sábado, julho 31, 2004

O fim de uma era...

Nesta semana que passou, e que não mais voltará, foram vendidos os dois últimos bastiões desta livraria. A sua alma foi-se, talvez para jamais regressar. Uma atmosfera soturna e amargurada enche agora as quatro paredes carregadas de livros, outrora vivas pela alegria e luminosidade dos seus filhos pródigos. Eram eles Spartacus, o mui nobre e bravo cavaleiro homossexual, e Ronda de África, 800€ brutos em dois volumes de magia africana.
Spartacus. Uma palavra. Várias aventuras e desventuras. Um sentimento. Saudade. Para alguns, apenas mais um guia abichanado. Para outros, um modo de vida. Este livro, se é que se pode chamar isso porque a sua esplendorosa essência era maior que cada um de nós e que a soma de todos nós, ficará para sempre marcado na história desta livraria. Este pequeno guia teve encomendas em nome de todos os funcionários da loja. Sempre que ninguém estava a ver, fazíamos encomendas fictícias no nome de um colega, na esperança que a pessoa que trata das encomendas, quando ligasse a avisar que o seu Guia Gay tinha chegado, não reconhecesse o número ou o nome, colocando assim o colega numa situação embaraçosa. Várias vezes colávamos papéis com o nome de colegas, na tentativa de os enganar. Eram feitas apostas para sobre quem venderia o livro, e a quem. Várias vezes colocávamos o livro num local de destaque, totalmente merecido, para, com um pouco de sorte, ver parti-lo, para continuar a sua vida. Mas, a esperança tinha desaparecido, pois ninguém parecia ter interesse no solitário Spartacus. Até esta semana. Aí, tudo mudou. Curiosamente, e porque o destino é irónico e certeiro, foi o nosso colega com mais afinidade com o livro (colega este que tinha a alcunha merecida de Sparta, devido à sua dedicação com o livro) que o vendeu. Foi ele que segurou Spartacus na hora da despedida. Foi ele que o pôs no saco, a caminho de alguma estância homossexual algures na Europa. Comovido como nunca, Sparta ficou bastante nervoso. Todas as brincadeiras e partidas vieram lhe à memória naquele ensejo. E ele, trémulo, só imaginava o que poderia acontecer se algum colega tivesse a partilhar aquele espaço naquele momento. Seria deveras embaraçoso e constrangedor, pois não iriam suster o riso. Já Sparta, teve de pensar em cada diminuto e meticuloso passo que dava ao processar a venda, como se de uma pequena sessão de meditação se tratasse, pois sabia que o riso subia lhe impiedosamente pela garganta e forçava-lhe violentamente os lábios. O riso chamava-o, não devido aos clientes, ou à sua preferência sexual, mas a tudo o que o ligava ao livro, e todos os bons momentos de galhofa que passou devido ao livro. Spartacus, onde quer que estejas, um bem-haja! Mesmo depois de vendido, Spartacus continua no imaginário dos livreiros… Ainda ontem, Sparta imprimiu novamente o talão com o nome de um dos colegas como sendo uma factura, e colou no monitor do computador que ele habitualmente usa…
África. Terra Mãe. Aqui nasceu a história de Ronda de África, esse mastodonte da literatura portuguesa, verdadeiro pilar de cultura. Em meados de 1900 Henrique Galvão, esse paladino da caça grossa, embaixador da espingarda, terror dos animais indefesos, seguiu para África, e, munido de uma máquina fotográfica, capturou os momentos marcantes da sua viagem pelo continente negro. Este livro não estava na nossa posse, devido a ser um livro com uma tiragem muito reduzida. Mas, certo dia, entra uma senhora que se dirige a mim, com uma conversa delirante sobre um livro há muito perdido e que é procurado por muitos, mas poucos são dignos de o possuir. Ronda de África era o seu nome. Ao pesquisar no nosso avançado sistema, encontrei o livro outrora perdido. Estava em Aveiro. E custava 800€. Avisada desse facto, a senhora parecia não se importar com o montante do livro. Queria o livro a todo o custo. E por razões familiares. Segundo ela, o seu avô ou bisavô teria seguido as pisadas de Galvão na sua empreitada assassina, e estaria presente no livro, sentado em cima de um elefante morto. Porque mortos são mais calmos e fáceis de usar como cadeira para uma foto, especialmente porque o material fotográfico da época era algo rudimentar. A senhora estava segura da sua compra, e mandou vir o livro. Avisei a novamente, que eram 800€, e que no caso de ela desistir, isso significaria um rombo tremendo no orçamento da loja, e quem ouviria era eu. Mas, ela, rija como o seu avô, não recuou. Da viagem de Aveiro para cá pouco se sabe. Ronda de África chegou em todo o seu esplendor, deixando toda a gente que o vislumbrava petrificados de estupefacção perante tamanha magnificência. A cliente foi prontamente avisada, e deslocou-se à loja para adquirir o livro. Mas, chegada à loja, parecia insegura. Viu o livro. Uma e outra vez. De trás para a frente. Examinando meticulosamente cada foto, cada página, cada recordação eterna impressa naquele livro. E, mais de 30 minutos depois, dirigiu-se a nós com um ar desiludido, afirmando que o seu avô não se encontrava no livro. E segundo ela, sem avô não havia livro. Prontamente me ofereci para desenterrar o senhor e montá-lo num elefante por 800€, mas a senhora já não estava interessada. Foi o desespero. Um duro golpe nas contas da loja. E tudo devido ao senhor e ao elefante. E assim, Ronda de África ficou pela loja, tornando se rapidamente numa cara familiar, num ombro amigo. E acolhemo-lo com se fosse nosso, ficando connosco. Até hoje.
Estava a processar calmamente uma venda, quando o senhor me pede para parar porque queria mais qualquer coisa. Sem demoras, acedi ao seu pedido. Pediu-me então algo relacionado com África. Logo aí, pensei no Ronda de África. Mas, achei que estava a sonhar demasiado alto, e não queria ser um Ícaro de livraria. Trouxe-lhe o Vendedor de Passados, de Agualusa. E ao ver o livro, o senhor começou a discursar sobre África com um ar saudoso. Seria agora ou nunca, tinha de arriscar tudo. E, ao pegar no livro, o senhor exclamou: “Ah, ia agora mesmo pedir lhe isso, deixa cá ver isso!”. Ao pousar o livro na mesa, e antes de o consultar, o senhor bateu no livro, exclamando: “LEVO JÁ!”. Uma súbita alegria encheu-me a alma. Contudo, lembrei-me que ainda não tinha revelado o preço ao cliente. Ao disparar: “800€…” o senhor responde com um rigoroso: “LEVO JÁ!”. Parecia um milagre. A recuperação do orçamento, e a venda de algo que pesava na minha consciência, pois tinha sido eu a encomendar o livro. Ronda de África partiu, assim, para mais uma viagem. E nós, por aqui, perdemos mais um dos símbolos desta singela loja…
Os livros passam, a livraria fica… Mais cedo ou mais tarde novo heróis surgirão, provavelmente do nada. Por hoje, ficaremos a recordar os heróis passados…

3 comentários:

Anónimo disse...

O Melhor, Fantástico, Muito bom...

R.G. (Bond)

Anónimo disse...

Do nada surge a possibilidade. A possibilidade dá azo ao inevitável, que facilmente se converte num acto consumado.
Se em relação ao Nada pouco se pode dizer, e menos ainda contar, porque por si só é um conceito ambíguo desprovido de conteúdo, facilmente conectado com "a ausência de", porém é menos do que isso, quando desassociando de qualquer coisa, não sendo necessário ser génio para o dizer, sendo assim direi, e digo, que o Nada é coisa que não existe. Partindo desta premissa ao invés do Nada, há um início. Para o acto que sabemos que se irá consumar temos de início um livro, uma loja, dois homens, uma vontade, uma loucura... talvez mais. Da probabilidade ao inevitável o passo é pequeno, diz quem sabe, e o povo é o verdadeiro sábio de toda a gente “que querer é poder”, mas nem o poder é desprovido de fraquezas, por essa razão a racionalidade, precavendo-se, encontra, ou tenta encontrar, condicionantes favoráveis ao sucesso da vontade. A loja estava vazia, o rapaz por detrás do balcão era o único que lá estava, esse mesmo livreiro trabalhava concentrado e profissionalmente – quiçá merecedor de um aumento salarial –, o livro ali estava, como só ele poderia estar, sem qualquer tipo de inibição, exposto. O ímpeto impaciente por natureza, corajoso por defeito, oportunista nestas circunstâncias, circunstâncias estas de acordo com o à-vontade do “casal”, e das suas fantasias.
É sabido, é certo, que até as nossas maiores fantasias necessitam de arejar, de ganhar espaço, mudar de ares mais precisamente, pois senão, a monótona rotina aniquila o proveito desses mesmos devaneios. Com isto quero dizer, que o tempo dos adereços de cabedal e do Sadomasoquismo já lá vai. Quem não têm uma mascara? Quem não têm uma coleira? Quem não têm umas algemas? Quem não têm um chicote?... Bem chicote nem todos têm, só os mais privilegiados são contemplados por essa sorte. E o mesmo se diz em relação às brincadeiras, quem já não fez strip defronte do espelho? Quem já não depilou os pelos do peito? Quem já não olhou para a perícia com que as nossas irmãs mais velhas rapam as pernas e os sovacos? Por tudo isto se justifica a intenção, se é que ela não se justifica a si só, de expandir fronteiras. É legítimo, e não censurável, que esse casal queira desbravar novos terrenos, aprofundar conhecimentos, galopar por novos horizontes. E assim, aqui, o acto é consumado, quando o querer ganha personalidade na vontade, por outras palavras, de sonhos se comanda a vida... independentemente do lado que se toma.

Murphy RMGG

Anónimo disse...

Fiquei escandalizada com o preço pedido pela Ronda de África! No fim de Junho passado, adquiri os dois volumes, em óptimo estado, por 250€, o que me parece um preço decente.