estava com uma profunda dúvida existencialista é verdadeiramente inenarrável.
Obviamente existem as mais variadas explicações para estes lapsos de memória. A mais credível e merecedora dos mais altos galardões da comunidade científica foi a seguinte: carregando consigo uma cara carrancuda, certa senhora entra lentamente na loja dirigindo-se a mim. Fala num autor, e quer o novo livro dele. Levo-a à zona onde se encontram as obras desse autor, e peço que veja os livros, na tentativa de reconhecer o livro desejado. O esforço é inglório, a senhora não encontra o livro. Aí, sem qualquer tipo de alternativa ou subterfúgio, vejo me na iminência de questionar a pobre alma sobre o título do livro, sabendo que posso mesmo correr risco de vida. A senhora explode, gritando do fundo dos seus pulmões:”MAS VOCÊ ESTÁ PARVO? ENTÃO NÃO VÊ QUE ESTOU COM DOR DE DENTES? ACHA MESMO, MAS ACHA MESMO QUE ME CONSIGO LEMBRAR DO QUE QUER QUE SEJA COM ESTA DOR DE DENTES?!?!?!?”. Claro que  tive de me retratar e pedir mil perdões à senhora, pois é uma falha inacreditável eu estar rodeado de tanto conhecimento e não saber que a dor de dentes provoca falhas na memória. Eu próprio, sofrendo de uma terrível dor de dentes, por vezes esqueço me que sou livreiro, indo diversas vezes pagar pelos livros que deveria ir arrumar, ou então indo mesmo perguntar aos meus colegas se este ou aquele livro estão disponíveis.
Agora mesmo sinto uma leve dor nos meus queixais. De que é que eu estava mesmo a falar?

1 comentário:

Anónimo disse...
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