terça-feira, março 07, 2006

David Lodge

Isto de ser Livreiro tem que se lhe diga. Além de Livreiro, e das mil e umas tarefas que me são atribuídas pelo público em geral, sou também responsável por fornecer informações para todo e qualquer transeunte que queira qualquer coisa em qualquer lado. Sejam os telefonemas constantes para a loja, julgando que estão a ligar para a administração ou informação do centro comercial (o que resulta nuns já habituais: “OH FAZ FAVOR O CONTINENTE ESTÁ ABERTO HOJE?” ou ainda no já clássico “Ai não é das informações? Mas aqui diz que sim. Ahhhh, pronto. Então não é mesmo. Mas pode me dizer se o Continente está aberto na mesma?”) ou os pedidos de direcções ou compra de qualquer produto que se possa imaginar, já nada me espanta. Ainda hoje estava a sair do back Office quando se aproxima uma senhora de mim que diz: “Desculpe, onde é que é a banda desenhada?”. Com mil raios, pensei eu, já deitaram abaixo o sinal com 80 por 30cm que diz BANDA DESENHADA outra vez. Mas, não, ele ainda lá estava. Bom, não me restava outra alternativa que não fosse guiar a senhora através da loja até ao longínquo canto da Banda Desenhada. Chegado lá indico à senhora o local exacto da banda desenhada, e ela responde: “Não, não é isso. Eu queria o Patinhas e o Donald.” Tentei explicar-lhe que isso não tínhamos, mas foi logo interrompido: “Pois, isso sei eu, queria que me dissesse onde é que há isso à venda aqui no centro!” Reparem na brutal inteligência. Chega a uma livraria e pergunta por Banda Desenhada. Claro que era óbvio até para os mais distraídos ou para o George W. Bush que a senhora queria que eu lhe indicasse um espaço que não o nosso onde encontrasse BD. Porque é que ela não disse logo o que queria? Teria poupado tempo e trabalho. E, pior, porque é que raio ela foi atrás de mim pela loja toda, sabendo que nós não tínhamos o que ela queria? Isso é que me intriga. “Deixa-me lá fazer o totó andar pela loja e andar à procura de algo que ele não vende.”
Não faço ideia do que as pessoas pensam de nós. Claro que o facto de, estando a loja em silêncio, um de nós gritar para os outros “O STAVANGER MARCOU AO LILLEHAMMER!!” enquanto saltita e tenta abraçar o colega que se encontra mais próximo (maldita Betandwin…) não dá muito bom aspecto. Mas, o que é que leva uma senhora a dizer ao seu marido, enquanto este estava a ver uns livros de automóveis: “Tira o casaco. Tira o casaco. Tira o casaco, TIRA LA O CASACO, CUIDADO COM O HOMEM!”. O homem sou eu, não havia mais ninguém na loja. Cuidado comigo porquê? Tudo bem, posso estar a ler “Os Mundos Esotéricos de Fernando Pessoa” mas também não é preciso exagerar.
Numa das manhãs que passou surgiu uma cliente bastante interessada em livros de teatro. Depois de apresentar uma lista interminável (da qual só havia dois livros…) ficou para no balcão a observar atentamente um dos livros que lhe providenciaram. Olhou, folheou, olhou um bocado mais. Quando tudo indicava que ela estaria pronta para pagar, lança a seguinte frase: “Hmmmm… Isto é o 3 não é?” A respota surgiu positiva, visto haver um 3 enorme na lombada e na capa do livro. Ela retoriquiu: “Parece-me que deve haver o 1 e o 2.” Que mente iluminada. Isto nem o Paulo Cardoso conseguia prever.
A nossa colega Feiticeira é algo difícil de descrever. Ela está a atender um cliente, e a cada pergunta que vai fazendo aumenta gradualmente o volume da música. Não ouve o cliente bem, passa a ouvir pior. Hoje até me assustei quando ela, para além do seu habitual: “VAI LEVAR ESSE?” ou ainda do “ISSO É PARA LEVAR?” com que brinda qualquer cliente que passe junto do balcão com o livro, hoje tentou hipnotizar um cliente. É verídico. O cliente estava a tentar que ela encontrasse um livro na base de dados, o que se estava a revelar uma tarefa hercúlea. Farta de procurar, pediu ao cliente o nome do autor, olhou fixamente para ele e disse, num tom hipnótico: “VAI ME DAR O NOME DO AUTOR”. Não é “pode me dar o nome do autor, por favor?”. É uma ordem: “VAI ME DAR O NOME DO AUTOR”. Repetiu três vezes, naquele tom hipnótico. Eu, que estava a arrumar as novidades, disse do meio do nada : “DAVID LODGE”, assustando os clientes que se encontravam à minha volta.
Tive uma conversa interessante com um cliente que queria, e passo a citar: "Um livro que tem o Hitler e o Himler a passear na neve”. Já os estou a imaginar “Oh Hitler, isto é que tá um belo dia ahn?”, ao que o Hitler respondia: “É Himmlerzinho, apesar do frio que me congela os ossos, não me divertia tanto desde a chacina de ontem…”. Depois de lhe encontrar o livro, facto que o deixou maravilhado face à fraca informação que me forneceu sobre este, começou a falar comigo sobre o livro de Mao Tse Tung. “Este homem era nojento. Ignóbil. E pior era os que o seguiam. Lá e cá. Aquele Garcia Pereira e o Durão Barroso, de livros em punho, seguidores do Mao. Nojento. Foi responsável por milhares e milhares de mortos!”. Pensei em dizer qualquer coisa como: “O Mao era mesmo mau! Mau, ehehe, percebe?” mas achei que ele não ia entender. Falando em respostas tipo empregado de café, uma das minhas favoritas (que obviamente nunca usei, mas não perco a esperança de ver alguém usar) é relacionada com a religião. Num destes dias surge uma cliente ao balcão que diz, antes sequer de um cordial saudação: “QUERO A CABALA!”. Era genial que alguém dissesse: “Oh minha senhora, mas a senhora ainda nem a começou”, rebolando depois a rir para trás do balcão, perante o olhar estupefacto da cliente. Mas, não, o máximo que aconteceu foi mesmo ir alguém até a secção dos livros religiosos e verificar que não tínhamos nada.
Isto às vezes é pouco emocionante…

2 comentários:

Anónimo disse...

Um livreiro é pai, mãe, tia e afilhado. É Policia sinaleiro, Talhante e apicultor. Cavaleiro andante, estafeta, Thermoman e muito, muito mais.
Para enfrentar o dia a dia a mente de um livreiro tem de saltitar entre a total imobilização e Warp 9. Só assim se consegue manter a já débil sanidade mental que é severamente posta à prova com a infindável panóplia de seres unicelulares mascarados de humanos, que proliferam como fungos.
Longe vai o tempo em que o Livreiro era de facto um Livreiro. Enfim...

Maeve disse...

Olhe, desculpe lá, tem aquele livro daquela senhora que rima quando fala das àrvores do Alentejo? É uma tal que andava sempre deprimida...acho que já morreu...
Estou a brincar!
Gostei imenso da descrição que fez. Acho que me vou lembrar dela quando voltar a entrar numa livraria...junto ao Continente.lol