quarta-feira, setembro 22, 2004

Back in Black

Ah, o regresso ao trabalho depois da folga é sempre algo de especial. Durante um ou dois dias parece que nos esquecemos de tudo o que faz parte da vida de livreiro. Mas, ao voltar à loja, ao colocar-me, qual espantalho, atrás do balcão, volta tudo a ser como era dantes, a dura e inóspita realidade acerta-nos em cheio e devolve-nos à nossa mísera condição humana. Para os leigos, e numa linguagem compreensível, curto é tar de folga.
Espantalho é um termo apropriado. Quando a loja está vazia, muitos clientes passam à porta, ou espreitam pela montra, olhando fixamente para nós. E não entram. Alguns vão a entrar, mas ao verem a loja vazia e O Livreiro no seu posto heróico atrás do balcão, saiem imediatamente. Parece que os ouço, ao longe, como se a sua voz fosse trazida pelo vento seco do verão: “Olha, um livro giro, vou entrar. Ah não, está ali o espantalho, tenho medo, volto noutra altura.”. Por vezes, a loja encontra-se cheia, mas o balcão deserto. O espantalho volta a atacar. Alguns clientes, já com alguns livros na mão, vão olhando de soslaio para o balcão. E quando algum destemido cliente ousa enfrentar olhos nos olhos o espantalho do balcão, correm todos para trás dele, para aproveitarem que enquanto ele distrai o espantalho.
Durante a semana que passou, tivemos a loja ocupada. Não, não foi por terroristas sedento de vingança. Algo pior. Auditores. Todos os dias, enquanto a loja estava aberta, lá estavam eles. Sentados, junto ao balcão. Eu bem vi nos olhos deles, o olhar de quem vê o sofrimento alheio dos funcionários obrigados a permanecer em pé durante as 8 horas do serviço, e eles, sentados, quase sempre a ler, parando apenas para apontar o preço. Alguns tinham alguns problemas nos sentidos, pois não captavam os preços que eram ditos no balcão. Outros ainda revelaram um atraso temporário substancial, não sendo raro ouvir: “Olha, desculpa (enquanto mascavam pastilha) qual foi o preço da terceira venda à meia hora atrás?”. Além de bons ouvintes, eram perspicazes. O melhor momento do dia ocorria cada vez que, estando os livreiros a arrumar a loja ou a atender outros clientes, alguns clientes se dirigiam aos auditores e pediam este ou aquele livro. O olhar de pânico na cara deles era inenarrável. Já partiram, tão rápido quanto chegaram.
O povo não pára de me surpreender. Com a atribulada abertura do ano escolar, a caça aos manuais e livros de leitura e apoio vai no ponto alto. E pedem-nos de tudo: “Tem o livro Serras e Montes, ou Montes e Vales, ou lá o que é.” Ou seja, A Cidade e as Serras de Eça de Queiroz. Temos também aqueles que procuram “A Verdade da Mentira” (Falar Verdade a Mentir, de Almeida Garrett). E claro, não podemos esquecer A Breve História da Lua, de António GUedeão. Ainda agora veio um jovem adquirir a obra de Gedeão. Dei-lhe o livro, ele olhou para ele rapidamente e correu para junto da mãe. Ao chegar ao seu lado, coloca o livro à frente dos seus olhos. A senhora fica visivelmente enfurecida e berra: “TIRA ISSO DAQUI. NÃO TE VOU COMPRAR ISSO, NÃO VOU PAGAR ISSO! SAI!.” O rapaz faz um ar envergonhado e diz à mãe, num tom triste: “Oh mãe, mas é para a escola, a professora mandou ler antes de ir dormir…”. A resposta não se fez esperar: “QUERO LÁ SABER SE É PARA A ESCOLA, E ANTES DE DORMIR A ÚNICA COISA QUE VAIS FAZER É REZAR! AGORA TIRA-ME ISSO DA FRENTE PORQUE NÃO TE VOU PAGAR ISSO!”. A criança veio, depois, pagar o livro sozinha, e visivelmente abalada.
Muitas vezes dizem-me: “Oh Livreiro, tu que dedicas a tua excelsa vida e imensa obra aos livros e à tua suprema loja, não consegues ver os Ídolos.” Eu, olho sabiamente para os delatores e, respondo que não preciso. De forma alguma. Várias vezes por dia temos actuações musicais, quer dentro da loja quer à frente da loja. Certos clientes, após serem atendidos, começam a cantarolar violentamente. Ninguém os pára. Outros, com a música que ecoa lá fora, vão cantarolando, nunca acertando nas letras ou no tom. Muitas vezes, ao passarem lá fora a cantar, o som começa a ouvir-se, primeiro baixo, como se fosse uma ambulância a aproximar-se. Quando atravessam o breve espaço da porta, o som invade e preenche o interior da loja, causando muitas vezes o pânico. Depois, afasta-se lentamente, com o som a diminuir de intensidade, e a calma a reinar.
Outro espectáculo interessante é ver alguém a consultar um livro ter um ataque de soluços. Depois, depende de cada pessoa. É bastante engraçado ver uma pessoa, junto a uma mesa cheia de livros, a consultar os livros, e mais ou menos a cada página que passa, dá um saltinho abixanado, geralmente acompanhado de um som não muito edificante. Cada folha, cada salto. Uns abanam-se mais que outros, que apesar de não saltarem tanto, são bastante mais sonoros. E muitas vezes vêm também falar connosco, aos saltinhos e aos soluços. É bastante difícil suster o riso.

quinta-feira, setembro 16, 2004

Doenças

Nem tudo tem graça neste espaço que a raça humana apelidou de loja. Aliás, nem há assim tanta coisa engraçada agora que penso nisso. Hoje, atendi um cliente. Chegou ao balcão, e parou para consultar o livro que carregava nas suas mãos. Pelo estado delas, pulso com um bruto relógio de ouro, via-se que era um senhor que levava uma vida dura. Deu mais um trémulo passo rumo ao balcão e chegando perto deste, deixa cair violentamente o livro em cima do balcão. O livro não cai por milímetros. A chave do seu BMW escorrega-lhe também pelos dedos, demonstrando algo que parecia inegável. Este homem, com porte atlético, relógio de ouro e BMW, sofre de Parkinson. Digo-lhe boa noite, ele não responde. Até a voz está afectada, pobre homem. Pensei de imediato em fazer lhe um desconto. Quando lhe disse o valor, deixou cair o cartão AMERICAN EXPRESS em cima do balcão. Novamente, a doença não o deixava segurar nada nas suas frágeis mãos. A natureza é bela, mas cruel por vezes. Processei a venda, pensando nas vicissitudes da vida mundana que levamos. Ao entregar-lhe o cartão, ouvi um ténue obrigado. Afinal, ele fala. Nem tudo está perdido. Fiquei um pouco mais em paz. Depois, lá seguiu ele, com a sua mulher loura, a caminho do sem BMW. Deus o proteja.
A ignorância é felicidade. Pelo menos é o que dizem. E se é verdade, anda por este mundo muita gente feliz da vida. Parece que os vejo agora, aos magotes, saltando pelos campos. Burros que nem uma porta. Uma senhora procurava uma GEOGRAFIA DO MUNDO. Queria uma geografia do mundo, dizia ela, apesar de eu lhe explicar que só tínhamos atlas. Segundo ela, uma geografia do mundo tinha: “MAPA DO PAISES DO MUNDO, MONTANHA DO MUNDO, RIO DO MUNDO!”. Tentei, com todas as minhas forças, explicar-lhe que os Atlas também continham tais informações. Acedeu, contrariada, a consultar um Atlas. Ao folheá-lo, parece que vislumbrou a face de Deus. Boca entreaberta, olhos escuros esbugalhados. Fecha o livro, visivelmente desiludida. “AFINAL QUERO SÓ MAPA MUNDO!”. O problema é que não temos mapas desse género. Mas, a senhora insistiu: “COMO NÃO TEM MAPA MUNDO?”. Não temos, não tivemos, não vamos ter, provavelmente. Pareceu convencida e afastou-se. Depois, qual Obelix a aproximar-se do caldeirão tentando enganar Panoramix e beber a mítica poção, a senhora passava por aqui e falava comigo de ângulos em que eu não a conseguia ver: “TEM MAPA MUNDO?” dizia, alterando ligeiramente a voz. À terceira ou quarta, passou à minha frente, e enquanto perguntava fazia um rectângulo com as mãos: “TEM MAPA? PARA POR PAREDE.”. Finalmente, decidiu-se por um mini Atlas. E lá seguiu, feliz.
Ainda há momentos, tivemos um jovem, com o cabelo à Beckham (tipo, como ele utilizou durante bastante tempo, talvez um mês, preso atrás) a perguntar pelos mini livros. O que eram, para que serviam. O jovem estava maravilhado. É então, no meio do delírio, que reparou no mini livro com o título ZARATRUSTA. “ZARATRUSTA… QUÉ ISSO, UMA DOENÇA?!”. Expliquei-lhe, e ele, como sinal de agradecimento, levantou o seu polegar e saiu em direcção a outros livros.
Num momento calmo da loja, uma jovem que deveria andar na casa dos 14 anos, não mais, aproxima-se do balcão. Como seria de esperar, não disse nada antes de passar à razão da sua vinda ao respeitável estabelecimento. Disparou: “ONDE ESTÁ O CINEMA?” Sparta, o velho Sparta, estava ao balcão, enquanto eu arrumava os livros. Olhou para mim, calmamente. Via-se nos seus olhos cansados que nem sequer tinha percebido bem a pergunta que lhe tinha sido feita. “Sabes onde está?”, perguntou-me. Apontei-lhe a zona dos livros práticos, onde estão os livros de cinema. Ele indicou à jovem o caminho. Ela bateu o pé e exclamou: “NÃO! ONDE ESTÁ O CINEMA! AQUI! AQUI NO CENTRO!!!”. Bateu novamente o pé, e saiu furiosa da loja. Devíamos proibir a entrada a raparigas que estão a ter o período pela primeira vez. Ainda pensei dizer a Sparta para segui-la e dar lhe o livro: O LIVRO DO PERÍODO. Mas, Sparta parecia exausto.
Dia após dia, a caça ao desconto perdido (obrigado LFL) continua. Em várias ocasiões manifestei ao meu superior mestre livreiro, esse mito do meio fundo movido a tabaco, que deveríamos criar uma nova categoria de descontos, categoria essa que devia figurar em letras garrafais na factura. Proponho a criação, para aqueles clientes com Gold Card e nome pomposo, de categorias como: DESCONTO PARA PEDINTES, DESCONTO PARA DESALOJADOS, DESCONTO PARA POBRES, DESCONTO PARA ANORMAIS, DESCONTO PARA PERSONAGENS, DESCONTO PARA MENDIGOS. Nos casos mais extremos poderíamos ter DESCONTO PARA ANORMAIS. Enfim, a lista pode ser interminável. A estupidez também o é.

Os Imortais

Depois de um breve hiato cá está o Livreiro novamente ao vosso dispor. Mas não abusem, por favor.
Bom, recentemente, em mais uma das minhas incursões de âmbito profissional por territórios livreiros, vi-me obrigado a arrumar os livros do Diário de Sofia. Movido por uma curiosidade masoquista, li a contra-capa do terceiro livro, na esperança de desvendar o mistério da idade de Sofia. E eis que, para meu espanto, Sofia, ao entrar para o 12º ano, ainda tem dezassete. Ou seja, 10º, 11º e 12º com dezassete anos. Mas, desta vez menciona que tem quase dezoito. Não te preocupes Sofia, quando acabares o curso de Medicina já tens dezoito. É o realismo da escrita que tanto deve atrair as jovens. Força, continuem. E agora, temos o diário de Mariana. Quem é Mariana? Não sei, mas se for imortal como a Sofia temos sucesso garantido. Melhor, se comprarem o Quinto Livro do Diário de Sofia bem como o Diário de Mariana, em vez de serem forçosamente submetidos a sessões com um psiquiatra para o resto da vida, ganham um diário. Pois é amiguinhas, vocês mesmas podem vir a ser imortais como a Sofia. Mas, desde já vos digo algo, se a Sofia e Mariana se degladiarem até à morte e consequente decapitação porque no fim só pode haver uma, eu compro já!
Imortal é a questão dos descontos. Sim, ainda encontramos almas poderosas que procuram ascender ao céu dos descontos por todo e qualquer meio possível. Temos o caso do senhor que, ao exigir o desconto, refere que é bastante amigo de um dos nossos colegas. Ao verificar a minha desconfiança, disse que não se lembrava do nome, mas que era um rapaz de cabelo escuro. Bom, sendo que na loja existem apenas 5 rapazes que correspondem à descrição... Não quis embaraçar mais o senhor e deixei-o ir. Já uma senhora, com um ar confiante e vencedor, chegada ao balcão e depois de ter atirado devidamente os livros para cima deste com a habitual delicadeza, pede o seu desconto. O meu colga pergunta-lhe porquê. Ela diz que é nossa colaboradora. Um silêncio negro instalou-se. Queríamos ouvir mais. Ela, reparando na nossa indisfraçável desconfiança, prosseguiu: "Sim, sou vossa colaboradora. Sou a vossa fornecedora de RECORTES DE JORNAIS!". Se alguém merece um desconto é esta senhora. Genial, brilhante, inovadora. Ouvimos diariamente várias desculpas. Mas, esta, pela originalidade, merece o livro gratuitamente numa bandeja. Pensei em convidá-a para actuar em casamentos ou despedidas de solteiros. Quem sabe, iniciar uma carreira de artista? Recortes de jornais, portanto... Muito bom.
Falando em genialidade, temos o típico caso da apurada e trabalhada pronúncia inglesa de alguns clientes. Enquanto trabalhava com umas facturas, um senhor apresenta-se pelo meu lado direito e pergunta: "Tem o livro CINK?". Parei um segundo para pensar. Nesse segundo, tenho de discernir rapidamente o que o cliente realmente deseja. Sem demoras, acrescentou: "cink. CINK. PENSAR!". Boa, não digas a ninguém para pensar junto à àgua, senão ainda se afoga. Lá fiz a habitual e mandatória busca que veio revelar bastantes livros com THINK (ou cink, como preferirem) no título. Pergunto ao senhor se ele sabia nome do autor, ao que ele responde: "Se me disser qual é eu digo-lhe o nome". Descartes... Nietzsche... Heiddeger... Nada se compara a este homem e à sua mente avançada.
O novo livro de Isabel Allende, Bosque dos Pigmeus, tem se vendido bastante bem, como não poderia deixar de ser. E, sendo um favorito do público em geral, já teve o seu nome distorcido das mais variadas maneiras, entre as quais: O BOSQUE DOS COGUMELOS e o O BOSQUE DOS PIGMENTOS. Já o Código Da Vinci Descodificado continua a ser muitas vezes denominado como o DESCODIFICADOR. "Isto é o romance, já tenho. Tem o DESCODIFICADOR?" perguntam os clientes. Não sei que pretendem eles descodificar, mas se querem ver mulheres desnudas em actos impróprios para menores esqueçam. Um livro que vai dar que falar é Eargon, um livro sobre um rapaz e um dragão, escrito por um jovem de 15 anos. Que, se lermos no livro afinal tem 20. Enfim. Diversos clientes têm demonstrado interesse no livro, e a pergunta que mais vezes ecoa através do ar corrompido pelo belo sistema de ar condicionado é: "É uma trilogia? Onde estão os outros?". A obsessão humana pelas trilogias é extremamente curiosa. Sai um livro, o primeiro do rapaz, e o público já pergunta pelos outros dois. Vendo bem, soa muito bem dizer: "Ah, sim, já li a Trilogia. Sim, três livros. Uma trilogia. Vejam como sou fixe." Só posso imaginar os fãs do Harry Potter: "Trilogia. Bem, eu tou a ler uma... hmmm... pois...". Pentalogia não soa minimante bem, quanto mais heptalogia. Já sabem, para todos os futuros e presentes escritores, a Trilogia é o caminho. Palavra de Livreiro.

sábado, setembro 11, 2004

Clic

Um dos cantos da nossa loja está atulhado de BD. Todo e qualquer esforço para o arrumar vem sempre a revelar-se algo de sobre-humano. Mas, atenção, nós nunca desistimos. Na BD encontramos um pouco de tudo para todas as idades. E existe uma BD em especial que tem merecido maior destaque. É uma publicação para adultos, do autor Milo Manara. Existem várias obras, mas a mais curiosa parece ser a trilogia O CLIC. Já não é a primeira vez que, as BD de Manara são encobertas por algum monte de outras BD, talvez por alguma senhora mais zelosa. Mas, mais cedo ou mais tarde, algum transeunte repara nos seus encantos e coloca-a no seu devido local. E de que é que trata O CLIC? Este clic, refere-se a uma máquina que apenas com um simples e inocente clic, deixa as criaturas do sexo feminino tresloucadas de desejo. Ora, parece-me correcto e extremamente propositado. Imaginem um cientista, magnifico estudante e com um futuro brilhante à sua frente, quando recebe os parabéns dos seus professores: “Parabéns rapaz, tens um grande potencial. Tão grande, que podes um dia vir a fazer algo para o bem da humanidade e salvar o mundo”, e o cientista responde: “Qual quê, vou inventar uma máquina para ver gajas nuas”.
Outro fenómeno curioso é o livro O DIÁRIO DE SOFIA. Este livro conta a história de uma jovem na sua adolescência, e tem sido um enorme sucesso.
Mas, algo de estranho se esconde por trás desta Sofia. Talvez ela não seja tão inocente como quer fazer parecer. Senão vejamos: no primeiro livro, a Sofia tem 17 anos e está a entrar para o 10º ano. É no mínimo de estranhar, com 17 anos estava O Livreiro a ser inundado de gema de ovo e cebola, enquanto me pintavam a cara com verniz, nas praxes da Universidade. E ela no 10º ano. Não sei, mas pode ser sinónimo de uma vida ímpia, envolvendo substâncias ilícitas e actividades criminais, assim como insucesso escolar. Mas, há mais. No segundo livro, Sofia entra para o 11º ano. Como? Ninguém sabe. O curioso é que Sofia continua com 17 anos. Ou seja, vamos supor que Sofia entrou para o 10º ano em Setembro de 2003, então com 17 anos. Em Setembro de 2004, ao entrar para o 11º ano, continua com 17 anos. Além de burra, aparenta ser imortal. É no mínimo suspeito. Esta Sofia não pode ser um bom exemplo para os jovens. Uma possibilidade já adiantada é que Sofia, aparentemente uma simples jovem, sofra do síndrome de Mantorras, e tenha rasurado o seu B.I., tornando assim impossível determinar a sua real idade.
Nos raros momentos em que a paz e o silêncio reinam na loja, aproveito para ficar a conhecer um pouco das mais variadas obras dos mais diversos sectores da loja. Um destes dias, debrucei a minha atenção sobre a área da Arte, Pintura e Arquitectura. Vasculhando os livros à procura de algo que me despertasse uma curiosidade especial, deparei-me com um pequeno livro chamado O LIVRO DA ARTE. Este livro é uma compilação de 500 obras, com uma pequena descrição/apreciação crítica. Fui vendo, obra a obra, e admirando a qualidade e o talento dos mais variados autores. Se é verdade que existem obras impressionantes, existem outras que são difíceis de definir. Génio? Loucura? Falta de jeito? Só Deus sabe. O caso paradigmático do que acabei de dizer é uma pintura (?) de Robert Ryman. Imaginem, e não é difícil, uma tela branca. Uma camada de esmalte branco aplicado numa folha de alumínio. Completamente branca, apenas fixada à parede por parafusos de metal. Agora, reparem na brilhante descrição do crítico: “ (os parafusos) fazem parte integral da composição nu, que tem por finalidade libertar o quadro de qualquer traço ilusório de pintura. (…) Dá ao espectador uma grande tranquilidade, que é constante na sua intensidade; (…) demonstra a interacção única entre a planura da superfície do quadro e a parede lisa por trás. A relação da obra com o Minimalismo é revelada pela ausência de emoção e ilusão na sua construção. (…) Concentra-se na ênfase dada às qualidades dos materiais usados.” E foi neste momento, quando li este delírio literário que a minha vida mudou. Quando for grande quero ser crítico de arte. A espontaneidade, a classe, a imaginação… Genial mesmo, brilhante. Se este senhor diz isto acerca de uma tela em branco, imagino o que não dirá do resto. Os meus maiores e sinceros parabéns. Quando releio aquelas palavras, aparentemente tão simples, perco toda e qualquer vontade de escrever, seja o que for. A imagem da tela e da crítica surge, como uma assombração, na minha mente e aí sei que não sou digno de escrever. Talvez um dia chegue ao seu nível…

quinta-feira, setembro 09, 2004

Mortos e Enterrados

Diversas vezes sou confrontado com situações inesperadas e com as quais não sei como reagir. Vejamos os seguintes casos: há um tipo de clientes que se destaca por ser único 99% das vezes que vêm à livraria, os emigrantes de Leste. Seja por quererem dicionários de Croata – Português ou Ucraniano – Português ou seja por quererem livros escolares da 1ª classe para os filhos de 15 anos. Num destes dias, uma senhora de Leste, acompanhada de um filho com cerca de 16 anos e outro ainda bebé, aproximou-se do balcão e com o seu característico sotaque disse: “Olhe, tem livro Homens de Marte, Mulher de Vénus?”. Expliquei à senhora que de momento não tínhamos o livro. Ela ficou um pouco irritada e disse: “Em livraria de Faro havia livro.” Confirmei que efectivamente existia um exemplar em Faro, e expliquei que o facto de a livraria de Farto ter o livro não significava que nós o tivéssemos. Em seguida, pediu-me para ver se existia o livro em mais algum lado. Enquanto estava compenetrado na pesquisa, vejo pelo canto do olho o jovem a apontar para mim com um ar desconfiado. Aproxima-se do ouvido da mãe e, enquanto apontava ostensivamente, exclama: “Olha… Olha… (e diz o meu nome, duas vezes!). “Boa, sabe ler “ pensei eu. Daqui a uns anos já escreve. O problema é que o rapaz disse isso de forma totalmente audível. Então lá estava eu, empenhado como qualquer bom profissional do universo livreiro, a tentar pesquisar e a ouvir o rapaz repetidamente, a 1 metro (!) de mim, a dizer o meu nome e a apontar paro meu identificador. Nada constrangedor. Depois, quando estava a revelar o resultado da minha pesquisa, olhavam-me como se fosse alguma aparição divina.
Já hoje, o primeiro cliente que atendi foi um senhor acompanhado da mulher e do filho. Então, vinha com um desejo insaciável de livros do Gaston. Tudo porque, em Marrocos, aprendeu a falar francês com os livros do Gaston. Imagina-se o domínio extraordinário da língua. Primeiro, queria os livros em português, porque queria a colecção em português. Quando lhe mostro o livro que estava na montra, começa a reclamar, porque segundo ele: “Ah, MAS ISTO É IGUAL AO FRANCÊS! EU CONHEÇO ISTO!”. A perspicácia dele em relação a esta problemática deixou me de pé atrás. Neste momento, vi que estava a lidar com alguém cuja inteligência estava num plano muito superior ao meu. Tinha que agir cuidadosamente. Depois de lhe ter dado o primeiro livro, comecei a procurar mais livros da mesma colecção, pois foi essa a indicação que me deu quando nos encontrávamos junto ao balcão. Quando procurava fanaticamente a colecção, ouço do meu lado esquerdo o senhor a perguntar à sua mulher: “O QUE É QUE O GAJO ESTÁ A FAZER?”. Novamente, o cliente falava de forma perfeitamente audível e perceptível. Fingi que não ouvi, e a mulher também não retorquiu. Ele insistiu: “MAS O QUE É QUE O GAJO ESTÁ A FAZER?”. E depois, acrescentou: “desculpe, o que é que está a fazer?”. A procurar vida em Marte, acho que facilmente se depreende que é o que estou a fazer. E parece que encontrei. Lá lhe expliquei o que estava a fazer, o que deixou o senhor bastante espantado. Em seguida incitou-me a ler a BD de Gaston. Tive que concordar que tinha momentos engraçados. Seguimos para o balcão, para finalizar a transacção. Dei à sua esposa o nosso cartão de cliente, ela aquiesceu em preenche-lo, mas depois lembrou-se que tinha de ir almoçar, porque queria ir para o cinema. Segundo ela, “temos de ir comer, temos temos, senão o miúdo encharca-se em pipocas.” Dei o talão para a senhora assinar, e ela assina toda feliz da vida. Aí, exclama o marido: “O QUÊ?! ENTÃO ASSINASTE O MEU TALÃO DO MEU CARTÂO?!”. Ela sorriu e disse: “FIZ A TUA ASSINATURA, É O HÁBITO!”. Ele franziu as sobrancelhas e não disse mais nada. Antes de abandonarem as instalações, a senhora ainda teve tempo de mostrar por breves segundos o seu novo cartão de cliente, mais um cartão para gastar o dinheiro do seu marido. Ele viu o cartão e exclamou: “AH! MAS ESTAMOS NESTA LOJA?! MAS ISTO AINDA EXISTE?! PENSEI QUE TINHA ACABADO!” É, acabou. O que está ali escrito de termos algumas dezenas de lojas é só para enganar, já estamos mortos e enterrados. Eu próprio (e agora percebo o porquê de certas coisas, agora tudo faz sentido) sou uma assombração, que paira sem vida no limbo dos livreiros. Por quanto tempo?

terça-feira, setembro 07, 2004

Cheira a Lisboa

Existe um livro chamado SELECÇÂO NACIONAL DE FUTEBOL - NÚMERO, FACTOS, NOMES… Junto ao balcão tínhamos uma publicidade, em cartão, com a capa do livro: uma camisola encarnada com as cinco quinas. Este facto, só por si, não encerra nada de especial. Mas, certo dia, uma tia acompanhada de crianças e jovens (Salvador, Lourenço e Martim, entre outros) entra na loja, causando um grande alvoroço. Entre gritos e desarrumação, chega finalmente ao balcão. Desde logo começa bem, interrompendo o meu colega, enquanto este atendia outro cliente. Depois, quando já tinha toda a atenção e quando o colega começou a falar, atende o telefone, começa a falar aos berros e vira-se de costas, ignorando-o totalmente. Quando termina, volta a falar com ele. Nem um mínimo pedido de desculpas, nem nada que se assemelhe. Ela, olha para o cartaz do livro, e pede um exemplar. Examina-o detalhadamente, e pergunta: "Onde é que está a camisola? Posso ver?". O meu colega pensou durante uns segundos, não percebendo o que se estava a passar. Ao ser inquirida sobre a que camisola é que se referia, respondeu: "A camisola, a oferta do livro!". O meu colega explicou que não existia qualquer tipo de oferta com esse livro. A senhora enfureceu-se: "Desculpe, está aqui o cartaz com a camisola, onde é que está a camisola? É uma oferta." O colega, pacientemente, explicou que a camisola é a capa do livro. A tia voltou insistir que era uma oferta. Confusos, saímos de trás do balcão e fomos confirmar o cartaz. Onde a senhora dizia que algo mencionava uma oferta, só encontrámos o titulo do livro. Mais nada. Quando finalmente cedeu, entre mais um telefonema e alguns berros para os miúdos, não quis levar o livro, porque "Não vale a pena sem a camisola". Quando pensámos que a situação ia acalmar, eis que chega um dos miúdos que a acompanhava, com o livro na mão: "Onde é que está a camisola?". Não há qualquer camisola, respondi eu. "Mas a minha tia disse que havia...". Enquanto ele perguntava, os outros juntaram-se a ele, desejosos de ver a tal camisola. Saíram bastante frustrados, enquanto a tia lá berrava em mais um telefonema.
Também relacionado com futebol, aconteceu outro caso. Numa manhã calma, em que estou sozinho no balcão, entra um senhor e um jovem O senhor, com um ar distinto, lança um olha desconfiado para um livro e prontamente dirige-se a mim. "Bom dia, podia me dar uma lupa, se faz favor?" diz o senhor. Uma lupa? - Pensei eu... Boa, que bela maneira de começar o dia. Isto promete... O senhor continuou: "Sabe, é que está ali um livro sobre o futebol de Lisboa, e eu acho que estou na bancada." A imagem em causa está bastante desfocada, não se consegue diferenciar ninguém. Mas o senhor queria mesmo tentar. Aí, começou a discursar sobre o campo (não era um estádio, mas sim um campo), sobre os locais onde se podiam sentar os ricos e os pobres, e sobre a magia do futebol. Como não podia deixar de ser, demonstrei o meu alargado conhecimento sobre a matéria em questão, deixando o cliente visivelmente impressionado. Depois de me fazer umas perguntas, e eu ter respondido acertadamente a elas, vira-se para o jovem, dá lhe um valente calduço, deixando-o cabisbaixo, e exclama: "Estás a ver?! Este jovem sabe o que é futebol. Não é como tu, tens a mania que a bola era quadrada antigamente! Assim dá gosto falar de futebol com o jovem. Vê se aprendes!". O jovem ficou cada vez mais embaraçado enquanto o cliente prosseguia com o seu discurso apologista do futebol que se praticava nas décadas de 60 e 70. Despediu-se, manifestando o seu contentamento por falar comigo, e saiu, sempre a criticar o filho.
Um livro com algum sucesso é o livro com fotografias panorâmicas sobre Lisboa. Grande parte das compras do livro destinam-se a ofertas, e devo dizer que é um belíssimo presente. Com essa intenção, um senhor com a sua mãe idosa (já mencionados em crónicas passadas) trouxe o livro até ao balcão, no sentido de tirar o plástico e observar melhor o livro, para ver se era digno de ser oferecido. Depois de retirado o plástico que envolvia carinhosamente o livro, começaram quase imediatamente a folhear o livro. Cuidadosamente passavam página após página, acompanhando sempre cada foto com um sonoro "AHHHHHHHHHHHH" de espanto. Os comentários eram qualquer coisa como: "Ah que fabuloso, incrível, maravilhoso, o máximo!". Até que chegam a uma fotografia que consiste em Lisboa vista do Tejo, com uma magnífica vista das colinas. Observam lentamente a foto, uma e outra vez, comentando: "Ah... Este fotógrafo é mesmo o máximo. O máximo. Tirou estas fotos tão boas, escondendo o que está por trás dos montes. Sim, por trás dos montes. Por trás destes montes, para aqui, (dizia isto enquanto gesticulava à imagem e semelhança de Cláudio Ramos) isto aqui por trás é TUUUUUUUUUUUDO badalhoqueira. Para esquerda e para a direita, só badalhoquice! Um HO-RROR!". A perspectiva sociologica do cliente era deveras interessante e digna de registo. Quem sabe se um dia não lança um livro?

sábado, setembro 04, 2004

Afinal havia outra

Ao abandonar a casa olho, ensonado, para o céu que cobre todo o globo. E, a visão amedronta-me: nuvens. Nuvens negras. Chuva. Só pode significar uma coisa. Vocês sabem do que eu estou a falar.
Logo para começar em beleza o dia, temos as habituais mães/avós a comprar os livros para as crianças, logo pela manhã. Uma das primeiras mães, não conseguindo encontrar nada naquele monte interminável de livros desarrumados que apelidamos de zona infantil, dirige-se a mim e diz: “OLHE… TEM O BAMBI 4?”. Para quem não conhece, é o livro em que o Bambi, munido da sua fita vermelha e da sua arma de destruição maciça, destrói o Iraque para construir um oleoduto e um gasoduto. Além de extremamente educativo, tem um forte cariz histórico. A não perder.
A cultura e versatilidade dos nossos clientes não para de surpreender quem diariamente faz a sua vida atrás daquele balcão. Senão vejamos: uma senhora, de meia-idade, pretendia o livro Os Últimos Instantes Da Vida. Obviamente, não sabia a autora. A busca do nosso extenso catálogo veio a revelar-se infrutífera. Frustrada, a senhora queria pelo menos ver se tínhamos em Inglês. Perguntei-lhe qual o título do livro em Inglês. A cliente pensou, pensou, pensou e disse: “LAST INSTANTES LIFES”. Muito bem, pensei eu. Que honra, devo estar perante uma daquelas pessoas que traduz os títulos do cinema americano em algo mítico. Um pequeno exemplo: o filme THE ONE, com Jet Li. Em português, FORÇA EXPLOSIVA. Faz sentido: The = Força; One = Explosiva. Tradução literal.
Tivemos também a visita de mais uma das muitas comediantes perdidas do nosso país. Estava com uma amiga. A cliente pergunta-me insistentemente se faço o desconto com o cartão ACP, apesar de este ter passado de validade à 3 anos. Lá encontrou o certo, pudemos prosseguir. Então, a amiga estende a mão gentilmente e oferece-me o livro para passar, acompanhado do seu cartão de crédito. Passo o livro, e digo prontamente o preço à senhora. A amiga, simpática, debruça-se sobre o balcão, olhando para o preço, perguntado depois: “O preço é esse? Então o desconto?”. A amiga leva o livro, a outra é que tem cartão, o que me fez perguntar: “mas quer que faça desconto?”. Ao que a senhora, inteligentemente, responde: “ERA ESSA A IDEIA!”. E ri-se muito, muito… E toda a gente à volta, calada e circunspecta. Somos um público difícil. Depois, seguiu o espectáculo. A sua amiga estava a tentar inserir o código do cartão, mas a outra não se calava. O resultado só podia ser um: o engano. A senhora ficou bastante envergonhada, e a amiga, não contente, disse: “TAS A VER, NÃO TE DISSE PARA NÃO USARES O CARTÃO ROUBADO?”. E voltou a rir-se, sozinha. Acho que estava a gostar, e quem sou eu para lhe negar, certamente, o único prazer da vida dela?
Comparativamente a alguns clientes, eu, mero livreiro, não sou digno de partilhar o mesmo espaço que tantas obras afamadas. Reparem na inteligência suprema de um senhor, que, chegado ao balcão diz: “QUERO LIVROS DE AGRICULTURA… A-GRI-CUL-TU-RA.TEM?”. O que levará alguém, aparentemente normal, a dizer estas coisas? Problemas na infância? Só Deus saberá. Só falta mesmo dizer que não sei ler e escrever. Não sei se ele me tomou por algum emigrante de Leste, e que, deste modo, não entendesse a língua de Camões. Algo foi. Quantos neurónios tinha ele queimado durante a guerra do Ultramar? Provavelmente pensou: “Ah, ele trabalha numa livraria, usa computadores, está ali já à algum tempo a atender clientes. Pois, tudo indica mesmo que não fala português. É melhor falar como se tivesse uma deficiência na fala e na mente, talvez me perceba melhor.”
No nosso balcão pode-se encontrar algo curioso: os Mini-Livros. Os clientes geralmente chegam ao balcão e perguntam, muito admirados: “Ah, Mini Livros… O que é isto?”. Respondo que são Mini Livros, ao que se segue invariavelmente o seguinte: “Mas… São o quê? Mini Livros? Que é isso?”. São livros pequenos, em tamanho, explico eu. As pessoas parecem desiludidas. Não sei que tipo de milagre ou invenção inigualável esperavam ver nos Mini Livros. Aliás, o nome é enganador. Mini Livros deveria-se referir a enciclopédias ou atlas, e nunca a livros com 5cm de altura e largura. Depois temos clientes que, mergulhados no fascínio dos Mini Livros, estão a fazer a colecção toda. Existe uma cliente em especial que é obcecada, levando sempre bastantes, até mesmo repetidos, a cada visita. Hoje, um cliente, depois de fazer a pergunta da praxe sobre os Mini Livros, ficou curioso acerca de um deles. Chamou a minha atenção e exclamou: “Faz favor, queria levar aqui o livro do Bob Marlon”. Que não me respeitem a mim, é uma coisa. Agora faltar ao respeito à memória de um ícone do século XX é inacreditável. O cliente ainda acrescentou: “Sou mesmo admirador dele…”. Tanto que nem sabe o nome.
Para finalizar, o meu colega Poeta assistiu a uma cena no mínimo caricata. Um cliente, aparentemente calmo, dirige-se ao balcão para efectuar (mais uma) troca do Código Da Vinci. Eis senão quando, do meio da bruma, aparece uma senhora, a sua mulher. Antes mesmo de se aproximar dele dispara: “Queres trocar esse livro para poderes ir ter com a outra! Queres é estar com ela! É para a tua amante! Andas a enganar-me! ” A mulher estava bastante perturbada, e chegou a exclamar mais coisas que se tornaram imperceptíveis... O cliente não parecia minimamente afectado com a situação, e prosseguiu com a troca. Deixou o seu capacete na mesa e seguiu com a senhora para uma zona mais calma da loja. Aí, conversaram durante algum tempo, até que, quando se dirigiam para o balcão ela foge da loja. Ele, abismado, corre atrás dela gritando o seu nome, como se de um filme se tratasse. Ao vê-la fugir, ecoou durante uns míseros segundos, que no entanto pareciam eternos, o hit de Mónica Sintra, Afinal Havia Outra. Foi um momento que me tocou bastante, a música combinada com o que os meus olhos testemunhavam... O problema é que a esta hora ainda não tirei a música da cabeça. Ela desapareceu por entre a multidão, ele voltou para trás, desolado… Depois levou o seu livro, como se nada tivesse passado. O mesmo acontece com a loja. Dia após dia, personagem após personagem, continua igual a si mesma. Graças a Deus.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Profecias

Antes de mais, queria aqui esclarecer um assunto. Têm, ultimamente, surgido dúvidas quanto à veracidade dos meus relatos e à minha sanidade mental. Bom, quanto à minha sanidade mental (ou falta dela), pouco há para acrescentar. Agora no que toca à veracidade dos eventos aqui relatados, por mais inexplicáveis e inverosímeis que sejam, são a mais pura verdade. Os meus próprios colegas, quando não assistem a algum acontecimento, duvidam. E eles passam por situações semelhantes, por vezes. Mas eu, pareço predestinado a encontrar a nata da clientela. E hoje, aconteceu mais uma situação que os meus colegas não acreditam quando lhe conto. Mas, desta vez algo foi diferente. Tinha do meu lado o venerável mestre livreiro. Aliás, devo dizer, foi mesmo ele que descobriu tamanha pérola. Uma senhora com pouco mais de 30 anos aproxima-se da entrada. Pára, decidida, junto ao local onde se encontra um cartaz com o nosso Top semanal, num pedestal. Até aqui, tudo bem. Mas, eis senão quando ela, sem qualquer tipo de aviso retira o top cuidadosamente do seu pedestal e caminha com ele em riste, loja adentro. Temi o pior. O top enrolado seria indubitavelmente uma arma perigosa, e tanto eu com o mestre livreiro estávamos em alerta. Surpreendentemente, passou pelo balcão, seguindo para o lado direito da loja. Em seguida, e debaixo dos nossos olhares espantados, ergue bem alto o top, e colocou-o mais ao menos nivelado com o top que se encontra do lado direito do balcão. Aí, comparou os livros um a um. Satisfeita com o que conseguiu apurar, voltou para a entrada da loja e saiu, colocando depois o top no seu berço habitual. Desapareceu por entre a multidão, sempre sem dizer uma única palavra. Há pessoas que gostam mesmo de marcar a diferença, seja de que maneira for.
Do mesmo modo, se eu dissesse que, quando estava a atender um cliente, olhei para o lado direito da loja e vi nem mais nem menos do que um miúdo de origem asiática vestido de homem-aranha com sapatos de vela, sentado com as pernas cruzadas em cima dos livros que estavam de lombada, acreditavam? Se me contassem, eu não acreditava. Aliás, eu mesmo tive de olhar outra vez, não fosse algum glitch na Matrix. Mas, não era. O miúdo estava mesmo lá, descansado, com o seu fato de homem-aranha, e sapatinho de vela com as meias por cima do fato. Esfreguei os olhos e olhei outra vez, ele não desapareceu. Senti-me tentado a lançar um livro na sua direcção a ver se o livro lhe acertava, para desfazer as minhas dúvidas. Mas, ainda estragava o livro. E mesmo que fosse algo que dificilmente se pode considerar livro, como o Ciber Apanhados, teria de entrar em despesas, o que não é nada agradável. Passado algum tempo, o aracnídeo oriental saltou da zona onde estava e foi para o meio do chão ler, fugindo algum tempo depois. Nunca mais o vi. Desapareceu tão depressa quanto apareceu.
Também hoje, pediram-me um livro mítico. A PROFECIA DO CELESTINO. Atenção aos mais desatentos, não confundir com A Profecia Celestina, famoso livro que se pode encontrar na zona do esoterismo. Não. A senhora disse explicitamente a Profecia do Celestino. Para quem não sabe, Celestino foi um mito dentro do mundo do futebol. Defesa central ao serviço do Famalicão, esteve presente na última grande goleada do Glorioso SLB no saudoso Estádio da Luz. Ele não esteve só presente. Ele participou activamente, contribuindo com 2 auto-golos para a folgada vitória por 8 bolas a 0. E mais, um dos golos foi mesmo de belo efeito. Celestino, esse terror dos guarda-redes da mesma equipa, não voltou a ter outra actuação tão marcante, caindo posteriormente no esquecimento geral. Mas, não deveria ser esquecido. Não é qualquer jogador que marca duas vezes numa só partida a favor do Benfica. Parece que ainda o vejo, pulando alegremente, qual bailarina transformista, caracóis castanhos ao vento, marcando que nem uma doida na própria baliza. Bons velhos tempos.
As devoluções vão-se sucedendo, impiedosas. Tal como o livro do Pauleta, muitos outros vão, talvez nunca mais voltando. Falando em Pauleta, parabéns pela nomeação para capitão da selecção. Já agora nomeavam um dos postes da baliza capitão, assim sempre havia a probabilidade da bola bater lá e entrar. Agora, com o Pauleta… Um dos livros devolvidos foi o formidável Diário do Miguel. Quem é o Miguel? – Perguntam vocês. Não sei, e pelo número de vendas, também ninguém quer saber. 0 livros vendidos, em 3 meses. É obra. Força Miguel, continua que vais ser alguém.
As pessoas tendem a apelidar de OBRA qualquer tipo de livro ou publicação literária. Talvez a culpa seja minha, mas não me soa nada bem ouvir dizer: “O Cláudio Ramos tem mais alguma obra além desta?” Bom, que eu saiba ainda não tem nenhuma obra. Mas, há que manter a esperança…

quarta-feira, setembro 01, 2004

Uma Lição Valiosa

Aqui está o Livreiro, de volta novamente para o servir. Ou tentar. Não garanto nada.
Diversos indivíduos vivem com a concepção errada que eu, mero Livreiro, sou o engraçadinho do estabelecimento. Enganem-se todos os que pensam assim, pois o meu colega Greenpeace é um doidivanas. Cada cliente é um júri, e ele, qual artista a ser observado, dá o se melhor na nobre ânsia de entreter o cliente. Vejam o mais recente exemplo, e atentem bem a sagacidade e capacidade humorística deste rapaz. Uma senhora já com uma idade respeitável adquire dois livros. Eu pergunto se ela deseja que os livros sejam embrulhados, ao que ela responde: “Não, não, ponha só um laço”. Aí, ele decide intervir. “Laços não temos”, diz ele… “Mas, se desejar, posso embrulhar com fita-cola!” E começa a rir-se perdidamente. Eu olhei para a senhora que por sua vez, o mirava estupefacta. Ao olhar para a cliente e verificar que ela não estava a rir-se com ele, riu com ainda mais força. Este homem é genial. Já no outro dia, ao ser inquirido sobre se tínhamos “fita cola dos dois lados” também não conseguiu conter o riso. Mas, quem sou eu para o censurar? Ainda hoje, mais um miúdo que não sabe o significado da palavra educação aproximou-se do balcão, interrompendo a cliente que estava a falar, e pediu bem alto: “Tem Pickles?”. Eu sei que existe uma BD com esse título, mas, num momento de fraqueza, não consegui suster o riso. Ele não me levou a mal. Mas, a genialidade do Greenpeace não fica por aqui, não senhor. Ele chega mesmo a desejar Bom Natal às pessoas... Em pleno Verão! É o maior. O hábito de interromper, tanto a mim como os clientes, é típico da juventude. Também hoje um jovem já na casa dos 13 veio ao balcão todo decidido e, sem sequer saudar o Livreiro ou esperar que a conversa entre o funcionário e o cliente anterior cessasse, perguntou: “OLHE TEM LIVROS POLICIAIS, OU DE SUSPENSE?”. Sim, temos o PUTO QUE CHEGOU À LIVRARIA E NÂO DISSE BOA NOITE E FOI CORTADO AOS PEDAÇOS E ESCONDIDO NAS GAVETAS DESSA MESMA LIVRARIA. Um best-seller. Mas, não era do seu agrado.
Ainda relativamente a embrulhos tenho que focar outro ponto. Queixo-me constantemente da falta de cultura do povo português. Mas, cada vez mais provam-me que estou errado. Os livros não podem ser só para oferta. Podem ser embrulhados, para prenda, para oferecer, para dar, para presente, para fazer um embrulho, por um laço, caprichar um embrulho, dar aí um jeitinho, enfim, o meu léxico não é de maneira alguma tão abrangente como o dos estimados clientes. E depois, temos aqueles clientes que dizem: “Pode embrulhar-me?” ou então o já clássico homem que agarra as partes baixas, remexendo as em círculos enquanto diz: “Pode-me embrulhar?”. Falando em classe, temos o inolvidável momento em que um cliente, mais uma vez, pergunta se pode rasgar o invólucro do livro. Respondi que sim, que não havia problema, e o cliente, qual predador, estica a famigerada unhaca do dedo mindinho, e num só gesto, num único e mortífero gesto, desfere o golpe que dilacera o invólucro. A natureza em acção, e eu a assistir, privilegiadamente, no lugar da frente.
Verão é sinónimo de invasão estrangeira. A loja enche-se de espanhóis, divertidos nas suas excursões. Sim, porque é tão perto que eles nem se digam a dormir. Nem sequer turistas se podem considerar, mas sim excursionistas. Acho que foi a única coisa que aprendi no curso. O gasto e a permanência média dos espanhóis é mínimo. E isso reflecte-se na venda de livros aos nuestros hermanos. Vêem muito, compram pouco. Mas quando paga com Visa, há que lhes dar o mérito, mostram sempre o B.I. Outro grupo que invade as terras lusas são os emigrantes. E estes detectam-se à distância. Seja pelo sotaque, pelas roupas ou pelas escolhas literárias, são facilmente reconhecíveis. Um casal de emigrantes aparece no balcão com o livro da Cristina Candeias, essa Messias do povo luso emigrado, vidente dos trabalhadores além fronteiras, feiticeira das donas de casa. O livro dela é muito procurado, e quase sempre por emigrantes. Pousam o livro na mesa, e dizem que é para oferta. Segundo eles, o livro ia para Paris, para uma tia-avó que não pode sair de França pela idade. E queriam que deixasse o preço, não fossem ser acusados de burla. Ela, longa cabeleira falsa de cor branca, que combinava com as suas bota de pele branca, que por sua vez contrastavam com o seu vestido azul espampanante, frontispício colorido por camada atrás de camada de maquilhagem. Ele, com o seu porta-chaves do Peugeot 206 muito provavelmente todo artilhado. Outros emigrantes que tiveram aqui, levaram o livro da Alexandra Solnado, Este Deus Que Vos Fala. O interesse deles pela “cabritinha” (é o nome que Deus lhe deu, eu não invento nada) era muito. Então, dei-lhes os dois volumes. Queriam que embrulhasse, mas que não tirasse o preço, porque era para levar para a Suíça. E, segundo eles, na Suíça não há nada disto. Pensei em alertar imediatamente as autoridades Suíças, com a esperança que o país não fosse corrompido. Seria logo dado o Alerta Vermelho. Curioso… Na Suíça não há. Ora, isto explica muita coisa. A Suíça, um país mais desenvolvido, com melhor nível de vida (isto se não contarmos com a parte militar claro…) não tem estes livros. Qual será a ilação a tirar?