sexta-feira, junho 30, 2006

C'est Les Vacances

Entrei de férias ontem, mas senti-me pressionado para vir cá deixar mais uma tese sobre a vida rural dos vendedores de cautelas em Celourico-da-Beira. Mas, como não fui capaz de urdir uma tese com pés e cabeça (o costume, portanto), deixo-vos com mais acontecimentos da livraria.
E se há acontecimento comum é o cliente que se encontra num dos maiores dilemas da humanidade (está actualmente classificado entre a discussão do aborto e da eutanásia) que é o “entro na loja com o carrinho das compras ou deixo-o lá fora, correndo o risco de ficar sem tomates”. Esta situação ameniza-se quando há companhia. Fica alguém a guardar as compras enquanto o outro vai e trata dos seus assuntos da livraria. E, foi mesmo ontem que, enquanto arrumava umas prateleiras na companhia do grande Gulbenkian, esse verdadeiro descende dos filósofos gregos (em pensamento e quantidade de pelo), surgiu um casal à procura do livro que optou pela táctica do “mulher fica com as compras, homem parte em busca do livro”. É uma táctica arrojada, poucas vezes executada. O senhor em causa não tinha muito jeito para encontrar livros, então a senhora, experiente, gritava lá de fora: “ESQUERDA, MAIS PARA CIMA, DIREITA, MAIS, MAIS PARA BAIXO!”. O Gulbenkian, mordaz e oportuno como sempre, disse que pareciam os saudosos Jogos Sem Fronteiras. E tinha toda a razão. Senti-me um verdadeiro Eládio Clímaco. Para mim, aquilo foi uma potente demonstração do primeiro “Marido Telecomandado” do mundo. Fiquei convencido.
Com a chegada do verão aumenta a procura dos guias turísticos e dos mapas. Além do choque que é não termos mapas de Cascais, os clientes arranjam sempre maneira de se queixar de alguma coisa. Ou porque o guia é pequeno, ou porque é grande, ou porque há da Itália mais não há da Toscana ou porque não encontram o guia do Benim ou do Burkina Faso. Mas ninguém bate a senhora que pede um guia de África. Eu digo que não temos, e que nunca recebemos um guia de África, perguntando-lhe em seguida se queria algum país em especial. “Não, quero mesmo de África toda!” responde ela, já meio chateada e eu, sem poder fazer mais nada, volto a dizer que não temos nem vamos ter um guia de África. “Desculpe lá, se tem da Índia ou Alemanha, porque é que não tem de África?” inquiriu ela. Não consegui evitar, tive que lhe indicar o óbvio: “Pois, é que a Índia e Alemanha são países, África é um continente.” E bem grande, por sinal. Depois da senhora deixar passar na sua cara algumas cores entre o vermelho e roxo, soltou fumo das narinas e disse: “OBVIAMENTE QUE EU SEI QUE SÃO PAISES! E SEI QUE AFRICA É UM CONTINENTE! EU SEI A DIFERENÇA! EU SEI!”. Não era para ofende-la, mas ela estava a insistir demasiado. “Então, mas tem ou não tem?” Eu já tinha dito que não várias vezes, mas quem sou eu para dizer uma coisa dessas não é? O que eu digo não se escreve. Voltei a explicar-lhe que não tinha guias relativos a um continente no geral, só a alguns países em particular. Ela ficou furiosa e saiu. Não tive sequer tempo de lhe desejar boa viagem.
Os clientes muitas vezes, apesar de dizermos que não temos um livro, insistem para que consultemos a base de dados. Mas, encontram sempre maneiras curiosas de o fazer. “Não pode ver no seu computadorzinho?”, “Não ver na sua list?a” ou o meu preferido “Pode consultar os seus ficheiros?”. Este último, quando é acompanhado de um ar desconfiado e tom de voz solene, faz me sentir como um agente da PIDE.
O verão é também a época de algumas loucuras. Veja-se o caso de três amigas que estavam a consultar a secção de história. Pareciam ser pessoas normais (o que é difícil, nesta livraria). Até que começam a rir, a rir, a rir. Perdidamente, e aparentemente sem razão. Pelo meio dos risos conseguia ouvir um trémulo “vai dizer ao senhor, vai dizer ao senhor”. Não estava mais ninguém na loja, o “senhor” deveria ser eu. A piada não é isto, não se riam. Bom, finalmente uma delas ganha coragem, e entre o limpar das lágrimas diz: “Desculpe, podia ajudar-me? É que caiu ali uma coisa para trás…”. As outras riam. Eu disse que não havia problema, que, eventualmente, nós apanharíamos o livro que tinha caído. Elas riram ainda mais. “Não está a perceber, foi a minha peça que caiu lá para trás!” E riam as três, perdidamente. Deixou cair a peça dela, portanto? Certamente que era uma peça da cabeça, tal a figura que ela estava a fazer. Sem outra alternativa, lá tive que abandonar o meu posto de trabalho e ir afastar a prateleira. Depois da nuvem de pó dissipar-se, encontrei um caderno caído lá atrás. Entreguei-lhe o caderno. “Obrigado, salvou-me a vida” disse ela. Não quis desiludi-la, mas acho que o que ela tem não tem cura ainda… A minha pergunta é a seguinte: O que é que raio ela estava a fazer para o caderno ir ali parar? Acho que nem elas sabem.
Boas Férias (para quem tem sorte de as ter…).

11 comentários:

kanuthya disse...

Gosto dos seus episódios livreirescos. Por acaso via a série Black Books? Deve dar vontade de ser Mr. Black por vezes :)

O Livreiro disse...

Para ser sincero, nunca vi a série. Lembro-me de ver algumas promos na Sic Radical, mas nunca consegui ver. Mas, acredito que a realidade é bem mais rebuscada que a ficção. Gostava era de ser dono de uma, portanto, estão à vontade para me oferecer uma livraria nos anos.

O Livreiro disse...

O Sr. Santo não faz sentido nas suas declarações, só pode ser da antena da Optimus que instalaram junto da sua casa.

O Livreiro disse...

Eu não comentei a identidade de ninguém, nem tenho poderes legais para isso. Já agora, não tens mais nicks com que comentar? És tipo super herói, cheio de identidades lol Não me digas que ganhaste poderes especiais por causa das radiações da antena da Optimus?

Anónimo disse...

O sr. Livreiro anda muito mal informado, vê-se mesmo que não leu a lista da lonely planet que se encontra afixada no seu local de trabalho...Agora que está de férias precisa de fazer uns trabalhos de casa para não se esquecer da matéria!

O Livreiro disse...

Eu não disse que não existia. Disse que não tínhamos. O Livreiro é, acima de tudo, um (sofrível) profisisonal.

Anónimo disse...

Longe de mim conspurcar o seu profissionalismo. Sei perfeitamente que o sr. é um conceituado livreiro que um dia montará sua tenda e ultrapassará as vendas de grupos alemães. Por enquanto o melhor é continuarmos aliados como outrora...

O Livreiro disse...

Isso é que é confiança em mim. Nem eu confio tanto. Já tenho um blog, e já tenho sorte. Vou começar é a vender livros no blog. Esses grupos alemães, eu nem comento... E ainda por cima ainda devem ir à final, e ganhar.

O Livreiro disse...

O Sr. Santo deve se ter enganado no sítio. Isso não devia estar no teu blog?

Sr. Jurista disse...

gostei deste, como sempre de morrer a rir!..e as trés amigas nao tinham telemovel?;)

O Livreiro disse...

O Santo, eu não faço sequer ideia do que esse comment significa, ou porque raio o depositaste aqui (especialmente quando tens um blog para o efeitoi...), mas força nisso rapaz, dá-lhe com força Martunis!