sexta-feira, dezembro 23, 2005

Crónicas de Natal 5 - Imperceptível

Se há coisa que eu gosto é de vender dicionários às pessoas. Ena pá, o que eu gosto disso. Disso e de interromper as pessoas. Como acontece todos os anos, lá vão os pais mais zelosos às livriarias comprar os dicionários para os filhos. Claro que tudo começa a correr mal quando me perguntam qual é que é bom. Eu geralmente digo que o da Texto é que é o bom, porque o da Porto Editora além de ter tráido a esposa tem ligações com a Máfia de Leste na Brandoa. É sempre bom prevenir. Obviamente que é complicado dizer qual é o melhor dicionário. Não sou, nem de perto nem de longe, um entendido em Dicionários. Mas olhem que há muitos clientes entendidos. Pedem me um dicionário, e a minha resposta é mais pelos tamanhos, tipo: "Ah, olhe este aqui tao jeitosinho" ou então "olhe que isto é um GRANDE dicionário". Mas os clientes querem ver, querem comparar. Então, como entendidos que são, pegam nos dicionários, fazem um ar altamente arrogante e passam as páginas rapidamente para trás e para a frente, equanto dizem que sim. Depois pegam no outro e fazem o mesmo, terminando depois com um "sim, realmente este parece-me melhor, levo este...". Alguém me explica que raio é que o cliente viu para o ajudar a decidir? Passou as folhas rapidamente, não leu nem uma palavra. Imagino que pensava para si enquanto punha o seu melhor ar de entendido e folheava o dicionário durante uns longos 3 segundos: "Sim.. Este tem letras... Umas pequenas e outras grandes, algumas Bold e Itálico, sim, parece-me que é este, que belo dicionário, vou fazer amor com ele quando chegar a casa". Depois pega no outro: "Oh... Este é tão igual ao outro que eu perco a cabeça. Letras, mais letras, sim é este." E lá vai todo contente. Outros usam o método de ver se tem uma palavra. Arranjam assim uma palavra estranha tipo "Undífero" e vão ver se o dicionário tem. Se tiver, é aquele. Se me perguntarem que palavra é que hão de procurar para ver se o dicionário é bom, eu serei obrigado a dizer "Néscio".
Quer me parecer que o Natal afecta os sentidos de algumas pessoas. Senão, vejamos: uma cliente, depois de lhe indicar o livro que desejava, pegou nele, e, em vez de o folhear e tal, cheirou-o. Mas assim uma snifadela daquelas que deixaria a Kate Moss orgulhosa. Não sei como é que não teve uma overdose de pó. Quem é que cheira um livro? Nem vou por aí.
Depois temos aqueles clientes que veêm mal, que não encontram o preço nos livros e que passam a vida a derrubar torres de livros. Até já me habituei ao barulho. Mas há quem se assute, por isso, recomendo que, caro cliente, se vir que vai derrubar uma torre de livros grite: "Madeira!"
E claro, temos as clientes com problemas de audição. Uma senhora pergunta-me se temos dois livros em inglês. E eu respondo EXACTAMENTE isto: "Bom, sabe que a nossa secção de livros estrangeiros é bastante pequena, por isso só recebemos alguns livros, uma ou outra novidade e só de algumas editoras, por isso não temos o que procura. Se for a uma das nossas maiores livrarias encontra uma maior e mais variada selecção de livros em língua estrangeira." Enquanto eu dava o meu discurso triunfal a senhora ia abanando a cabeça, parecia estar a concordar comigo e eu todo contente com o meu brio profissional. Quando termino a resposta foi esta, por entre o mascar da pastilha: "OLHE DESCULPE MAS EU NÃO PERCEBI NADA DO QUE DISSE PORTANTO SUPONHO QUE QUISESSE DIZER QUE NÃO! ADEUS!" Furiosa, abandonou a loja intempestivamente. "MARCO PAULO!" disse eu (que é o que digo quando fico chateado ou me aleijo) "Que senhora rude!" e lá continuei o meu trabalho.
Bom Natal para todos com problemas de visão, audição e olfacto. Hm, não sei se quero enfrentar alguém com problemas de paladar...

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