sábado, março 18, 2006

Uma Questão de Orgulho

Gostava de ser dono da loja onde trabalho. Ter total controlo sobre que livros entram e saiem sobre os horários, sobre os empregados. Sobre tudo. Seria qualquer coisa como na League Of Gentlemen. Eu teria uma empregada tipo Tubbs, que diria "this is a local shop for local people, there's nothing for you here!". Seria muito bom. Não temos uma Tubbs mas temos a Feiticeira. E, há até quem defenda que é bem melhor. Tenho pena é que ela vá para o Inferno. Estava ela a vender uma Bíblia (foi o Santo que presenciou este episódio porque eu estava no back office) quando, com os seus ternos e delicados modos, deu uma cacetada (termo católico) na dita Bíblia, causando a queda violenta desta no chão. Bom, a Bíblia ficou bastante mal tratada. Aliás, não me lembro de ver a Bíblia tão maltratada deste os tempos da reforma. E a Feiticeira, como se não fosse nada, voltou a por a Bíblia em cima da mesa. Claro que o cliente não levou aquele exemplar, tendo a Feiticeira que ir buscar outro. Já no outro dia, surgiram dois clientes que queriam uns livros relacionados com Engenharia. Claro que a resposta da Feiticeira foi "AH ISSO É ALI NOS LIVROS TÉCNICOS". E nem se preocupou em perguntar se procuravam algum título em particular. Ou sequer em acompanhar os clientes para os ajudar na sua pesquisa. Então lá foram os clientes sozinhos, rumo à secção dos livros técnicos. Eu estava por perto a arrumar o esoterismo e ouvi a conversa: "Tsshhhh, que estúpida. Livros Técnicos? Duuuhh que está nos livros técnicos sei eu, não precisava que ela me dissesse" ao que o seu companheiro respondeu: "Que é que estás à espera, estamos em Portugal..." Eu desde já aviso, em nome de todos os portugueses, que não me faço representar pela Feiticeira. Claro que quando me viram a olhar para eles ficaram bastante embaraçados. E fugiram.
Trabalhar numa loja de porta aberta causa algumas situações curiosas. Há uma situação em particular que sucede com muita frequência. Quando a loja está silenciosa, com pouca gente e com a música baixa, ouve-se muito bem os sons que vem de fora da loja, seja a música do centro ou as conversas das pessoas que passam. Um dos efeitos mais peculiares é quando vêm duas pessoas a falar ao longo da montra e o som surge abafado e imperceptível e depois, quando passam na porta, percebe-se perfeitamente tudo o que dizem. Isto torna-se muito mais curioso quando se ouve o seguinte: "blbbllbgllglggll avlvhlahkdlkhvkalvd (som abafado, e de repente) NÃO TENHO CULPA QUE TENHAS LOMBRIGAS E ME TENHA ESQUECIDO DE COMPRAR PAPEL HIGIÉNICO E (novamente abafado) whwhwho fhofhosifshfiosa".
Algo que se repete com frequência são os pedidos de livros ou de autores incompreensíveis. Aí temos várias hipóteses: escrevemos qualquer coisa parecida com o que foi dita na esperança que surja algo parecido, tentamos uma aproximação diferente pedindo ou autor ou editora, ou pedimos que o cliente repita. É muito mau pedir para o cliente repetir. Mas, existe pior. Pedir para soletrar. É o mais baixo que se pode descer. Na segunda passada surgiu um cliente vestido todo de preto, com um sobretudo preto. Parecia o Neo, do Matrix, mas com 40kg a mais. Chegou ao balcão assim sub-repticiamente, e disse: "Olhe, podia ver se tem livros de um autor?" e eu assenti Ele continuou "Sabe, não sei se tem..." e eu já estava mais ou menos a ver o que vinha aí. "O nome do autor e Van lishssshhtsstst?" Com especial ênfase nos "t" e nos "s". Tentei procurar por Van List ou Von Litst (ainda hoje não sei como se escreve) e não surgia nada. Já a entrar em pânico, quase caí na tentação de pedir para soletrar. Mas és um homem ou és um rato, pensei eu, controla-te homem, onde está o teu orgulho? E não perguntei. Quando pensei que ele tinha desistido, vem o temido: "Ah, mas eu preciso de ver outro autor". Disse que sim, que claro que via. Não podia ser pior. Não podia. "Tem o livro do Von Eiseiteicheireich?" Nem de propósito. Consegui safar-me (à justa) com o título do livro. É muita pressão, isto de ser livreiro.
E quando os clientes mentem? Isto parece um título de um daqueles clientes tipo "DOMESTIC ANIMALS GONE WILD!" ou "MOVIE STUNTS GONE WRONG!". Mas acontece. Uma cliente pediu-me um livro ("Qualquer coisa da obesidade ou lá o que é" disse ela) para encomendar para a loja. Supostamente havia um exemplar numa das nossas lojas e eu disse que o encomendava. Até preenchia o papelito janota das encomendas. O que eu gosto de fazer isso. Liguei para a tal loja, afinal não havia nada. Pedi à editora. Qual não é o meu espanto quando a cliente liga furiosa porque foi à tal loja e não encontrou o livro? E depois ainda tem o desplante de dizer que tinha sido isso que tinha ficado combinado. Claro, porque eu gosto de preencher papéis de encomendas por divertimento. E, depois da queixa por telefone, seguiu-se a queixa ao vivo. Foi do tipo "sim, se acha que eu minto ao telefone nem queira ver o que faço ao vivo". Foi do melhor, alguém dê um Óscar à senhora. Ela estava capaz de tudo. Só não me disse que eu lhe tinha dito que o livro tinha asas e lhe daria vida eterna porque não calhou.
Estou destinado a penar atrás daquele balcão...

1 comentário:

Anónimo disse...

O posto sagrado de trabalho para um livreiro fica por momentos corrompido ao ouvir-se uma conversa sobre Lombrigas e companhia. A Harmonia do santuário sofre um abalo e na mente surge inevitavelmente uma questão: Mas quem é esta gente? De onde terão saído? O que andam a fazer? Mas quem é que raio ainda tem Lombrigas?
Por vezes tento enquadrar as pessoas em categorias mas a minha tarefa revela-se inglória porque de facto quando penso que pior não pode haver, ora aí está. Todos aqueles que tencionam dirigir-se ao Livreiro e que possuem um Q.I de -327 deveriam ter que passar um teste preliminar. E esse teste consistiria no seguinte. O individuo teria que se deslocar à Direcção Nacional de Livreiros, D.N.L., e aí teria que perante um jurí conceituado, demonstrar que sabia interagir com quem está atrás do balcão. Só assim se estaria apto a poder comunicar com um livreiro. Desta forma ficariam logo eliminados tias presunçosas, embrulhadores de palavras, homens de fato treino meínha branca e sapato de fato, repectiva mulher com o mesmo traje mas com sapatos de salto alto, broncos e fundamentalmente todos aqueles que deveriam estar isolados num sociedade paralela porque está visto que nesta sociedade não conseguem conviver.
Em suma, estes seres micro-céfalos é que estão a penar, mesmo sem saberem e o livreiro embora tenha dias menos bons pode sempre dizer: Eu sou um Livreiro.