domingo, agosto 29, 2004

Surf's Up

Ah! O ar fresco da manhã de Domingo… Que, infelizmente, em breve será trocado pelo ar condicionado de uma loja pequena, atafulhada de livros poeirentos e clientes mentalmente empoeirados.
O primeiro artista do dia é um senhor estrangeiro, mas com algum domínio do vernáculo luso. Queria um livro relativo à alimentação e tipo sanguíneo. Este livro tem sido um sucesso, encontra-se sempre esgotado. Bom, encontrei um livro sobre o mesmo tema, e entreguei ao senhor, que o folheou demoradamente. Lia, virava o livro para ler os quadros, voltava atrás, como se tivesse a memorizar o texto. Após a consulta, pousa o livro e diz-me: “Muito interessante, agora só me falta descobrir o meu tipo de sangue!” e ri-se. Antes sequer de eu poder dizer qualquer coisa, rematou: “Por acaso não posso tirar sangue aqui não? (e mal termina a frase estica o braço esquerdo, com a mão direita faz o sinal da seringa junto do braço e solta o som CLOCK. Duas vezes). E olha para mim, à espera duma resposta. CLOCK? Isso nem com medicamentos lá vai, é melhor tratamento de choque.
Domingo, sinónimo de eventos estranhos. Uma senhora de meia-idade, aparentemente da alta sociedade, aproxima-se do balcão. Pergunta se vendo envelopes. À minha resposta negativa, diz: “E sabe onde posso comprar aqui dentro? É que eu não sou daqui…”. Pois, não é de espantar, eu conheço poucas pessoas que tenham nascido num centro comercial, ou que tenham nele a sua residência. Não está sozinha, estimada cliente, não desespere. Falando em envelopes, certa vez, um cliente (não sei porque lhes chamo clientes, quando eles apenas vêm à loja para pedir informações, nada mais) aproxima-se do balcão e diz: “Desculpe, têm aqui um marco do correio? Posso deixar esta carta?” Sim, deixe ali entre a máquina de selos e a máquina de preservativos. Por vezes também pedem para que coloquemos os livros dentro de envelopes, e ficam chocadíssimos porque não temos envelopes para o efeito. Às vezes, pedem para levar o papel e embrulham em casa. Mas, segundo me contaram, até já chegaram a pedir o papel e um rolo de fita-cola para embrulhar em casa. E claro, há sempre uma desilusão relativamente ao papel. Muitas vezes até pedem para virá-lo ao contrário. Obviamente que não resulta.
Livros para crianças. Sempre um problema. “Olhe, faz favor, tem livros para crianças de 1 ano e meio?” ou então “o meu sobrinho tem 13 anos, tem qualquer coisa para ele?”. Muitas vezes, ainda tento estabelecer uma linha de comunicação com o cliente, e tento saber os interesses da criança, se gosta ou não de ler. A resposta é invariavelmente a mesma: “Não sei nada”. Já saber que é seu sobrinho é uma sorte, há alguns que demonstram algumas dúvidas. E depois claro, é inacreditável como é que este país está na cauda da Europa quando 99% das crianças são sobredotadas. Senão vejamos: cada vez que proponho um livro para uma criança, recebo muitas e muitas vezes a resposta: “Ah não, isso não isso é muito atrasado para ele.” Mostro por exemplo o livro Uma Aventura para uma criança de 8 anos, e a resposta da mãe é: “Isso é para bebés comparado com o que ele lê”. Ou um daqueles livros para iniciar a leitura e ensinar a contar a uma criança de 2 anos: “Não, isso não, porque a minha filha já lê perfeitamente.” Se fosse a si propunha-a para oradora. O futuro do país está assegurado. Há sempre também aqueles clientes que não percebem nada, mas mesmo nada, de livros. Nem de crianças. O que torna o trabalho bastante mais simples e divertido. E depois nunca gostam de nada: “Harry Potter? Mas alguma criança gosta disto? Isto vende? Tenho dúvidas.” E depois temos o caso da senhora, a quem eu recomendo vivamente os livros de Uma Aventura, que pega nos livro, olha para a lombada e diz: “Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada, Caminho”. Pega no outro, diz: “Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada, Caminho”. Ao terceiro, diz exactamente a mesma coisa, acrescentando bastante espantada: “Porque é que eles têm todos o mesmo nome? Chama-se todos Caminho?”. Expliquei-lhe que era apenas o nome da editora. O nome do livro está mais abaixo. Não pareceu esclarecida, tenho que melhorar impreterivelmente a minha capacidade de persuasão.
Mal cheguei hoje para iniciar mais um dia de trabalho duro, deparei-me com um cenário à muito desejado: a venda da grande Enciclopédia do Surf. . E porquê a minha aversão a esse livro? Tudo começou quando o livro chegou, e não havia qualquer interesse nele, e uma rapariga com o seu namorado quis reservá-lo. Perguntou-me quanto tempo guardávamos o livro, mas disse logo imediato que vinha de certeza amanhã. E frisou isso várias vezes durante o processo de reserva. E que vinha, e de certeza, e que se não viesse, mas vinha de certeza. Nunca mais veio. O livro, entretanto, foi para a montra. E aí piorou tudo. Diariamente, várias vezes, vinha alguém pedir para ver o livro do Surf. E lá ia eu, para a montra, todo encolhido, espalmado contra o vidro, buscar o livro. À terceira vez desisti e pus o livro na ponta da montra, já estava a ver que ia continuar o martírio. E as pessoas, o que dizer? Viam o livro, folheavam, diziam obrigado e punham-no em cima do balcão. Constantemente. Não percebo o que é que as pessoas esperavam do livro, se esperam encontrar algum segredo mágico ou alguma fórmula especial. Mas não, é a desilusão total. Um cliente chegou mesmo a pousar o livro no balcão e dizer: “Ah, obrigado, mas é só uma enciclopédia”. Jura. Pelo título não chegava lá. É essa a decepção das pessoas. Lêem Enciclopédia do Surf e pensam em emoções fortes e raparigas semi-nuas usando bikinis reveladores. Mas não. É apenas uma Enciclopédia. Com entradas e uma outra foto. Uma enfadonha Enciclopédia. Até o Gervásio, o macaco da reciclagem, conseguiria perceber que se o livro se chama ENCICLOPÉDIA é porque é uma enciclopédia.
Os nossos clientes não.

sábado, agosto 28, 2004

Hide and Seek

Talvez seja só de mim. Talvez o problema seja mesmo eu. Mas não consigo de deixar de achar no mínimo estranho que, constantemente, venham pessoa pedir-nos coisas que não constam na nossa loja. Reparem, tudo o que temos à venda está à nossa volta: Livros, algum software, pouco mais. E no entanto, a cena repete-se: "Boa tarde. Era este livro, e um Camel Light, por favor.". O que é que leva alguém, aparente de boa saúde física e intelectual, a chegar ao balcão e atirar uma nota com o maior desprezo e afirmar: "Era um Marlboro."? Eu por vezes, incrédulo, volto-me para trás, na esperança de verificar se puseram tabaco à venda na nossa livraria. Mas não, não há tabaco. Em lado nenhum. Há colegas que até já se riem. De vez em quando clientes perguntam se temos tabaco. Tudo bem, é aceitável. Agora os outros. Diz aqui Livraria, não tabacaria, ou mesmo papelaria. E não há tabaco em lado nenhum. Volto a frisar.
Realmente existem pessoas que deviam pensar bastante antes de falarem. Uma cliente apanha uma inocente chucha caída no soalho. Olha para ela com um ar curioso, quase com a minúcia de um investigador. Vira-se para o balcão e dirige-se para ele. Sempre sem tirar os olhos da chucha. Ao chegar, pergunta: "É sua?". Claro que é minha, deixe me só mudar a fralda e acabar o biberon e já a atendo. E eu estava atrás do balcão. Se a senhora perguntasse a alguém que tivesse uma criança junto dela, era uma boa acção, seria compreensível. O que é que passa pela cabeça desta cliente para poder sequer considerar a possibilidade da chucha ser minha? Provavelmente no pequeno mundo dela tudo faz sentido.
E depois há aqueles clientes que fazem pedidos em sentidos diametralmente opostos um do outro. Um cliente chega à procura de livros de avicultura. Tudo normal. Quando lhe digo que não temos nada, ele exclama: "AH! ESTÃO AQUI!", pegando rapidamente num livro de vinicultura. Expliquei-lhe que aquele livro não era de avicultura. Ele depois de ler a lombada três vez aquiesceu. É o que dá, fala-se em algo relacionado com vinho e fica tudo maluco. Quando se convenceu que não havia mesmo nada, diz: "Pronto, já que não há nada, podia me arranjar alguns livros sobre cadeiras eléctricas?". Esta é nova, pensei eu. O cliente continuou "ah, o meu irmão, ele não sabe bem o que fazer com os pintos, então está a pensar em montar umas cadeiras eléctricas, não sei bem para quê". Para fritar os pintos, para que é que havia de ser? Um belo churrasco. E fez me deslocar até ao balcão, para pesquisar no sistema cadeiras eléctricas. Nada. Absolutamente nada. Até que arranjei coragem para perguntar ao senhor se ele queria livros sobre CHOcadeiras eléctricas. Nem mais. "Ah, eu bem me parecia que era um bocado estranho, mas como foi o meu irmão que pediu.". Tenho que admitir que, por momentos, a ideia de dois irmãos malévolos a fritar pintos em cadeiras eléctricas me passou pela mente. E que belo espectáculo seria.
Já aqui abordei a problemática da saudação. E eis que os clientes não param de arranjar maneiras de me tentar surpreender. Quando pensei que a única maneira de troçarem de mim era responder sempre de maneira diferente à minha saudação trocando a altura do dia, eis que a inovação chegou. Não se pode parar o progresso. Ao meu Boa Tarde, respondiam sempre com Boa Noite ou Bom Dia. Mas eis que agora, sem aviso prévio, encontraram uma nova maneira de gozar. Respondem com a mesma altura do dia, mas com uma nuance: ao meu boa tarde respondem: "BOAS TARDES", ao meu boa noite, respondem: "BOAS NOITES". A criatividade dos clientes não pára de me surpreender. Temo com o que possam inventar a seguir.
Um cliente que merecia o prémio Altruísta 2004, é o cliente que anda demoradamente a escolher um livro, enquanto distrai a cônjuge. Finalmente escolhe um e, sorrateiramente, aproxima-se do balcão, assim como quem não quer a coisa. Quando chega o momento de efectuar o pagamento, alcança um cartão. Quando me entrega, reparo, por acaso, no nome do cartão. Um nome feminino, vamos supor, Maria. Curioso, pensei eu. Primeiro ele age de maneira sub-reptícia, e agora isto. Paga, pede me para embrulhar e para guardar no saco. Em seguida, já de saco em punho dirige-se para a companheira. Surpreende-a com um toque nas costas, e oferece-lhe o saco. Ela abre o saco, rasga o papel e exclama de felicidade: “OH!!! OBRIGADO! ÉS O MELHOR! NÃO TINHAS QUE GASTAR DINHEIRO NISTO! OH, OBRIGADO!”. E responde ele: “De nada Maria, não custa nada”. Claro, com o cartão dela não custa nada. E olha embaraçado para o balcão. Isto sim é um bom parceiro. Oferece prendas à rapariga com o cartão dela. Brilhante.
Falando em sub-reptício, aconteceu uma situação curiosa num dos dias que passou. Um senhor de meia-idade entregou me um livro e pediu que embrulhasse. Parecia bastante apressado. Bom, lá fui eu calmamente buscar o papel e iniciar o moroso e delicado processo de embrulho. Sei que há de chegar o dia em que digo ao cliente: “aqui tem o seu embrulho” e ele responde-me: “desculpe, isso não é um embrulho, é um ornitorringo de Origami”. Sim, tenho assim tanto jeito. Quando pouso o papel na mesa, e vejo o cair, como se de uma folha caída de Outono se tratasse, exclama o senhor: “RAPIDO RAPIDO! ESCONDA O LIVRO, ESCONDA-SE! VÁ BAIXE-SE RAPIDO RAPIDO! VA-LA HOMEM! AH, PORRA, QUE ELA VAI VER!”. O homem estava quase a saltar para trás do balcão, tipo Western, e mergulhar comigo para a mulher não o ver. Ele estava exaltadíssimo, quase a empurrar-me para baixo. Para a próxima já sabe cliente, traga os utensílios de camuflagem e aí já embrulhamos tudo calmamente, sem sobressaltos. Mais um bocado e o senhor tinha um enfarte. E aviso já que eu não lhe fazia respiração boca-a-boca.

quinta-feira, agosto 26, 2004

Só Para Adultos

O nosso balcão, local onde efectuamos o nosso extenuante trabalho, encontra-se por vezes repleto de pequenos livros. Livros com dizeres, cartas de Tarot, roteiros turísticos, enfim, de tudo um pouco. E, ultimamente, o balcão está povoado por pequenos livros de cariz, digamos, erótico, a roçar por vezes o deboche pornográfico. Como tal, estes livrinhos chamam várias vezes a atenção dos transeuntes. Temos, por exemplo, as crianças. Estas pegam nos livros e riem às escondidas, mostrando aos amigos. Claros, quando os pais os apanham, acontecem duas situações distintas. A mais normal acontece quando os pais, chocados, repreendem fortemente as crianças, lançando-nos imediatamente um olhar de reprovação. A outra situação, muito menos usual mas bastante mais saudável: os pais encorajam os filhos. “É pá filho, essa é toda boa, é bem, é bem…” ou “Eh lá! Tens bom gosto puto, boa, o que é que há mais aí?”. Sendo um estabelecimento que encara a vida com o espírito aberto, temos também livros no balcão para orientações sexuais alternativas. Que têm bastante sucesso, diga-se de passagem. Uma situação caricata e também frequente é o de homens, deleitando os olhos nas desnudas mulheres, abrirem mais um livro na esperança de vislumbrarem mais qualquer coisa, e deparam-se inesperadamente com dois machos latinos, bem peludos, em poses pouco ortodoxas. Ao olhar de espanto segue-se um intenso olhar de incerteza, que depois descamba num olhar de arrependimento profundo. No que a luxúria os meteu. Outro caso é o da rapariga que via o livro dos machos latinos meia escondida, e ao reparar que estava a ser observada por várias pessoas, incluindo eu, deixou cair o livro em cima do balcão, atrapalhada, voltando a pegar nele e perguntando de forma embaraçada: “Er, ah, hm, desculpe, tem, er, como é que se chama? Isto, qual é o título? Ah, obrigado.” E saiu porta fora, para nunca mais voltar. Os homens que procedem às entregas de livros também acham os livros do balcão bastante interessantes, parando quase sempre para dar uma olhadela. Ainda hoje, um cliente teve a ver os livros cuidadosamente, enquanto inquiria sobre os mais variados títulos. Ao finalizar as perguntas e a conversa, enquanto via o livro 100 Male Nudes, disparou: “MAS, PORQUE É QUE SÓ TEM HOMENS EM POSIÇÕESS ESTRANHAS?”. E lá foi ele, intrigado. Estes livros também afectam casais, em especial homens casados. É usual assistirmos a maridos tirarem atrapalhadamente os cartões da carteira enquanto não conseguem tirar os olhos dos livros. Com os poucos neurónios que lhes sobra para pensar, passam o cartão à mulher, dizendo “paga, paga. Paga tu, paga…” enquanto se viram de costas e começam a folhear rapidamente o livro, na ânsia de conseguirem devorar tudo o que puderem naquele curto espaço de tempo. Infelizmente ainda nenhum foi apanhado.
Os clientes que compram livros que envolvem algum tipo de pornografia, erotismo ou carácter sexual de alguma maneira, exibem sempre comportamentos estranhos e variados. Encontramos clientes que não abrem a boca, nem sequer para um boa tarde (sei que é habito, mas nestes casos é constante) e agem como se estivessem numa espécie de encontro entre agentes secretos. Dão o livro sem olharem, agem sempre tentando dissimular o acto de compra. O livro é sempre colocado no balcão com a capa para baixo, tentando disfarçar. Claro, quando a contracapa é composta por dois jovens italianos em poses duvidosas, não há muito por onde fugir. E há algo de curioso em ver clientes habituais, normalmente bastante soturnos e com postura bastante rígida, comprarem um livro como “Fantasias Eróticas”. E aquela saudosa idosa, que levou o livro “Sexo Fantástico”. Bons momentos. Outros, no entanto, ostentam alto a sua escolha literária. Exibem o livro sem qualquer tipo de falso pudor. E muitas vezes até metem conversa devido ao livro. Um caso recente foi o do casal que comprava o “Kamasutra para o homem” e deseja também a sua versão no feminino. E o cliente, não parava de provocar a sua companheira, sempre tendo a sua sogra e os livros de teor sexual em mente. Ela não estava nada divertida. Ao explicar-lhe que o livro que queriam não estava disponível, diz o cliente: “Que pena, não levas nada hoje!”. Que belo ambiente que se vivia ali. Depois, ao pagar, pediram-me para embrulhar um livro sobre sonhos para a sogra. Quando peguei no Kamasutra para colocar no saco, diz o cliente: “Não, esse não é para embrulhar! É MESMO PARA AGORA! EHEHEHE”. Que bonito. Não sujem é o chão da loja, nem nenhum livro, porque senão é uma chatice. E já agora deixem-me fugir. As coisas podiam ficar feias. Pensei em perguntar ao cliente se ele queria que eu embrulhasse a cabeça da sua companheira, algo que, na minha singela opinião, poderia melhorar e muito a sua noite. Isso sim, merecia ser embrulhado. Como provavelmente iria ser mal entendido, remeti-me ao meu habitual silêncio.
Ainda outro tipo de clientes parece vir furioso quando vem pagar ou pedir o livro. Ao chegar ao balcão, uma senhora pergunta: “Tem o Kamasutra lésbico?”. E aí pára e olha directamente para mim, com um olhar enfurecido, como se esperando que eu me descaísse e soltasse uma gargalhada, um riso ou apenas sorrisse. Qual leoa à espera que a presa esteja desprotegida, ela olhava carrancuda para mim, à espera que a mais pequena distracção minha a pusesse nas suas garras. Mas, mantive-me firme.
A nossa zona deste tipo de livros está ali, pronta para ser vista e usada. Como dizia um estimado cliente nosso, já de avançada idade, quando inquirido sobre se desejava ou não fazer uma encomenda: “Encomenda? Não! Os livros são como as mulheres. Gosto de os agarrar, tocar e mexer bem antes de comprar!”
E mais não digo.

quarta-feira, agosto 25, 2004

A loucura

A loucura voltou. Não, não estou a falar do regresso dos Ídolos ou mesmo da Quinta Dos Famosos. O livreiro está de volta depois de um mais que merecido interregno na sua actividade. Por falar em Quinta dos Famosos adivinha-se mais um sucesso da TVI. Penso que o público está ansioso de ver uma vaca ordenhar a Elsa Raposo ou uma ovelha tosquiar José Castelo Branco. Será que sairão crónicas literárias como as vistas após os Big Brother? A ver vamos, mas teme-se o pior. Sinto me tentado a proibir o ensino da leitura aos meus descendentes para não haver o risco de lerem tais livros. Voltando ao mundo literário que é bastante mais interessante, uma aparente calma apoderou-se da loja. Não sei se será o fim de Agosto, o início da época futebolística de alguns clubes (o Glorioso ainda não começou, mas tenho tido uns pesadelos estranhos com jogos do SLB, mas quando começar tenho fé que vai ser bom) ou a continuação do bom tempo, apesar dos avisos em contrário. Mas, para bem da humanidade, há sempre aqueles que lutam contra a corrente, que teimam em marcar a diferença. E é esses, que vão da lei da morte se libertando, que vou falar em seguida.
Porque é que as pessoas teimam em contrariar o que eu digo? Em não confiar na minha palavra? Terei assim um ar de mentiroso tão grande? Se eu digo que não temos o livro, é porque não temos. Ponto final. Há necessidade de dizer: “Ah, então deixe estar que eu vou procurar.”? Dará assim tanto prazer contrariar-me? Qual será a parte de “Não temos esse livro, de momento está esgotado” que as pessoas não entendem? Bem sei que eu estou a juntar mais que duas letras, que não falo meramente com monossílabos, o que para uma boa fatia da população revela-se delicado, mas, que diabo, pensei que fosse mais fácil compreender-me! Muitas vezes, os clientes olham para mim como se tivessem a ouvir um Servo-Croata a falar. Parece que apanham uma ou duas palavras que lhes soa familiar, mas o resto parece resumir-se apenas a um zumbido. Ou outros, enquanto discurso, parecem estar a pensar noutros assuntos. Enquanto olha para mim e acena a cabeça enquanto falo, imagino o cliente a pensar: “hmmmmm. Cores… luz… Livro. Li----vro…”.
Depois temos a intima relação cartão de crédito – dono. O cartão de crédito, como bom animal de estimação, está sempre à mão para resolver os problemas. E o seu dono, implacavelmente, não tem qualquer pejo em passá-lo para a mão do primeiro que lhe oferecer algo. No entanto existem donos possessivos, donos que não suportam ver o seu cartãozinho nas mãos de qualquer um. Quando passo o cartão para finalizar a venda, geralmente coloco ao lado da máquina, para depois entregá-lo juntamente com os talões. É uma prática comum. Mas tentem explicar isso a certas pessoas. Mas passo o cartão e coloco-o no seu sítio de repouso habitual, solta-se logo um “DÊ ME O CARTÃO!”, ou “PODIA ME DAR O MEU CARTÃO?”. Os tons irados chegam por vezes a assustar-me. Outros, esticam-se rapidamente e resgatam o cartão das garras da máquina, apressando-se a guardá-lo de novo na carteira. Não vá a máquina fazer mal ao cartão. Também temos casos em que os clientes atiram o cartão para cima da mesa, como quem chega à tasca do Ti António e quer um tinto do garrafão e atira para cima do balcão uma nota de 5€ cheia de terra da horta. É uma tremenda demonstração de poder e classe o acto de atirar com enorme desprezo o cartão para cima da mesa, apesar de eu estender a mão para o acolher. Estou à espera ansiosamente que algum cliente mais atencioso o atire para o chão para eu apanhar. Por vezes, os cartões não passam. É normal. Enquanto alguns clientes ficam amedrontados, como se tivesses algo a esconder ou apenas fruto de alguma vergonha, outros ficam furiosos: “NÃO PASSA? MAIS AINDA AGORA PASSOU NA OUTRA LOJA! ISSO DEVE ESTAR ESTRAGADO!”. E há sempre insinuações de que nós estamos a fazer algo errado, como não podia deixar de ser. Tal como nas pesquisas, há sempre a desconfiança relativamente aos nossos procedimentos. Das duas uma, ou não estamos a fazer bem ou não queremos fazer bem.
Uma situação bem elucidativa do que nós passamos aconteceu aqui, segunda-feira. Uma cliente chega-se ao balcão. Eu e o meu colega estávamos cada um no seu lado, junto aos computadores, ainda procurando livros para outros clientes. E a quem é que ela se dirige? A mim. Às vezes penso que existe um sinal da porta a dizer: EM CASO DE DÙVIDA OU NECESSIDADE RIDICULA E TREMENDAMENTE TRABALHOSA, DIRIJA-SE AO SENHOR DA ESQUERDA. Que sou eu. É (quase) sempre comigo. Agora que voltou das férias o nosso colega tenho que admitir que as coisas estão bastante mais equilibradas. Personagem para mim, personagem para ele. Parece me justo. Mas esta, esta calhou-me e de que maneira. Vinha acompanhada de um tipo de empecilho. Outra mulher, que não falava e não se mexia muito, dando poucos sinais de vida. Vim a saber que era a sua assistente. Queria livros de Psiquiatria. Qualquer um. Sobre qualquer coisa. Tipo: “Quero livros de psiquiatria. Qualquer um. Regressão? Tem? O Psico-Drama Menstrual Nas Raparigas Vietnamitas? Tem? E a Esquizofrenia Paranóico-Induzida? Não tem? Que é que tem?”. Eu lá expliquei à senhora onde se encontravam os livros que queria, respondendo ela um vigoroso “ENTÃO MOSTRE ME!”. Levei-a ao local onde podemos encontrar normalmente os livros da especialidade que procurar. Pelo caminho pediu me desculpa de falar pouco e ser pouco perceptível, pois segundo ela “Sai agora do dentistas, não consigo falar, estou toda anestesiada”. Isto para quem falou durante 5 minutos, não está nada mal. A anestesia, vim a comprovar durante todo o encontro, afectou não a boca mas sim o cérebro. Ia lhe mostrando livros, tarefa que se veio a provar devera difícil visto não haver uma zona isolada para a Psiquiatria. Pensei lhe dizer uma piada “Pois, nós temos a psiquiatria misturada com o resto. Gostamos de misturar os malucos com o resto”. Acho que ela não iria achar piada, eu sou muito rebuscado. E cada livro que lhe apresentava, ela dizia “Não, não me interessa”. Ou “Não. Acha mesmo?”. Ou ainda: “Não, nada a ver, nadinha mesmo.”. Que desafio, pensei eu. De vez em quando encontrava algo que lhe pudesse encontrar. Folheava rapidamente e dizia: “Não, este é história, quero coisas científicas, não romances, não histórias”. Há que frisar que os livros que a senhora via eram relatos médicos de doenças e patologias. Romances, portanto. Até que, passados uns largos minutos, talvez resultado de um aparente recuo na anestesia, começou a encontrar livros que lhe interessavam. E começou a depositá-los em mim. Sim, porque o meu cartão de identificação não diz Livreiro, mas sim carrinho de compras. Metam-me 1€ na boca e lá vou eu. E tirava da prateleira e punha nas minhas mãos. Quando já estava perto da altura do meu queixo, disse: “Não se preocupe, a minha assistente já carrega isso.” Fez um gesto como se estalasse os dedos, mas não saiu nenhum som. Novamente a anestesia. Chamou a assistente, como se estivesse a chamar um escravo, e lá veio ela. Depois, ao ver o interesse da senhora, comecei a sugerir livros e a perguntar outras áreas de interesse. Ela não se continha. Tudo o que lhe mostrava levava. De repente parou, perguntando-me se podia guardar os livros, porque não usava cartões Multibanco, e achava que não tinha trazido dinheiro suficiente. Aceitei, reticente… Enquanto ia acumulando livros, ia discursando: “Sabe, é que eu compro tudo de psiquiatria. E não só. Gasto imenso dinheiro em livros. Até compro livros repetidos à vezes. Gasto tanto dinheiro.” E repetia incessantemente isto. Por vezes divagava sobre o seu interessa na psiquiatria, pelos vistos uma autodidacta. E o seu objecto de estudo podia ser ela mesma. É uma vantagem. Quando chegou a altura de pagar, voltou a frisar o facto de não possuir cartões, e que provavelmente não tinha dinheiro. Depois de lhe indicar o valor, tirou da carteira dois maços de notas de 20€ e um de 50€. E não tinha dinheiro. Ficou agradavelmente surpreendida com o valor final, pois, segundo ela, “PENSAVA QUE IA SER MAIS CARO QUE O DENTISTA!”. E a anestesia, pelos vistos, era da boa. E barata. A assistente esperava muda atrás dela. Depois de pagar, solicitou a factura, com o propósito de: “NÃO ME ESQUECER DO QUE COMPRO, PORQUE JÁ COMPREI MUITAS VEZES LIVROS REPETIDOS!!!”. Pensámos que seria o fim da odisseia, mas não. Pediu para pesquisarmos mais temas. E em cada tema, centenas de livros. E queria tudo. Conhecia poucos autores. Mas queria saber todos os que tínhamos e o que tratavam. Mal lhe dizia um tema, perguntava: “TEM? DO QUE É QUE TRATA?” Ainda nem tinha sequer acabado de clicar sobre o título do livro, já ela disparava rapidamente a questão. Quando ficou satisfeita, lá foi, não sem antes levar as listas dos livros impressas, para continuar a sua demanda.
Quando a anestesia passar e vir quanto gastou em livros talvez vá precisar mesmo de um psiquiatra.

sábado, agosto 21, 2004

Yin Yang

A vida é feita de contrastes. E como tal, os clientes não fogem à regra. Para cada cliente existe sempre o seu inverso, o seu gémeo maligno. Para cada Mr Hide um Mr. Jekkyl. No fim do dia, fica a sensação de equilíbrio natural. Este é um facto que vamos constatando e comprovando dia após dia, cliente após cliente.
Numa das noites que passou, fizemos o nosso habitual ritual de fecho de loja. Eu sei que pode ser uma desilusão, mas este não envolve sangue de qualquer tipo nem cânticos em latim. Depois de encostarmos as portas da loja, para indicar que já estávamos fechados, estávamos a fazer as contas da caixa. Já passava bem das 23. Como já é costume, alguém abriu a porta. Já estamos habituados. Levanto os olhos lentamente da caixa e dirijo-os calmamente até ver a porta. Aí vejo a cabeça de uma mulher com um ar irritante, demasiado irritante. Ao ver que tinha a nossa atenção pergunta: “Estão fechados?”. Nós nem pensámos no que responder. Respondemos afirmativamente, como não podia deixar de ser. Já passava das 2310, já estávamos prontos para ir. Ao ouvir a nossa resposta, a mulher sai disparada para fora da loja, deixando num ar um simpático e correcto “TAO FECHADOS?! ENTÃO FECHEM OLHA!”. O cliente tem sempre razão. Parece me óbvio que duas portas fechadas, mesmo não estando trancadas, umas luzes apagadas, não signifiquem que a loja está fechada. Como é que alguém poderia sequer pensar isso? Eu bem disse que era melhor termos colocado os cadeados, correntes, termos ligado o alarme e colocado a linha amarela DO NOT CROSS. Assim é que está fechado. Portas fechadas? Luz apagada? Só mesmo alguém com um conhecimento avançado sobre estabelecimentos comerciais é que poderia descodificar estes sinais como significando que a loja está fechada. Aproveito para assinalar que existem muitos clientes que nem sequer perguntam nada, entram e começam a ver livros, apesar de estar fechado. E normalmente, demoram sempre muito. É uma situação embaraçosa, porque o cliente muitas vezes olha para nós parecendo pensar: “Estão com pressa? Querem ir embora? Ai sim? Então vão ver… Onde é que está o livro do Cláudio Ramos? …”. E nós, não podendo fazer nada, ficamos a olhar para o cliente, com um sorriso forçado… Por vezes olho para o PHAIDON ATLAS OF CONTEMPORARY ARCHITECTURE e penso como seria libertador ver aquele livro de 150€ e muitos quilos descer suavemente sobre a cabeça oca de alguns clientes. Enfim, há que ter respeito. Pelo livro claro, porque são 150€ e é uma obra com qualidade. E depois, temos o oposto desta situação. Hoje, chegada a hora de abrir a loja, segui o procedimento habitual, que termina na abertura das portas. Está tudo pronto, tudo no sítio, luzes ligada. Só falta abrir a porta. Encaminho-me para lá, olhando discretamente os clientes que se vão aproximando da montra. Abro a porta… A loja está oficialmente aberta. Ou assim pensava eu. Volto para o balcão e lá fico, qual espantalho (e olhem que espantalho é um termo bem apropriado, depois explico), à espera que algo aconteça. E chega o primeiro cliente do dia. Mas, ao invés de entrar, fica parado na porta. Olha para a loja. Olha novamente. E aí pergunta: “ESTÂO ABERTOS?”. Já passava da hora de abertura, estão a luzes acesas e a porta aberta. O que o leva este ser perturbado a pensar que poderíamos estar abertos? Mas, atenção. Tenham medo. Muito medo. Não foi o único. Logo a seguir, aparece outro, exactamente com a mesma dúvida. Chamem me paranóico, mas cheira me a conspiração.
Os contrastes continuam ao longo do dia. Já abordei aqui a problemática do acto de pedir livros. Os clientes, como disse em ocasiões anteriores, raramente sabem o que querem. Nem autor, nem editora, e muitas vezes nem título. Às vezes só uma cor. Mas isso fica para mais tarde. Muitas vezes nem isso, só a frase: “não sei o que quero nem de quem é, nem sei bem o que é.”. Esteve aqui neste singelo espaço uma senhora, de cigarro em riste, que desejava um livro. E o que é que ela sabia do livro? Algo que torna muito fácil a sua pesquisa: sabia que tinha um poema que começava com “QUANDO MORRER QUERO PASSAR AS MÃOS PELO TEU PEITO”. E, pelo aspecto da coisa, o peito que se prepare, porque não deve faltar muito. Aqueles cigarros, um atrás do outro, não são um bom auguro. Até tive que trazer um cinzeiro para a senhora. A fumar na loja, até alguns clientes estavam incomodados. E sabem com são os clientes. Se está frio é uma vergonha porque o ar condicionado está muito forte e faz mal. Se está calor é vergonhoso como é que uma loja não tem os equipamentos em condições. Então com fumo, já imagina... Voltando à cliente, uma colega disse-me que suspeita que a senhora tenha alguma relação com o outro lado, com o oculto. Segundo a colega, ela pressente coisas… E até pode agoirar. Por falar nisso, está a dar-me uma dor no peito. E, como se esperava, a busca foi infrutífera. É como querer um filme só sabendo uma das falas. Pelo menos não se queixou (muito). Fosse outro cliente e haveria barraca. Fez a funcionária abrir os livros todos de Eugénio de Andrade, e apelidou carinhosamente a Florbela Espanca de parva. E a sorte da colega é que a senhora não comprou nada, senão tinha que lhe carregar os livros até à vassoura. Depois, temos o oposto. . Enquanto atendia uma cliente, entra um jovem alourado, com um ar de quem passou as últimas horas prostrado ao sol. Vinha com um andar tresloucado, e um ar levemente alucinado. Cambaleou lestamente para o balcão e apontou o indicador para mim e disse: “OH DESCULPE FAZ FAVOR”. Não sei se ele reparou ou não que estava ocupado, mas isso pouco interessa. Pelo menos para ele. Quando terminei, dirigi-me ao jovem. Depois de tudo o que passei, já espero tudo. Mas nada me podia preparar para isto. Pergunta o jovem: “COMO É QUE SE CHAMA O LIVRO O MEU PIPI? ERHN, AH, ER, COMO SE CHAMA? NÃO, QUANTO CUSTA? QUER DIZER, TEM?”. Eu fiquei sem palavras, não sabia bem a que parte responder. Um curto e eficaz: “pode repetir?” foi o que consegui dizer. Já passei por muitas situações estranhas. Talvez demasiadas. Mas nada como isto. Clientes que não sabem nada? Normal. Agora um cliente que me pergunta o nome do livro e ao mesmo tempo me dá a resposta, nunca antes visto. Elucidei o rapaz, dizendo lhe que não tínhamos esse livro à bastante tempo. E lá saiu ele, tresloucado como entrou.
E temos o caso das tias. E há tias de extremos. Temos aquelas tipo tia repenicada e finíssima, que nem sequer olha para nós, atira o dinheiro ou o American Express para cima do balcão enquanto ajeita o cabelo. Sempre socialmente correcta. Um destes casos é o da tia já famosa aqui no estabelecimento, pelas suas várias visitas. Da ultima vez que cá veio, queria guias de conversação, então levou de alemão e inglês. Ao sair, o alarme tocou. Ficou nervosíssima: “Ai que vergonha, que horror, odeio isto, não tenho nada, tire lá isso!”. Foi verificar os livros, nenhum tinha alarme. Expliquei isso à senhora, mas ela, não contente, saiu da loja sem os livros, pedindo que fosse eu a levar lhe os livros lá for, para provar que não tinha roubado nada. Sem mais opções, acedi ao seu pedido. Quando pensei que nos tínhamos visto livres dela, eis que ela volta furiosa. Então, segundo ela, os guias de conversação estavam errados. Eram as línguas erradas, não queria alemão-português, mas sim português-alemão. E claro, de quem é a culpa? Minha. Quando a senhora pediu os livros, eu indiquei-lhe as várias colecções, e foi ela mesmo que escolhe e os tirou. Eu apenas assisti. Mas a culpa é minha, que ninguém duvide! Depois, ao fazer a troca verifiquei que um dos livros era mais caro. A senhora ia explodindo, e ainda por cima, veja bem, “TOU COM UMA ENXAQUÊCA HO-RRO-RO-SA! TOU MESMO MAL, AI! E É SEMPRE A MESMA COISA, ODEIO VIR AQUI ODEIO ESTA LOJA! E VEJA LÁ SE ISTO NÂO TOCA DESTA VEZ!” Amorosa não era? Só o tom da sua voz seria suficiente para mais um post, agora juntem as parvoíces que ela diz, é o jackpot. Como oposto, temos as tias liberais. Ainda há poucos dias tivemos uma, que levou o PHAIDON ATLAS OF CONTEMPORARY ARCHITECTURE. Quando se aproximou notámos um leve aroma a alcoól, mas pensámos que pudesse ser um acaso. Mas não era. O discurso da senhora era impar: “MAS QUE LIVRO, ISTO É UM VERDADEIRO POCKET BOOK” dizia ela lentamente, enquanto enrolava a língua, qual Presidente da Junta, “A MINHA FILHA ATÉ COXEIA COM ISTO…” E lá pagou e saiu, cambaleante. Ao passar pela porta, o alarme tocou. Lá voltou ela “ELÁ QUE É ISTO? QUE SE PASSOU? ISTO TOCOU FOI?” E nós explicámos e pedimos desculpa pelo sucedido. Mas não encontrávamos o alarme. A minha colega perguntou educadamente se a senhora ia a mais algum lado, porque seria provável que o alarme voltasse a tocar. A senhora respondeu: “REALMENTE JÁ VIU? SERIA UMA CHATICE, EU IR A UMA LOJA, E ESTA MERDA COMEÇAR A TOCAR…” E depois despediu-se simpaticamente e educadamente e lá foi ela, feliz da vida.
Portanto já podem ver. Por cada cliente simpático e atencioso, aparece exactamente o oposto. Sempre que atendo uma velhinha simpática, tremo de medo com a visão do que poderá aí vir. Protejam-me!

sexta-feira, agosto 20, 2004

A reclamação

Nós, os livreiros, sendo pessoas que lidamos diariamente com o público em geral é perfeitamente natural que, mais cedo ou mais tarde, sejamos confrontados com uma reclamação. Como se pode constatar nos meus posts anteriores, os clientes são sempre educadíssimos, cultos, bem formados e informados, o que nos leva a uma simples conclusão: se algo corre mal a culpa é inevitavelmente do funcionário. E claro, se temos o azar de apanhar pela frente um cliente no seu período menstrual cerebral, vamos ter problemas. Deve ser bastante libertador e terapêutico despejar as frustrações mundanas num pobre livreiro. A sua mulher bate-lhe? É gozado no emprego? Não está contente com a sua performance sexual? Não se preocupe, vá à livraria e desanque o livreiro, verá que se sente melhor. Para quê gastar dinheiro em psicólogos e psiquiatras, em ciências ocultas? Descarregue no livreiro, ele é indefeso, ganha mal e não tem poder político. É como o AMUKINA, faz todo o sentido.
Certa tarde solarenga de Verão um cliente entra na livraria com o propósito de adquirir dois livros. Obviamente que nenhum dos dois estava disponível, como não podia deixar de ser. Pergunta a um colega, que desde logo inicia a pesquisa no computador. Uma pesquisa demorada. Demasiado demorada para o tempo cronometrado do cliente. Ao verificar que não dispúnhamos de qualquer exemplar, sugeriu ao senhor que encomendasse os livros em questão. Então, outro colega encarrega-se de ligar para as livrarias para confirmar a existência dos livros. Um processo igualmente moroso, novamente do desagrado do estimado cliente. Depois de confimarem a existência dos livros e quando iam prosseguir com o procedimento habitual em caso de encomenda, verificaram que o senhor não estava satisfeito e queria que os livros, que vinham de sítios diferentes, fossem entregues numa outra livraria. Portanto, vamos resumir: Pede na livraria 1 livros que vem da livraria 2 e 3 para serem entregues na livraria 4. Simples não é? Não. Educadamente, explicaram ao senhor que, pelas mais variadas razões, não era prudente fazer a encomenda desta forma. Seria, sem dúvida, mais simples se o cliente pedisse os livros na livraria onde queria que eles fossem entregues. Isto porque, nas palavras do sábio livreiro mestre, "entre prestar um mau serviço ou não prestar o serviço, mais vale não prestar o serviço". O senhor ficou aparentemente convencido.
Mas, eis que, para surpresa geral aparece uns dias depois uma reclamação desse prezado cliente. Nesta verdadeira obra-prima das reclamações, qual Saramago birrento, o senhor queixava-se de tudo. Só o ar condicionado e o brilhante soalho é que saíram incólumes desta carta de acusação. Vamos por partes: Primeiro, começa por explicar que existem várias razões objectivas nas quais o preço e qualidade da oferta o levariam a preferir a concorrência, apelidando carinhosamente o nosso serviço de manifestamente mau. O senhor queixava-se do tempo que o funcionário demorou a fazer a pesquisa, apelidando a mesmo de penosa. Como sabem, a velocidade de uma ligação Internet ou mesmo intranet está dependente dos empregados. São os empregados que determinam a velocidade da ligação dando à manivela. Como o tempo foi muito demorado, conclui-se facilmente que o responsável é o empregado. Realmente é inadmissível que ele tenha dado tão devagar à manivela. A sua formação a nível físico é indubitavelmente precária, algo incompreensível numa livraria. Em seguida, recalcitrou sobre o facto de o telefonema para as outras lojas ter sido longo. Temos que admitir que o senhor tem toda a razão. È do conhecimento geral que as outras lojas não tem clientes para atender, nem livros para arrumar. Estão o dia todo sentados junto ao telefone, quais adolescentes excitadas esperando o telefonema do dia seguinte, à espera de uma chamada nossa para encomendarmos os livros. Logo, se demora mais que 15 segundos, estamos a prestar um serviço péssimo. Há que protestar. Depois prosseguiu a sua delirante cavalgada literária pela planície das reclamações, apontando o facto de lhe te sido dito que era inexequível o tipo de encomenda que pretendia. Claro que retratou tudo quanto se passou, não distorceu discursos nem sentidos. O cliente retratou ipsis verbis a conversa. Aliás, citava mesmo a conversa, com a precisão de um relógio suíço, Só faltou dizer que os livros eram levados por elefantes voadores. Terminou esta parte dizendo que estava habituado aos frequentes erros da base de dados. Nós também. Chegamos aqui ao cerne da questão: porque é que os clientes deturpam por vezes a verdade? Com que proveito? Esta reclamação atingia alguém que não merece de forma alguma o que foi escrito, e sobretudo como foi escrito. Mas, felizmente e como já se sabia, a pessoa visada numa parte da reclamação é bastante superior a tudo isto e a sua resposta foi eficaz e tremendamente esclarecedora. Eu votava nele para Presidente da Republica. Onde é que ponho a cruz?
Continuando na reclamação, o senhor lá disse que os 150€ mensais que gastava em livros iriam ser, muito provavelmente, desviados para a concorrência. Realmente seria uma pena. Os funcionários em geral não fugiram às criticas mordazes, insinuando o senhor que nós não percebemos nada disto. Não satisfeito com o atendimento, ficou com algumas dúvidas quanto à sua encomenda. E então decidiu ser ele a ligar para as livrarias a saber da disponibilidade dos livros. Como sempre, encontrou facilmente motivos para se queixar. Primeiro, a pessoa que atendeu não sabia de livros nenhum, aliás, dificilmente se percebia que trabalhava numa livraria. E mais, falava de forma totalmente imperceptível. Aí o cliente não teve outra opção senão pedir que a pessoa passasse o telefone a alguém para que pudesse compreender e ser compreendido. Ele só queria afecto, não há que censurá-lo. Para terminar, não posso deixar de referir uma sugestão do cliente. Como, segundo ele, os funcionários não tem o conhecimento mínimo exigido numa livraria, e muitas vezes os clientes necessitam de luzes para os guiar no árduo caminho da literatura, há que inovar. Então a proposta do senhor era a seguinte: os livros teriam etiquetas com uma opinião dos funcionários que já leram o livro. Portanto, eu passaria de livreiro a leitor. Como nós não fazemos nada o dia todo, de acordo com o senhor, pelo menos íamos lendo e escrevendo a nossa opinião sobre os livros. Ora isto traria um grande problema. Como sabem, um livro torna-se algo muito pessoal, muitas vezes intransmissível. A minha opinião sobre um livro dificilmente será igual à de outra pessoa. Muito provavelmente não poderíamos ser totalmente sinceros, porque existem aqui livros que são indescritíveis. Não me peçam para opinar sobre o livro do Pauleta. Não que esteja mal escrito. Mas é do Pauleta.
Termina a sua epopeia referindo que desconhece os hábitos literários dos funcionários, ou se as escolha de empregados que possuam esses hábitos são vectores estratégicos de desenvolvimento. Mais uma vez, o senhor mostrou um total domínio da realidade. Na entrevista de emprego perguntaram-me de imediato se sabia a quantos graus deve ser servido vinho verde de 1985, quantas luas tem Júpiter, onde é que se encontra o fluido dos travões de um carro, ou ainda quantos bits são um byte. Livros? Para quê? Nós não trabalhamos com livros, logo um conhecimento sobre livros não interessa. Além disso, como não passamos 8 horas dentro da livraria, é normal que mesmo que não saibamos nada, nunca aprendamos nada. Tenho que confessar que passo a maior parte do tempo de olhos bem fechados que é para me precaver, não vá eu acidentalmente decorar o título de um ou dois livros, seria uma vergonha. Que faria o cliente se eu soubesse o que ele queria? Se mostrasse um pouco de cultura? A vida seria tão enfadonha. Como diz o nosso mestre, grande parte das pessoas pensam que nós temos a 3ª classe mal tirada e à noite, tal a forma como nos tratam. Aposto que há alguns clientes que ficam surpreendidos quando verificam que sabemos ler.
E finda, recomendando alguns títulos que comercializamos nas áreas do atendimento, prestação de serviço, competitividade organizacional. Isto sim é um cliente. Recomenda-nos livros a nós. Somos mesmo pequenos, quando é o cliente que nos recomenda livros. Enfim, resta subjugarmo-nos à magnificência e sapiência deste ser que nos deu a honra da sua visita.
Volte sempre, e um bem-haja!

quinta-feira, agosto 19, 2004

Malucos do Riso

Como devem saber, (a não ser que tenham vivido soterrados nalgum dos prédios devolutos em Lisboa durante os últimos meses) o Código Da Vinci tem sido o livro mais vendido dos últimos tempos, praticamente em todo o mundo. Tem mesmo sido um fenómeno de vendas, o que é bastante compreensível tendo em conta a qualidade e a polémica que envolve o livro. Logo, torna-se óbvio que o livro é uma presença mais que necessária em qualquer livraria. Este livro é sinónimo de dinheiro. Muito dinheiro. Podemos encontrar o livro nos mais variados sítios: na montra, na entrada, nas novidades, debaixo da mesa, em frente ao balcão em dois bonitos montes a iniciar uma espiral, com quase 1 metro de altura. Ainda assim, aparecem clientes na loja à procura do livro como se procurassem o significado da existência humana. Entram na loja, e olham à volta várias vezes, olham para as prateleiras e nada. Sem sucesso na sua demanda, dirigem-se ao balcão. Ao chegarem, perguntam "Tem o Código Da Vinci?" com um ar comprometido, como se tivessem à procura de algo secreto e que dificilmente seria encontrado. Claro, há sempre aqueles clientes que ignoram por completo a existência das estantes ou das montras e dirigem-se logo a nós. Existem também clientes que à frase "Tem o Código Da Vinci?" acrescentam coisas como: "Conhece?", "Já ouviu falar, por acaso?" ou ainda "Sei que pode parecer estranho, mas tem este livro?" e claro o já clássico "Não tem o Código Da Vinci pois não?". Outros clientes presumem correctamente que temos o livro, por isso passam logo para a pergunta sobre a sua localização: "Onde é que está o Código Da Vinci?". É uma pergunta legítima. Ou seria, se não estivessem a menos de 10cm de duas pilhas de livros com mais de 50cm de altura. E é neste momento, nesta fracção de segundos, que tudo acontece. Entramos na zona onde o tempo curva e as propriedades pelas quais nos regemos no dia-a-dia deixam de contar. Quem é que foi a pessoa dotada de um Q.I. altíssimo, digno apenas dos predestinados, que inventou uma frase tão usada pelos clientes e, pior, quem é que foi o génio transcendente que achou que tinha piada? Ao confrontar o cliente com o facto inverosímil de que tem cerca de 100 cópias do livro que procura a menos de 10cm de si, este, diversas, demasiadas vezes para ser coincidência, responde o seguinte: "AH POIS ESTÁ! SE FOSSE BICHO MORDIA! AHAHAHAHAHAH!" E riem, riem como loucos. Dizem a piada, e riem. Sozinhos, obviamente, porque eu fico sempre consternado quando esta situação acontece. Mas, há mais. Infelizmente há mais. Vendem-se por vezes 20 Código Da Vinci por dia. E imaginem ouvirem isto várias vezes por dia, sempre acompanhado do riso insuportável. E, como não podia deixar de ser, muitos clientes adquirem o livro tendo em vista oferecê-lo. Até aqui tudo bem, é um bom livro, não fosse o facto de haver sempre alguém que teve a mesmíssima ideia. Isto origina um número considerável de trocas. Quando solicitamos o talão para efectuar a troca as pessoas por vezes têm reacções tremendamente descabidas, chegando mesmo em casos extremos a ficarem visivelmente irritados com o pedido. Não entendo. Se não quisessem que a pessoa que recebe a prenda não soubesse o valor, não dessem presentes iguais. Além disso, quando há uma troca, a pessoa tem obrigatoriamente que saber o valor que pode utilizar nessa mesma troca. Voltando às prendas, quando me entregam o livro pergunto se é para oferta. Aqui aplica-se a lei de Murphy número 3 para os livreiros: A probabilidade de o livro ser para oferta é inversamente proporcional à nossa vontade de perguntar. Ou seja, se não perguntarmos é SEMPRE para oferta. Quando perguntamos, temos de lidar com os génios da comédia. E dizem os analistas que Portugal é um país triste a caminhar para a depressão. Quanto muito, e não sou nenhum analista (Graças a Deus, que a minha mãe tinha um desgosto), somos um país com a doença Bi-polar. Assim, quando cumpro o meu dever e pergunto se é para oferta, apagam-se as luzes, ficando apenas um ténue foco em cima do cliente. É a luz da ribalta. Aí, ele tem alguns segundos para brilhar. E tenta: "É para oferta é (pausa uns segundos) . PARA MIM! AHAHAHAHAH! PARA MIM!" . . . Palmas. Ou então: "NÃO!". E para aí. É a versão dramática, também muito apreciada pelo júri residente. Ainda: "NÃO, NÃO É OFERTA, É PARA EU LER.". Este tipo de esclarecimentos é sempre bem-vindo. Reina um medo nas nossas mentes perturbadas relativamente ao que os clientes vão fazer com os livros quando abandonam as nossas instalações. Deste modo, com a resposta do cliente, podemos dormir descansados.
O facto de o livro estar com desconto também leva a situações estranhas. Há sempre equívocos quanto ao preço. Não sabem se o preço marcado é já com ou sem desconto, ou quanto é o desconto. E depois de vendido, perguntam quase sempre se fizemos o descontinho. Apesar da resposta ser afirmativa, ficam muitas vezes na dúvida, consultando em seguida a factura, não vá o Diabo tecê-las e estarem a ser enganados por um livreiro mal formado.
E hoje, um cliente aproximou-se novamente da pilha, perguntou onde estava o livro. Ao ser lhe indicado o caminho para a luz, o cliente ficou surpreso, e em seguida inquiriu sobre o preço. A minha colega respondeu "16 e 16" ao que o cliente responde todo contente "32!!!!". Boa. Além de engraçado também é matemático e sabe contar, aplaudam por favor o artista convidado.
Já se sabe que eu tenho um amor tremendo pelo acto de embrulhar livros. Simplesmente não combinamos. Somos tipo Pinto da Costa e Del Neri, Camacho e Roger, Scolari e Baía. Uma cliente, embebida num espírito natalício precoce, decide oferecer 3 Código Da Vinci, mas em versão original, em inglês. Até aqui tudo bem, sempre entra mais dinheiro. Mas depois vem a temida resposta "sim" à enfadonha pergunta "é para oferta". E logo 3 livros. Quando acabo de cortar o papel e começo a embrulhar o primeiro livro, a senhora pede histericamente que pare. "AH, PARE! DEIXE ME FAZER DEDICATÓRIAS NOS LIVROS! PODE ESPERAR? NÃO ESTÀ CÀ NINGUEM!". Posso esperar, posso. Eles só me libertam e soltam a corrente que tenho no tornozelo às 23 horas. Por isso não se preocupe, esperar é a minha função, o meu modo de vida. E lá começou ela a fazer as dedicatórias, enquanto se ia rindo. Também é engraçadinha, isto cómicos não faltam. Quando finalmente terminou, deu me os livros para embrulhar. Embrulhei os livros com uma rapidez estonteante. E olhem que não ficaram nada mal. Quando me preparo para por os livros no saco, a senhora intervêm: "AHH! ESPERE! Como é que eu distingo qual é qual? Tem que desembrulhar!". E pronto, toca a desembrulhar. E tenho que admitir que, surpreendentemente, tenho bastante mais jeito para desembrulhar do que para embrulhar. Depois da cliente identificar e separar os livros, volto a embrulhá-los. Enquanto embrulhava, ela ia lendo as dedicatórias e rindo, virando levemente o livro para mim. Sinceramente não sei qual o objectivo da senhora, se queria que lesse e achasse o máximo, ou se queria que lesse só para me repreender. De qualquer das formas não lhe dei esse prazer. Com os livros devidamente identificados e embrulhados, lá seguiu ela o seu caminho, qual mãe natal fora de horas.
Agora está tudo calmo, mas sei que em breve assistirei a nova demonstração de talento do cliente português.

quarta-feira, agosto 18, 2004

Equívocos

Se porventura existe algum dogma do comerciante, seja ele de que ramo for, é que o cliente tem sempre razão. Quando lidamos com clientes portugueses, aí o termo razão é insignificante para exprimir o que os clientes portugueses possuem. O português não tem razão, o português é o supremo detentor de toda e qualquer verdade presente no nosso universo. E não há nada a fazer ou dizer... Se um cliente português disser que Os Maias foram escritos por um eremita neozelandês, com apenas um braço, que se alimentava de algas é porque é a mais pura verdade, nem vale a pena tentar argumentar. O português tem sempre razão. Apresentarei em seguida alguns casos para sustentar a minha tese.
Certa manhã, um senhor com aspecto rural, parecendo ter saído de uma qualquer propaganda do estado novo, comparece na loja. A minha primeira impressão não estava errada: era mesmo um agricultor. E mais, queria livros sobre agricultura. Surpreendente. De imediato guiei o senhor pela nossa vasta loja até à zona da agricultura. Ao chegarmos o senhor começa a olhar surpreso à sua volta, como se procurasse algo. Então pergunta: "Mas onde é que estão as escadas?". Esta é daquelas perguntas em que nós, incrédulos com o que acabámos de ouvir, não sabemos como reagir. Educadamente pedi ao senhor que repetisse. Ele voltou a perguntar pelas escadas, acrescentando: "Mas... A agricultura não é lá em cima? Eu costumo buscar livros de agricultura ao cimo das escadas, no corredor à direita". Está bem, este deve ser vinicultor – pensei eu, tal a minha incredulidade perante o seu desvairado discurso. Expliquei ao senhor que não existem e nunca existiram quaisquer escadas nesta loja, que deveria estar a confundir com outro estabelecimento. "Desculpe" responde o senhor, "eu aposto que venho a esta loja há muitos mais anos, e havia ali uma escada, subia-se, depois no corredor à direita, e aí estava a agricultura! Tenho a certeza!" Tornou-se claro que era um caso perdido, e como tal seria melhor deixá-lo ir sem qualquer tipo de alarido. Não havia o livro que queria (nem sequer a secção que procurava, o que pelos seus rigorosos cálculos deveria ser algures dentro de uma loja de roupa) e por isso seguiu o seu caminho, com a convicção de que aquela loja tinha uma escada. E que ninguém tente provar o contrário.
Neste caso, poderia estar horas a tentar convencer o agricultor de que nunca tinham existido escadas. Mas, não tinha qualquer forma de o provar. Isto iria tornar a minha senda inglória, pois o português, como disse anteriormente, não se demove com facilidade. Felizmente há casos em que eu posso provar que estou certo. Agora se o cliente aceita ou não, é outra história.
É pratica comum os clientes aproximarem-se do balcão, assim como quem não quer a coisa, e apresentar um papel, sempre muito mal tratado, com um nome de um livro. Claro que não me espantaria que o papel contivesse outros pedidos. Basta dizer que recentemente umas senhoras perguntaram a uma colega se vendíamos malas, ou era mesmo só livros... Uma cliente mostra-me um desses característicos papéis, desembrulha-o. Nele lia-se o seguinte: Palavras Que Nunca Te Direi. A cliente diz: "Queria este livro (se faz favor não, porque isso é descer ao nosso nível, e olhem que nós somos a ralé). É de uma autora portuguesa." Algo não batia certo. Palavras Que Nunca Te Direi é mais um mega-sucesso lamechas do rei da pieguice Nicholas Sparks, e não de uma autora Portuguesa. Quando confrontada com esse facto, a resposta foi a seguinte: "Desculpe, mas estou lhe a dizer que é de uma autora portuguesa, tenho a certeza!". Perguntei à cliente se estava segura do título do livro, poderia ter visto ou percebido mal. Ficou ofendidíssima: "Ouça, o título é este, a autora é portuguesa, tem o livro ou não?". Fui buscar o livro do Sparks para a senhora consultar e ver-se era mesmo esse que ela queria. Pega no livro, vê o título, vê o autor. Não fica satisfeita. Reclama novamente, afirmando que não foi aquilo que pediu. Pedi, cuidadosamente, à senhora que vislumbrasse o resultado da pesquisa efectuada no computador, para verificar que com esse título só existia um livro, e era deste autor. Obviamente que a resposta da senhora foi: "Isso deve estar enganado, deve estar estragado!" Mais um caso perdido pensei eu. Como última tentativa, tentei variar um bocado a pesquisa, e eis que encontro isto: O Que Nunca Te Disse. Saí de trás do balcão e fui buscar o livro ao local onde habitualmente jaz, e entreguei-o em mãos à senhora. Ao olhar para a capa exclama: "Ah! É isto mesmo! Eu não lhe disse que era uma autora portuguesa?". Chamei respeitosamente a atenção da senhora, e expliquei-lhe que o título não era o mesmo. Quando estava convencido que a cliente iria dar a mão à palmatória, eis o que ela diz: "Pois, isto é sempre a mesma coisa! O Jornal estava enganado, é incrível, que falta de profissionalismo... Enfim...".
Mas há muito mais casos. Temos clientes que afirmam pela alma dos seus antepassados que viram determinado livro nas nossas prateleiras quando ou não o vendemos, devido a não trabalharmos com essa editora, ou nunca o tivemos na loja. Outros asseguram que as secções foram alteradas. Há teimosias para todos os gostos e feitios. Outro caso estranho, e até frequente, é as pessoas dizerem que a Paula Bobone tem um livro intitulado Etiqueta e Boas Maneiras. Sempre que explico que no nosso sistema o mais remotamente parecido que aparece é Socialmente Correcto, os clientes ficam sempre furiosos. Não percebo porquê, mas eles insistem. E quanto mais percebem que estão errados, mais teimam na sua ideia inicial. Muitas vezes chegam a ser indelicados, roçando mesmo a má educação. O que não é nada Socialmente Correcto.

domingo, agosto 15, 2004

Futebolografias

Antes de mais, e para os mais desatentos, estamos em Agosto. Este era o momento que eu mais esperava desde que consumo o ar desta livraria. E porquê? A resposta é simples: Pauleta. Sei que neste momento devem estar a duvidar seriamente da minha sanidade mental. Mas, eu passo a explicar. Todos os meses é necessário devolver certos livros. E desde que eu aprendi isso, que tenho andado de olho na biografia do aríete luso, sempre à espera da data certa para o devolver à sua procedência. E eis que ela paira sobre nós. Obviamente não perdi a oportunidade, e eu mesmo me encarreguei de devolver a biografia do mais famoso emigrante açoriano. Inicialmente, achava a ideia de fazer uma biografia de um jogador de futebol quando ele ainda se passeia pelos campos europeus ridícula. Claro que não é tão ridícula quanto as mais recentes exigências do Figo em relação à selecção nacional. Não ouso ir tão longe. Mas tenho de admitir, agora, que foi uma excelente ideia. Com a inolvidável prestação do avançado português no mais recente Europeu de futebol, ainda para mais realizado no nosso burgo, o livro ficaria decerto manchado. Acho, contudo, que os leitores estão a ser enganados ao comprar o livro. Sim, aquela multidão de duas pessoas que compraram o livro nesta casa está a ser defraudada. A minha singela proposta para acrescentar manualmente ao livro a frase “E EM 2004 PAULETA DESLUMBROU OS ADEPTOS DAS EQUIPAS ADVERSÁRIAS DA SELECÇÂO DAS QUINAS COM AS SUAS ASSOMBROSAS ACTUAÇÔES” foi declinada, é pena. E atenção, digo assombração com todo o sentido da palavra. Pauleta parecia um fantasma. Só alguns sortudos, no final dos jogos, é que afirmavam a pés juntos que tinham visto o Pauleta em campo. Eu, não tendo qualquer jeito para o esoterismo, nunca o consegui ver. Um episódio curioso, e que revela muito acerca da alteração que se procedeu na mentalidade dos portugueses relativamente à máquina goleadora dos Açores, sucedeu aqui na loja. Duas crianças brincavam enquanto iam vendo livros, ao acaso. Ao defrontar-se com o livro do Pauleta, uma das crianças exclama: “OLHA O LIVRO PAULETA, FIXE!”. A outra criança para, e olha circunspecta para a que afirmou algo tão grave. Em seguida afirma peremptoriamente: “O PAULETA? SÓ PERCEBE DE QUEIJOS!”. As crianças não mentem.
Continuando nos meandros do esférico, temos o livro do já famoso guarda-redes mártir nacional: Ricardo, nº 76 do Sporting Clube de Portugal e nº1 da selecção de todos nós. O seu livro chama-se, apropriadamente, Diário De Um Sonho. Isto porque o Ricardo deve ter escrito sobre um sonho seu, porque a realidade não lhe apresenta motivos para escrever. Depois de um ano desastroso ao serviço do seu clube, com uma média de golos sofridos (quase 1 por jogo!) verdadeiramente inaceitável para um guarda-redes de um grande, e também uma prestação sofrível no Euro, não vejo razões para escrever. A não ser para continuar a sua birra (e com toda a razão) acerca do Mundial de 2002. E depois a birra contra o movimento pró-Baía na selecção. Muito gostam os jogadores lusos de fazer birras por tudo e por nada. Já Sá Pinto fez birra por não ter sido chamado à selecção e foi dar um tau-tau ao Artur Jorge. Tudo bem que Artur Jorge merecia um castigo pelo que fez ao Glorioso. Mas assim não. E depois temos as birras do Figo por causa do Deco, e porque os jogos interferem com a sua carreira de actor. Voltando ao livro do Ricardo, se ele escrevesse sobre cada golo que sofreu na época passada teríamos não um livro, mas sim uma enciclopédia. Quando o livro chegou, ficámos na dúvida quanto à localização do livro. Se na zona do desporto ou dos animais, devido ao facto de estarmos sempre a ouvir na rua a seguir aos jogos: O RICARDO É UM PATO. O RICARDO É UM FRANGO. Parece me lógico. Como diz Ricardo na sua música: “QUANDO FOR GRANDE QUERO SER UM JOGADOR DE FUTEBOL”. Força Ricardo continua a lutar que um dia vais conseguir.
Outra biografia curiosa é a de Deco. Interrogo-me quantos e quantos factos estarão omitidos naquele livro. Fala-se muito, sabe se pouco. Espera-se que um dia a verdade venha ao de cima. Deco no seu livro, conta coisas tão especiais como o dia em que se esqueceu do preservativo no banco de trás do carro dos pais e como estes descobriram no dia seguinte, a caminho da igreja. Que bonito.
Agora, impõe-se a seguinte questão: Para quando as biografias dos verdadeiros ídolos do futebol nacional, presente e passado? Para começar, achava bem mais interessantes as biografias de Zé de Angola, Cao, Carlos Costa, Heitor, Alex Bunbury, Katanga Makalanga e Kasongo Kabue, Constantino, Tuck, Martins, Secretário, Hassan Nader, Pedro, Barroso, Tonino Cruz, Jokanovic, Rui Neves, Bilro, Zé da Rocha, Mangonga, N´Dinga, ou então do já mítico Globetrotter luso, esse explorador do futebol, meretriz dos revaldos que é Vítor Vieira. Comparável a Vítor Vieira só mesmo Sérgio Conceição, o infante chupista. Enfim, a lista é interminável.
Estes sim, são os mosqueteiros do futebol português...

sábado, agosto 14, 2004

Os avós são nossos amigos!

Após um pequeno hiato na vida de livreiro, cá estou eu novamente ao vosso dispor. E que melhor maneira de assinalar o meu regresso do que dedicar este humilde post à terceira idade? Os avós são nossos amigos. E dão uns clientes únicos e inigualáveis.
Os idosos e a religião. Eu sei que é um cliché, mas asseguro-vos que é verdade. Uma boa fatia de idosos que frequenta este estabelecimento procura livros de alguma forma relacionados com religião. Senão vejamos os seguintes casos:
Certo dia, surge uma idosa com uma demanda curiosa: arranjar um missal para o neto, que ia para Barcelona estudar, inserido no sobejamente conhecido e virtuoso programa Erasmus. Parece me óbvio que o objecto que o jovem mais necessitaria seria de um puro missal, tão necessário para o sucesso do jovem em terras catalãs. Chegada ao balcão a senhora pede, educadamente (há que elogiar sobremaneira a boa educação dos idosos em geral. Atenção, falo em geral, porque existem casos particulares, igualmente maus ou piores que o resto dos clientes) um missal em espanhol, explicando-me em seguida o caso do seu neto. Primeiro, comecei por elucidar a senhora dizendo-lhe que se o neto ia para a Catalunha o melhor era arranjar um missal em catalão e não em castelhano. A senhora não ficou muito contente, pedindo-me novamente para verificar se tinha alguma coisa. Após nova consulta no sistema, digo novamente que não temos qualquer missal em catalão. Nitidamente incomodada com as sucessivas respostas negativas, pede que lhe indique o local onde se encontram os missais, ou nas suas palavras: “A ESTANTE DOS MISSAIS”. Qualquer pessoa sabe perfeitamente que qualquer livraria tem estantes de economia, literatura, arte, e MISSAIS. É do conhecimento geral. Ao indicar-lhe o local, lá seguiu ela decidida a encontrar o missal perdido. Sem qualquer surpresa, a sua busca foi em vão. Voltou furiosa para junto do balcão, mas, como se exige a uma senhora, manteve a sua postura. Chamou-me novamente e disse: “Realmente não tem nada.” Jura… “O senhor sabe onde posso arranjar?”. Mais uma vez, o dever cívico chama-me. Mais que meros livreiros, nós, que partilhamos este espaço, somos verdadeiros bombeiros do conhecimento, sempre prontos a apagar os fogos da ignorância das pessoas. Claro que há uns que estão tão queimados que não há salvação. Tentei explicar à senhora onde poderia arranjar o seu missal. Não ficou minimamente satisfeita, o que não me espantou. É então que faz a million dollar question: “PODIA ME DAR O TELEFONE DA OPUS DEI POR FAVOR?”. Claro senhora, deixe me só tirar o cilício e o hábito e vou já ali dentro buscar o meu telemóvel que já lhe dou. Às vezes parece que diz PÁGINAS AMARELAS na porta.
Também encontramos idosos com uma certa aversão à leitura. Entra uma criança a correr pela loja, com uma idosa mostrando sérias dificuldades em acompanhá-la. Excitadíssima, a criança exclama: AVÓ QUERO UM LIVRO! e rodopia pela loja. A resposta surgiu prontamente: "LIVROS? NÂO QUERO ESSAS PORCARIAS EM MINHA CASA!" Viva a cultura.
Muitas vezes fala-se na generation gap. Por vezes encontro pessoas que não estão separadas de nós, comum mortais, por gerações. Não. O tempo mental que nos separa é tão grande que tem de ser medido em séculos. Numa noite particularmente calma entra um duo dinâmico: a senhora idosa com voz fina e que ouve mal e a sua acompanhante, uma senhora máscula, bastante mais nova mas assim já a atirar para o idoso, com voz viril. Primeiro, a idosa pede me um livro para o seu neto, que ia fazer a primeira comunhão. Levei-a à zona dos livros infantis e juvenis, de modo a satisfazer a sua necessidade literária. Depois de me indicar a idade da criança, indiquei-lhe uns livros para crianças, que contam histórias sobre acontecimentos passados, com uma grande vertente didáctica. A senhora não ouviu a minha resposta, dizendo para a amiga com voz esganiçada: “NÂO OUVI NADA, NÂO PERCEBO”. A amiga, com a sua voz de tenor retorquiu: “SÂO ROMANCES.”. Resposta da idosa: “Eu não quero romances, essas perversidades, essas porcarias, não quero poluir a criança.”. A conversa decorria assim, com três intervenientes, de modo desordenado e caótico. Procurei elucidar a senhora, tentei fazê-la ver que aqueles livros eram ao mesmo tempo úteis e divertidos a o seu neto. A amiga voltou a traduzir o que eu disse. Mas ela não se demovia. “São perversidades, obscenidades! Quero um livro com moral, religioso, com uma lição de vida moral!”- Pensei em dar-lhe um livro intitulado AS MENTIRAS DA IGREJA CATÓLICA, mas o mais provável era ficar logo ali prostrada no chão.
Outro caso semelhante é o da tia idosa que quer um livro de uma autora portuguesa, que não sabe quem é, que tem um título, que ela não sabe bem qual é, mas que tem a ver com desordem. Segundo as palavras dela “ai, o livro, tem assim um título maluco, qualquer coisa da desordem, que horror.” Depois de descobrir o livro que a senhora desejava, e de lhe indicar que o título era VIVA A DESORDEM, entrou em histeria: “VIVA A DESORDEM? Ai, que louca, que parvoíce, que loucura, então esta autora não pode estar de todo boa da cabeça!” É, a autora é uma anarquista com o corpo todo tatuado que assalta velinhas e vive numa casa ocupada com dois cães, escreveu o livro com o seu próprio sangue em honra de Satanás…. “Já me viu isto? Desordem, o mundo está perdido!”. Nem sabe o quanto…

terça-feira, agosto 10, 2004

Novidade, ou talvez não.

Com o imparável passar do tempo vamos conhecendo figuras sui generis que por diversas vezes visitam a nossa loja. Não satisfeitos por espalhar o seu encanto numa única ocasião voltam uma e outra vez, sempre com a esperança de se superarem. São os denominados clientes habituais. E evidentemente que querem, ou melhor exigem, o descontinho. Mas por agora não vou voltar a esse tema, fica guardado para outra oportunidade.
Sendo assim, recebemos hoje a visita de uma cliente habitual. E que cliente. Estava eu ocupado com um cliente enquanto colava etiquetas, quando ouço uma voz ao fundo da loja. Em tom bastante alto e, direi mesmo, quase agressivo diz a senhora: “ONDE É QUE ESTÂO AS NOVIDADES?”. Pensei logo para mim: “Aí está, ainda agora cheguei, já estou a receber a má educação do costume, nem olá nem bom dia, nada. Bonito.” Quando desvio o meu olhar para o canto longínquo da loja, de onde veio som, vejo uma cliente que reconheço com alguma facilidade. Mas, qual o meu espanto quando verifico de imediato que a cliente está de costas para o balcão e agarrada à prateleira mais alta. Por momentos, duvidei seriamente da minha sanidade mental. Porem, fiquei rapidamente descansado. A senhora, sem se virar ou largar a prateleira do topo, volta a bradar: “ENTÂO, ONDE ESTÂO AS NOVIDADES? NÃO CHEGOU NADA HOJE?”. Fiquei atónito. Já vi muita coisa nesta vida, mas nunca uma senhora a interrogar uma prateleira, querendo saber onde estão as novidades. Pelo ar da prateleira posso assegurar que ela estava bastante intimidada. E não era para menos. Por breves instantes fiquei a contemplar a senhora, esperando que ela tivesse um pingo de lucidez e me fizesse a pergunta directamente. Claro, isso são só os seres racionais que fazem. Eu sei, e perdoem-me a incorrecção, mas era isso que eu esperava. E, para espanto dos presentes, a senhora voltou-se. Mas, desta vez, ainda mais enraivecida. Clamava pelas novidades como se não houvesse amanhã. “ONDE ESTÃO AS NOVIDADES? NÃO CHEGAM LIVROS HOJE? QUANDO É QUE CHEGAM?!”. Eu, amavelmente, expliquei à senhora que as novidades se encontravam junto à entrada, e que no presente dia, até à presente hora, ainda não tinham chegado qualquer tipo de novidades. Obviamente que não ficou satisfeita com a minha resposta, perguntando novamente: “ENTÃO MAS NÃO SABE QUANDO CHEGAM?!”. Retorqui educadamente, explicando-lhe pausadamente que íamos receber livros durante todo o dia, e toda a semana. E, perguntei-lhe se procurava algo em particular. Resposta: “NÃO. QUERO AS NOVIDADES! NÃO TEM É?”. E saiu porta fora. Passado uns minutos, a calma reinava na loja. Uma calma enganadora… Ao efectuar um embrulho entra novamente a senhora na loja. Ao ouvir a voz inconfundível pensei: “A quem é que vou impingir esta personagem?” Olhei em meu redor. Estava sozinho. Ainda pensei em fingir deixar cair alguma coisa e esconder-me atrás do balcão. Mas, já não tinha tempo. Ao chegar junto ao balcão, exclama furiosa: “O SENHOR NÃO ME EXPLICOU QUE ESTA ALTURA DO ANO É MUITO FRACA EM NOVIDADES! OS EDITORES VÂO DE FÉRIAS!”. E saiu. Curta e eficaz. É inaceitável que alguém que trabalhe há 2 meses e meio numa livraria não saiba já tudo. Editores de férias? Informação crucial, vital. Não saber isso é a mesma coisa que não saber quanto calçava Eça de Queirós. E não informar a cliente disso? Falta de rectidão profissional.
Pensei que já a tinha visto pela derradeira vez. Mas não. Para quê ir a mais sítios quando se pode ir chatear o pobre e solitário livreiro? Ele não tem nada para fazer, nem sequer ninguém para aturar. Melhor só mesmo se tivéssemos um alvo na cara e dessem dardos aos clientes. Desta vez, estava a loja desprovida de clientes. Aproxima-se do balcão e com um ar tranquilo, como se nunca tivesse entrado naquela loja, pergunta: “Onde está o Messias?”. A última vez que o vi estava na cruz, acho que não ia a lado nenhum. O que é que eu respondo numa situação destas? Nessa altura lembrei-me do primeiro encontro que tive com esta cliente. Fez me dezenas de perguntas sobre o Código Da Vinci, o Código Da Vinci Descodificado, O Sangue de Cristo e o Santo Graal e o Segredo dos Templários. E fica desde já aqui o aviso, numa nota à parte: se me voltam a perguntar qual a diferença entre o Código Da Vinci e o Código Da Vinci Descodificado eu despeço-me logo ali. Todos os dias. Todos os dias alguém pergunta qual a diferença. E todos os dias alguém não percebe a diferença, e pergunta novamente. E eu explico. E apesar de responderem afirmativamente, continuam a não perceber. Enfim. Continuando, a senhora nessa primeira ocasião não se cansou de falar na Opus Dei. Avisou-me para não me aproximar dessa associação secreta. Eles eram maus. E que se eu não fosse “rico, filho de ministro ou do Pintassilgo” (palavras da senhora) eles não me queriam lá. Apesar de frisar diversas vezes que poderia ficar descansada que eu não iria lá, a senhora insistia nos avisos. “Não vá lá. È no Estoril (e dizia me a localização precisa). Não vá lá!”. Logo aqui comecei a descobrir o potencial da cliente. Depois, teve a aconselhar-me livros. Todos eles rodavam à volta de judeus, do Judaísmo, ou até do Holocausto. Acho que se ela tivesse visto o Mein Kampf na loja teria tido um enfarte. Ou isso ou o funcionário é que iria pagar, como sempre acontece. Pelo que os meus colegas me confidenciaram esta senhora já teve bastantes situações desagradáveis com eles. Não é de estranhar. Embrenhado nos meus pensamentos, distanciei-me um pouco da realidade. Mas, sou abruptamente desperto por um novo grito do outro lado da loja: “OH FAZ FAVOR, ONDE É EU QUE EU POSSO SUBIR LÁ ACIMA? TIREI O LIVRO MAS NÃO CONSIGO POR! NÃO HÁ BANCO NÃO HÁ NADA?”. O meu primeiro pensamento foi chamar um colega para pegar a senhora às cavalitas. Obviamente que tive pena, e pedi à senhora que deixasse o livro lá perto que eu já o arrumava. Finalmente decidiu o que queria levar. Um livro sobre o Judaísmo. E partiu…
Graças a Deus. Ou ao Messias. Onde quer que ele esteja.

domingo, agosto 08, 2004

Terrorismo Literário

Domingo. Chuva. Muita Chuva. Gente. Muita Gente. E, caros leitores, para quê ir a um museu ou teatro quando se pode ir para um shopping cheio, quente e mal frequentado? Cultura? Não, que isso pega-se. Deus nos livre. Enfim, a gerência agradece o maior afluxo de pessoas à loja. E claro, eu também tenho de dar a mão à palmatória: é deveras extenuante o fim-de-semana, mas, as situações fora do comum sucedem a um ritmo impressionante. E, com esta conjuntura, não poderia ser de outra forma.
Ainda estou para perceber a conexão (ou a falta dela) entre as famílias domingueiras e as crianças. A meio da manhã, entra uma senhora bem constituída na loja. E quando digo bem constituída, atenção, estou a referir-me a bem constituída tipo Margarida Martins pré-banda gástrica e não bem constituída tipo Marisa Cruz. Dirige-se calmante, como não poderia deixar de ser, em direcção aos livros de criança. Passado 2 minutos de ter entrado, ou seja, ia a meio caminho dos livros, entra o marido: barrigudo, sandálias com os dedos todos pretos a saírem por fora, com a elegante camisola de alças com os pelos do peito de fora. Obviamente que se começou a queixar da cônjuge ir delapidar património na livraria. Farto da situação, exclama: “VA VAMOS EMBORA, E TRAS O FRANCISCO!”. A senhora olha com um ar extremamente preocupado, respondendo: “Mas, ele estava contigo”. O homem enfureceu-se, e disse com tom raivoso: “PERDESTE-O MIUDO? TU PERDESTE O MIUDO!”. Assustada, a cliente prontificou-se logo a explicar. Disse que ele é que tinha a criança e que esta não queria ir à livraria. “ÈS SEMPRE A MESMA COISA!” disse o homem enquanto saiu apressado da loja. Bom, a senhora, chegado este ponto, baixa a cabeça e sai da loja dizendo para si mesma em voz alta: “A culpa é sempre minha, a culpa é sempre minha, a culpa é sempre minha”. E lá foi ela. Muitos clientes entram na loja, despejando logo as crianças para o seu canto apropriado. Não é de estranhar que por vezes se esqueçam delas. Então ao domingo…
Usualmente encontro sempre algum tipo de explicação, mesmo que não pareça inteiramente lógica, para as situações que vivemos diariamente. Mas, há decididamente casos perdidos. Qual a motivação de um senhor que fica na porta à espera que a esposa pague, e quando esta sai diz lhe: “anda embora que eles são da Al-Qaeda.” Eu disse à minha mulher que não me apetecia ir de turbante, HK-45 ao ombro e barba por fazer para a loja, mas ela insistiu que ficava com um ar distinto. A Al-Qaeda… Nós somos a Al-Qaeda. Eu sempre estranhei o facto do Greenpeace falar árabe de vez em quando, mas pensei que fosse dos anos que passou a inalar os humores da cozinha de uma famosa companhia de fast food. E o colega Poeta também fala muitas vezes do Vizir e do Sheik nos seus ensinamentos para a vida. Agora tudo faz sentido.
Ocorreu também uma série de pedidos estranhos, que fazem com que tenhamos de suster o riso com todas as forças do nosso corpo e mente. “Tem o Macaco Nu?” “Tem o Xangu?” “Tem o gines 2?”, e por aí fora. Tudo de seguida, muitos deles ininteligíveis, para cada pessoa que me virava, recebia um pedido peculiar. E, mal encetava a pesquisa, já estava outra pessoa a fazer um pedido, e a que fez o pedido inicial já estava a indagar se existia o livro. Não são raras as ocasiões em que os clientes fazem o pedido e, depois de eu baixar os olhos para me certificar se temos o livro em stock e vou responder, vão se embora. É delirante falar para o ar. Outras vezes tentam ler o que estamos a pesquisar, pondo se em bicos de pés e depois rodando a cabeça 45º. Já estive tentado a pedir a um cliente, que estava demasiadamente interessado no que estava a escrever, para virar a cabeça 360º. Também tenho direito a entretenimento. E claro, muitas das vezes não acreditam na nossa palavra. Pedem um livro, e quando respondo educadamente que não temos, perguntam “Ah, onde é a secção que eu vou dar uma olhadela?”. Veja lá não lhe caiam os olhos, seria uma chatice para a Dona Branca limpar. Se eu estou atrás de um balcão, se eu tenho um identificador a dizer LIVREIRO, eu é que sei. Ponto final. Duvidam de tudo. Então quando se trata de descontos ou facturas, se for preciso, ficam o dia todo a dissecar a factura letra a letra. Já chegou ao cúmulo de ter de fazer as contas com os descontos e sem os descontos com uma máquina de calcular à frente de uma senhora, e nem assim ela acreditou na minha palavra. Outra situação recorrente é pedirem nos livros de um autor, teimar que ele chama Lowitt quando é Lovet, e duvidar de nós quando afirmamos peremptoriamente que não temos nada desse autor. Depois, temos a tia que quer livro do Maharaji. Nem ela sabia soletrar. Queria meditar dizia ela. Aconselhei-lhe o Dalai Lama. Retorquiu: “Não, esse não. Quero um que esteja vivo.” Não há meditação que a safe, Deus a ajude. Pedem os nomes mais incríveis, e não fazem ideia de como se soletra, nem sequer os pronunciando bem! “Tem livros do Mosgrab? (Musgrave)”. “Tem livros do Birone? (Byron)”. Com o título dos livros passa-se a mesma coisa: "Marafonas e Matrioskas" (Nazarenas e Matrioskas), "A Terra Vista de Avião" (A Terra Vista do Céu) "China em 1421" (1421, O Ano Em Que A China Descobriu o Mundo"), o Barracão (A Caverna, de Saramago), "Evangelho não sei quê da Nossa Senhora" (Evangelho Segundo Jesus Cristo), "Albertina, Valha te Deus (Albertina Que Deus Haja). A lista é interminável.
Não poderia terminar sem referir a senhora que tentou e conseguiu ir mais além na longa e sinuosa avenida do ridículo. Ao pedir me uma obra, expliquei à cliente que estava esgotado e que só poderia encontra-la na loja em Lisboa. E ela pergunta: “NA FNAC DE LISBOA?”. Eu pensei que lá tinha de vir a estupidez habitual, a história da Fnac, ao que respondi: “Não, na nossa loja de Lisboa, não é na FNAC”. E ela, não contente com o que tinha feito até então, e, decididamente apostada numa saída em grande diz: “AH, ENTÃO VEJA ME LÁ SE TEM NA FNAC DE LISBOA!” com um tom indignado, como se eu não quisesse pesquisar para a senhora. Expliquei-lhe que não podia fazer isso. Ela não ficou convencida. Se os terroristas conseguem fazer atentados pela Internet, se há pessoas que tem inclusivamente sexo na Internet, como é que eu não podia verificar a existência de um próprio livro?
Já não vou ser trabalhador do mês…

quinta-feira, agosto 05, 2004

Rola o esférico...

Desde os primórdios deste blog que a ideia de agrupar os clientes em tipos percorre a minha mente. E, rapidamente cheguei à conclusão que a melhor maneira de encetar tamanha proeza seria indubitavelmente recorrer à uma analogia entre os clientes e as personagens que preenchem o futebol português. Assim sendo, comecemos sem mais demoras:
Cliente tipo FIGO: O Figo, para actor, até nem joga mal. O cliente tipo Figo, tal como o seu conterrâneo futebolístico, entra só para marcar presença e passear (com muito ênfase no passear) classe. Entra e sai da loja, sem tocar num único livro, mas pavoneia-se sem pudor, para gáudio das fãs.
Cliente tipo DIAS DA CUNHA: Este cliente tem sempre alguma conspiração em mente. Tal como o dirigente verde e branco, proclama que o sistema está por trás de tudo, contra tudo. Sejam as Stargates no Egipto que controlam o pensamento dos líderes mundiais, mas afinal estão sob o poder da CIA, sejam as conspirações da Igreja católica que quer esconder verdades à muito perdidas, ou ainda sérias conspirações políticas, mencionando mesmo o facto de o Bin Laden estar hospedado com o próprio George W. Bush. E estes clientes, tal como Dias da Cunha, sentem-se injustiçados. E mostram-no. Muitas vezes tentam calá-los, mas ninguém consegue.
Cliente tipo MOURINHO: Tal como Mourinho, o cliente vem à loja sabendo atempadamente o que quer, quando quer, como quer. Mas não é só isso. Já sabe o que vai querer depois de ter o livro que procura, e todas as alternativas possíveis, assim como Mourinho faz com o seu plantel, sabendo já as substituições e nuances tácticas a aplicar com semanas de antecedência. Este cliente sabe tudo. Por vezes sabe uma coisa, mas não a diz. Mas pensa. Tem sempre total controlo sobre as situações.
Cliente tipo OCTAVIO MACHADO: Bastante semelhante ao cliente tipo DIAS DA CUNHA, mas com uma pequena diferença: nem ele próprio sabe sobre que conspiração paira sobre nós. Tenta se exprimir, mas queda-se por uns enigmáticos: “Sabe, aqueles, que fazem aquilo, naquela altura, você percebe; você sabe do que estou a falar; você está a ver não é;” Parece mergulhado na sua própria realidade, dando francamente a ideia de que estaria melhor na sua quinta a cuidar dos vegetais.
Cliente tipo LUIS FILIPE VIEIRA: Sempre que efectua qualquer compra, procura sempre a pechincha e o descontinho. Chega por vezes com um amontoado de livros de preços módicos, tal como Vieira e a sua pesca volumosa de jogadores do Alverca, na esperança de descobrir algum que seja minimamente bom.
Cliente tipo PAULETA: O Pauleta demonstrou no Euro 2004 que, apesar de ser um rapaz esforçado, é tremendamente inconsequente. À sua imagem, o cliente tipo PAULETA mexe em muitos livros, coloca-os no balcão, lê vezes sem conta, mas na hora de pagar, leva o livro mais pequenino e barato que conseguir encontrar. Por vezes, quando procura um livro, esforça se muito para se expressar, mas raramente consegue fazê-lo na perfeição. Dentro da loja, como dentro das quatro linhas, não sabe bem para onde se virar. Parece que vai para a esquerda, mas depois segue para a direita, parando a meio caminho, parecendo muitas vezes perdido e deslocado. Típico do ponta-de-lança luso.
Cliente tipo PIMENTA MACHADO: É o tipo de clientes que faz uma encomenda, mas depois ao ser confrontado com a chegada do livro nega categoricamente ter encomendado aquele livro, mas sim outro. O que hoje é verdade amanhã é mentira. Nem mais.
Cliente tipo JARDEL: expressa-se usualmente na 3ª pessoa, e usa a expressão Graças a Deus em todas as frases. O seu tom de voz é idêntico ao tom de voz de um soprano. Procura cartões de telefone, e o livro Quem Mexeu No Meu Queijo? Porquê, é algo que atormenta a mente dos estudiosos. Mas é assim que acontece.
Cliente tipo PINTO DA COSTA: Ninguém tem o atrevimento de negar nada a este tipo de cliente. Tem o que quer, quando quer. E se não tem, encontra sempre maneira de arranjar. E provavelmente, vai arranjá-lo com um grande desconto. Respeitado por todos, temido por muitos. Não permite qualquer tipo de veleidades. Tal como o decano dirigente, tem sempre a língua afiada, não enjeitando qualquer oportunidade para soltar uma piada caracterizada pelo seu humor irónico e mordaz.
Cliente tipo MANTORRAS: Este cliente, quando faz uma encomenda, rasura a data do pedido para posteriormente poder reclamar da falta de cumprimento da loja. Fala também na terceira pessoa.
Cliente tipo ANTÓNIO OLIVEIRA: Tem no esoterismo a sua zona de predilecção. Tem uma crença profunda e inabalável no oculto e sobrenatural, geralmente utilizando símbolos que o comprovam. Oliveira no fatídico Campeonato do Mundo de 2002, que decorreu na Coreia e no Japão, utilizou cebolas e alho para afastar o mau-olhado. Este tipo de cliente recorre também a essas superstições para obter os seus fins.
E assim, mais uma vez termina a partida.


quarta-feira, agosto 04, 2004

I'm easy like tuesday morning...

Não é meu apanágio trabalhar durante as manhãs aos dias de semana. Mas hoje, debaixo de um intenso nevoeiro, lá fui eu, qual D. Sebastião, rumo à loja. E, mais uma vez, pude comprovar que a clientela que preenche o espaço matinal do estamine é sem dúvida séria candidata a uma medalha na olimpíada do ridículo. É que não basta o número elevado de livros que chegam à livraria para dar entrada. Não, assim não tinha qualquer tipo de piada. Temos que levar também com clientes em plenas férias de Agosto, a caminho ou vindos da praia. É a refeição completa. Come-se e cala-se.
Num raro momento de calma na loja certa senhora dirige-se a mim com um livro entreaberto. Pensei logo que me fosse fazer qualquer pergunta que obviamente não saberia responder, ou então reclamar porque a capa tem um traço com 1mm de espessura ou está baça, ou ainda porque reflecte demasiado a luz. Desta vez não. A cliente prostra o livro no balcão, qual veraneante em plena praia, e pede com todo o à vontade do mundo: “Olhe, pode me fotocopiar só estas duas páginas?”. Pensei que tinha ouvido mal. Concerteza que só poderia ter sido esse o caso. Mas, infelizmente para a humanidade e felizmente para o blog, a senhora estava mesmo com essas intenções. Que alma severamente perturbada entra numa livraria e pede para tirar fotocopias de um livro para venda? Quando for a uma loja de software pego num jogo e digo logo: “Faça me aí uma cópia por favor”. É que, primeiro, nós não temos fotocopiadora, e, segundo, é altamente ilegal copiar livros. Se fossemos uma reprografia, pronto, ainda se percebe, agora uma livraria?! Devia tê-la denunciado às mais altas autoridades. Não pelo pedido ilegal, mas pela estupidez. Seria facilmente condenada, nem o Johnny Cochran a safava. E, vejam bem, a senhora ficou altamente indignada com a minha resposta, virando-se rapidamente, pousando o livro no primeiro sítio que apareceu e saindo prontamente da loja. Tenho um problema de atitude, está visto.
Tivemos a honra de ser visitados por uma clone da Nelly Furtado. Ao chegar ao balcão diz (com um belo português com sotaque de emigrante no Canadá que tinha os avós nos Açores e quis aprender português porque tem piada): “DESCULPA; TENS LIVROS INGLÊS?” Note-se a falta de artigos. Para quê complicar? Mas há mais. Além dela falar assim, também era excitada e irritante como a própria Nelly. O problema era que se ela desatasse a cantar “COME M’Á FORÇA, COME M’Á FORÇA” iríamos ter um problema gravíssimo devido ao estado solitário de certos colegas. Graças a Deus, tudo correu pelo melhor, a menina não abriu mais a boca e saiu tranquila da loja.
Noutro momento calmo, outra pessoa (talvez a 5ª do dia) pede o livro O Euro Em Imagens. É um livro muito pedido, mas nem por isso muito vendido. Talvez porque custa 17,5€. Dou o livro à senhora, e ela passa escrupulosamente página a página, enquanto vou atendendo outros clientes. Quando acabo, ela chega-se ao pé de mim com o livro. Eu pego no livro e pergunto se é para oferta. Ela diz que não leva o livro, porque, segundo ela: “É só imagens…”. A minha reacção, digamos, foi de um espanto tão grande quanto o do Ministro dos Assuntos do Mar quando ouviu os nomes das suas pastas. Que invulgar. Esses insidiosos autores. É vergonhoso. Eu chamava as autoridades competentes. Então esses energúmenos fazem um livro intitulado O Euro 2004 Em Imagens, e só põem imagens no livro? Que obscenidade, que falta de respeito, que barbaridade. Juro aqui, perante vós, que dilacerarei todas as cópias do livro presentes na loja. E mais. Estou a ligar à DECO neste momento, é uma vergonha. Realmente só alguém dotado de um Q.I. equivalente a um Newton ou mesmo a um Einstein é que poderia saber o que aquele livro continha verdadeiramente depois de ler o título. Qualquer pessoa que lê o título antevê evidentemente um livro denso, de parágrafos intermináveis com incompreensíveis dissertações filosóficas.
O que faz mais confusão de manhã é a minha dificuldade em mentalizar-me que estou a trabalhar de manhã. Por força do hábito digo boa tarde a toda a gente. Mesmo quando são 10 da manhã. As reacções são as mais diversas. Temos o cliente que olha para mim com um ar desconfiado, parecendo pensar “este jovem não está bem mentalmente”. Outros respondem agressivamente “bom dia!”. Há ainda aqueles que, dissesse eu bom dia, boa tarde, boa noite, lhes insultasse a pátria ou o partido, não responderiam. E por mais que eu diga algo, não me respondem. Quanto muito, e é preciso algo que toque o seu bloco de carvão duro e negro como a noite que tem no local do seu coração, abanam ligeiramente a cabeça para indicar sim ou não. Mas existem mesmo clientes que não comunicam de forma alguma. Já vi animais embalsamados bem mais sociáveis que certos clientes. Já pensei em levar um órgão, tipo Encontros Imediatos Do 3º Grau. Pode ser que ao tocar a célebre música eles reajam. Pensei igualmente em levar uma vara, e bater lhes levemente na testa até obter algum tipo de reacção. Posso também experimentar uns papéis grandes com letras garrafais. Um painel de luzes tipo Independence Day também seria bom. Mas o melhor mesmo seria um megafone. Quando dissesse bom dia e não respondessem, utilizava estrondoso megafone. Aí iam ouvir. Responder, talvez. Mas saberia bem. O nosso colega Greenpeace não tem qualquer tipo de contemplações. Quando algum cliente se dirige a ele e começa a falar sem saúda-lo convenientemente, interrompe-o com um sonoro “BOM DIA!”. Muitos param, fazem um ar comprometido, dizem bom dia e continuam. Outros obviamente, quais robôs com uma incumbência, continuam a falar como se a sua existência dependesse disso.
Como podem ver, as manhãs de Agosto são deveras interessantes.
Voltarei mais cedo ou mais tarde. Se depender dos clientes, amanhã por volta das 14:10, 10 minutos depois de chegar já estou a redigir. Contem com isso.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Dia da Família

Isto há coisas que são inexplicáveis. Quando divido o espaço do balcão com um certo colega (vamos chamar lhe apenas de Greenpeace, para preservar a sua identidade, qual super-herói livreiro) a probabilidade de acontecer algo de estranho aumenta consideravelmente. E assim foi este Domingo.
Sensivelmente a meio da tarde, a loja estava repleta de crianças que berravam, corriam, desarrumavam, choravam e chateavam até à morte os seus pais. Até que um casal sai da loja, deixando as suas duas crias lá dentro. Ele, preocupado, pergunta: "Então e os míudos?!" Ela responde sem hesitações: "Os senhores ficam a tomar conta deles, anda!". Bem, não sei bem como reagir a isto. Se por um lado ninguém me paga para tomar conta de crianças, por outro lado temos que ficar honrados pela confiança depositada em nós. Parece me apropriado. Quando alguém que esteja aí a ler queira ir às compras e não tenha onde depositar os rebentos, venha a uma livraria. Se deixar as crianças ainda recebe um desconto. Para quê amas ou infantários quando se tem livrarias?
Um pouco mais tarde, e num momento de calma e sossego, entra um senhor cheio de notas e um maço de papéis na mão, pedindo desde logo uma caneta. O meu colega, prestável como sempre a cumprir o seu dever cívico, acedeu ao seu pedido, dando-lhe uma caneta. O senhor pega na caneta, dá meia volta e sai da loja. Vira à direita, e desaparece no horizonte. Obviamente que a nossa reacção foi olharmos um para o outro e desmancharmo-nos a rir. Mas que idiota é que entra numa livraria, pede uma caneta e vai se embora?! Uma caneta que nem 0.2€ deve custar! O ar natural e descontraído, como se não fosse nada com ele, com que o homem fez tudo isto. Parece-me correcto. A esta hora estará ele com a caneta nalgum orifício recôndito do seu corpo, barrado de manteiga, com as cuecas da avó a ver o Olá Portugal e a entoar músicas da Ana Malhoa. Desafortunada alma.
Depois, já perto do fim tivemos a principal atracção da noite, o verdadeiro artista convidado, estrela principal de uma noite já de si pródiga em vedetas. Entra uma família de emigrantes vindos directamente dos States. As camisolas com imagens de futebol vindas directamente da feira, os fios de ouro e o sotaque característico não enganam. Quando pensámos que já tinha entrado tudo, que já tínhamos visto a nata da sociedade, eis que entra o artista. Vinha desde lá do fundo a assobiar, e a mexer os braços como se tivesse a nadar. A cada braçada o homem ia assobiando. E depois, coordenava as braçadas conforme os seus confiantes passos e com os obstáculos que se deparavam no seu caminho. Desvia se dos alarmes, uma braçada, um assobio, desvia se dos livros da entrada, outro assobio acompanhado de mais uma esforçada braçada. Pensei em dizer: "Oh amigo, Atenas fica para aquele lado. A natação é só daqui a uns dias." E assim vinha rapidamente dirigindo se para nós. O Greenpeace já estava pronto para entrar em acção, com as suas tácticas de dissuasão contra potenciais agressores. Mas, não foi necessário. O homem, chegado ao balcão, pergunta: "TEM O LIVRO QUE AINDA NÃO FOI ESCRITO?!?" Eu e o meu colega desmanchámo-nos novamente a rir, como não podia deixar de ser. Ele diz que não temos o livro, e eu, distraído ainda fui ver no computador. Ao receber uma resposta negativa o senhor exclama: "AHAH NÃO TEM PORQUE AINDA NÃO FOI ESCRITO AHAHAHAHAHH! SECALHAR ESCREVO-O EU AHAHAHAH!" E lá seguiu ele, loja fora, assobiando feliz da vida, e cantando. Depois, o seu filho ou sobrinho pega no livro Euro 2004 Em Imagens e abre na página em que uma jovem croata exibe o peito, e foi uma festarola. Falando num inglês perfeito, lá estavam eles, aos berros, a enaltecer as qualidades peitorais da jovem. Adequado para uma livraria familiar. Depois continuou a bambolear se pelo estabelecimento, proferindo coisas sem qualquer nexo. Até que volta à carga, gritando do outro lado da loja para nós: "OLHE, TEM AÍ A MARGARIDA DOS PINTOS?" Ele estava decidido a deixar uma marca indelével na nossa memória e na loja. E estava a conseguir. Ainda conseguiu chamar mais uns familiares seus, e por breves momentos, com aquela comoção toda, com os berros e todo o barulho, com os sotaques, pensei estar numa qualquer feira no Portugal interior e perdido. Faltava o cheiro a fritos.
Chegada a hora de fechar, já com tudo pronto para irmos embora, porta bem fechada, entra uma senhora com a filha, que, soluçando e balbuciando, queria um livro. Agora qual, ainda hoje, a esta hora, ela não deve saber. Realmente, é incompreensível. Quando fechamos a porta, significa que a loja fechou. Mas não, para outras pessoas, nós só fechamos a porta porque está frio. Porta fechada? Não interessa. Entra-se à mesma. Se está fechada é para abrir, não há que negar a utilidade natural das coisas. Viva o respeito por quem trabalha. 23. 23:05. 23:10. A criança não se decidia. A mãe, visivelmente incomodada, dizia para a criança: "OH FILHA, LEVA O SHAREKA! O SHAREKA É BONITO! ANDA, VAMOS EMBORA!". A criança não se demovia da sua cruzada em demorar horas a escolher um livro. É bom ver a juventude determinada. E nós, ali especados, a ver os minutos a passar lentamente... A mãe insistia: "OH FILHA, A SÉRIO, DESPACHA-TE! LEVA O SHAREKA! OS SENHORES QUEREM IR EMBORA!" Oh minha senhora, porque é que diz isso? Quando a senhora, com todo o respeito, finalmente desamparar a loja, nós não vamos embora. Simplesmente nos penduramos nuns cabides ali atrás e ficamos prontos para ser usados outra vez amanhã. Somos reutilizáveis e amigos do ambiente. Aliás, atrevo me mesmo a comunicar que somos pouco mais que meros joguetes na mão dos clientes. Finalmente, quando já tinha perdido toda a esperança e estava prestes a comunicar à minha mulher que iria ficar por aqui, a senhora pegou no Shrek e pagou. Mas, esperem. Ela primeiro disse que ia pagar com Multibanco. E nós, contámos o dinheiro todo. Duas vezes. Mas não, a senhora pagou com dinheiro. Ou seja, vamos contar tudo outra vez. Acabámos de fechar tudo às 23:26.
Agora, dêem-me licença, se não for muito inconveniente, que o cabide não me permite chegar ao computador para o desligar...