quarta-feira, setembro 22, 2004

Back in Black

Ah, o regresso ao trabalho depois da folga é sempre algo de especial. Durante um ou dois dias parece que nos esquecemos de tudo o que faz parte da vida de livreiro. Mas, ao voltar à loja, ao colocar-me, qual espantalho, atrás do balcão, volta tudo a ser como era dantes, a dura e inóspita realidade acerta-nos em cheio e devolve-nos à nossa mísera condição humana. Para os leigos, e numa linguagem compreensível, curto é tar de folga.
Espantalho é um termo apropriado. Quando a loja está vazia, muitos clientes passam à porta, ou espreitam pela montra, olhando fixamente para nós. E não entram. Alguns vão a entrar, mas ao verem a loja vazia e O Livreiro no seu posto heróico atrás do balcão, saiem imediatamente. Parece que os ouço, ao longe, como se a sua voz fosse trazida pelo vento seco do verão: “Olha, um livro giro, vou entrar. Ah não, está ali o espantalho, tenho medo, volto noutra altura.”. Por vezes, a loja encontra-se cheia, mas o balcão deserto. O espantalho volta a atacar. Alguns clientes, já com alguns livros na mão, vão olhando de soslaio para o balcão. E quando algum destemido cliente ousa enfrentar olhos nos olhos o espantalho do balcão, correm todos para trás dele, para aproveitarem que enquanto ele distrai o espantalho.
Durante a semana que passou, tivemos a loja ocupada. Não, não foi por terroristas sedento de vingança. Algo pior. Auditores. Todos os dias, enquanto a loja estava aberta, lá estavam eles. Sentados, junto ao balcão. Eu bem vi nos olhos deles, o olhar de quem vê o sofrimento alheio dos funcionários obrigados a permanecer em pé durante as 8 horas do serviço, e eles, sentados, quase sempre a ler, parando apenas para apontar o preço. Alguns tinham alguns problemas nos sentidos, pois não captavam os preços que eram ditos no balcão. Outros ainda revelaram um atraso temporário substancial, não sendo raro ouvir: “Olha, desculpa (enquanto mascavam pastilha) qual foi o preço da terceira venda à meia hora atrás?”. Além de bons ouvintes, eram perspicazes. O melhor momento do dia ocorria cada vez que, estando os livreiros a arrumar a loja ou a atender outros clientes, alguns clientes se dirigiam aos auditores e pediam este ou aquele livro. O olhar de pânico na cara deles era inenarrável. Já partiram, tão rápido quanto chegaram.
O povo não pára de me surpreender. Com a atribulada abertura do ano escolar, a caça aos manuais e livros de leitura e apoio vai no ponto alto. E pedem-nos de tudo: “Tem o livro Serras e Montes, ou Montes e Vales, ou lá o que é.” Ou seja, A Cidade e as Serras de Eça de Queiroz. Temos também aqueles que procuram “A Verdade da Mentira” (Falar Verdade a Mentir, de Almeida Garrett). E claro, não podemos esquecer A Breve História da Lua, de António GUedeão. Ainda agora veio um jovem adquirir a obra de Gedeão. Dei-lhe o livro, ele olhou para ele rapidamente e correu para junto da mãe. Ao chegar ao seu lado, coloca o livro à frente dos seus olhos. A senhora fica visivelmente enfurecida e berra: “TIRA ISSO DAQUI. NÃO TE VOU COMPRAR ISSO, NÃO VOU PAGAR ISSO! SAI!.” O rapaz faz um ar envergonhado e diz à mãe, num tom triste: “Oh mãe, mas é para a escola, a professora mandou ler antes de ir dormir…”. A resposta não se fez esperar: “QUERO LÁ SABER SE É PARA A ESCOLA, E ANTES DE DORMIR A ÚNICA COISA QUE VAIS FAZER É REZAR! AGORA TIRA-ME ISSO DA FRENTE PORQUE NÃO TE VOU PAGAR ISSO!”. A criança veio, depois, pagar o livro sozinha, e visivelmente abalada.
Muitas vezes dizem-me: “Oh Livreiro, tu que dedicas a tua excelsa vida e imensa obra aos livros e à tua suprema loja, não consegues ver os Ídolos.” Eu, olho sabiamente para os delatores e, respondo que não preciso. De forma alguma. Várias vezes por dia temos actuações musicais, quer dentro da loja quer à frente da loja. Certos clientes, após serem atendidos, começam a cantarolar violentamente. Ninguém os pára. Outros, com a música que ecoa lá fora, vão cantarolando, nunca acertando nas letras ou no tom. Muitas vezes, ao passarem lá fora a cantar, o som começa a ouvir-se, primeiro baixo, como se fosse uma ambulância a aproximar-se. Quando atravessam o breve espaço da porta, o som invade e preenche o interior da loja, causando muitas vezes o pânico. Depois, afasta-se lentamente, com o som a diminuir de intensidade, e a calma a reinar.
Outro espectáculo interessante é ver alguém a consultar um livro ter um ataque de soluços. Depois, depende de cada pessoa. É bastante engraçado ver uma pessoa, junto a uma mesa cheia de livros, a consultar os livros, e mais ou menos a cada página que passa, dá um saltinho abixanado, geralmente acompanhado de um som não muito edificante. Cada folha, cada salto. Uns abanam-se mais que outros, que apesar de não saltarem tanto, são bastante mais sonoros. E muitas vezes vêm também falar connosco, aos saltinhos e aos soluços. É bastante difícil suster o riso.

4 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

...balcão é o sítio para pousar a mala enquanto se observa o livreiro a degladiar-se com o embrulho do "earth seen from the air" feito no joelho, visto que o balcão é o sítio para pousar a mala enquanto se observa o livreiro a degladiar-se com o embrulho do "earth seen from the air" feito no joelho, visto que o balcão é o sítio para pousar a mala enquanto se observa...

Anónimo disse...

...balcão é o sítio para pousar a mala enquanto se observa o livreiro a degladiar-se com o embrulho do "earth seen from the air" feito no joelho, visto que o balcão é o sítio para pousar a mala enquanto se observa o livreiro a degladiar-se com o embrulho do "earth seen from the air" feito no joelho, visto que o balcão é o sítio para pousar a mala enquanto se observa...