quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Eu, Herege, me confesso

Há pessoas que realmente não tem noção das figuras que fazem. Numa das noites em que tenho passado sozinho na loja, surge da bruma um casal de clientes com um ar rústico que param à porta da loja. Ficam a olhar durante alguns segundos e depois entram. Estando o shopping praticamente vazio, e tendo eu me esquecido de ligar a música, estava um silêncio agradável na loja. Olhei para os clientes, eles continuam a olhar para todo o lado, parecia que estavam perdidos, por isso decidi continuar o trabalho. Até que, de repente, começam a falar entre eles, como se estivessem a sussurrar. O problema é que, devido ao silêncio, eu ouvia perfeitamente o que diziam. "Não percebo nada disto, não sei onde procurar, vamos embora" dizia ela, preocupada. Ele, parecendo não querer saber de nada, diz: "Deixa lá estar isso, vamos embora". Mas não a conseguiu convencer: "Mas eu tenho de comprar aquilo. Já sei, vamos ali perguntar ao rapazito." Rapazito? Tudo bem que, apesar de não fazer a barba há um mês, parece que tenho a barba de um adolescente de 14 anos. Mas, também não exagerem! Aí já tinham toda a minha atenção, logo vi que dali viriam coisas dignas de registo. Lá ganharam coragem e vieram falar aqui com o rapazito. "Tem a cartilha maternal?" Eu respondi afirmativamente e lá fui buscar a cartilha. Entreguei-a à senhora que a olhou circunspecta durante alguns segundos, para lançar a seguinte tirada: "Mas... É um livro!". Decidi não responder nada, decidi deixa-la descobrir aquele mundo novo por si mesma. Depois de revirar várias vezes a cartilha, diz: "Pois, deve ser isto... Tem aí mais uma? é para a Ti Rosa!". A tia Rosa, essa maluca, quem é que não conhece a Ti Rosa? Disse lhe que infelizmente era mesmo o único. A senhora insistiu: "Mas é para a Ti Rosa? De certeza que não tem nenhum aí em baixo?" Em baixo onde? Porque é que as pessoas têm a ideia de que nós dizemos que não temos os livros, mas na verdade eles estão aqui em baixo? Em baixo do quê? Lá pagou a cartilha e saiu, pronta para dar a má notícia à Ti Rosa.
Noutra dessas longas noites de solidão, chegou ao balcão uma rapariga que diz o seguinte: "Queria que visse se tem um livro por favor". Perguntei qual era o livro e o que é que ela faz? Tira um papel do bolso que, depois de desdobrado, é uma bela lista com uns vinte livros. Ena pá, pensei eu, que divertido, como eu gosto de fazer isto. Lá fomos vendo a lista, livro a livro, e, um atrás do outro, encontravam-se todos esgotados. Até que um dos últimos existia numa das nossas lojas do Porto. A reacção dela não se fez esperar. Riu-se, e disse o seguinte:" Tão longe só no Porto? Nel Puerto (Tentando imitar o sotaque) El Pu-erto. Nel Puerto". Tudo bem que o Porto é relativamente perto de Espanha, mas não fazia ideia que o idioma deles era o Espanhol. Obviamente que ela riu-se a bandeiras despregadas e eu mantive o meu olhar estupefacto. Parou o riso abruptamente e saiu.
O que eu gosto mesmo é das senhoras da alta sociedade que devotam a sua vida à religião católica. Lá vêem elas em grupos de dois ou três, à procura de livros para as suas amigas. Muitas vezes pedem sugestões, e eu, como não podia deixar de ser, recomendo o Código Da Vinci. A reacção é invariavelmente a mesma: "Ahhhh, que horroooooor! Esse? Isso? É hediondo, cheio de mentiras! Recuso-me a oferecer a alguém um livro que eu não gostasse de ler!" Nestes casos, só me resta indicar onde estão os livros do João César das Neves. O que elas vibram. É o João César das Neves (ou, como é conhecido por alguns quadrantes da nossa loja, O Abominável Homem da das Neves) e a Aura Miguel. O que elas gostam dos livros deles. E o choque por não termos a encíclica do Papa Bento XVI logo no dia em que ele a escreveu? Heresia, no mínimo.
Já aos Domingos, somos muitos a trabalhar, mas sobra sempre para os mesmos. Seja porque o Baixas está viciado na Betandwin ou porque o Gulbenkian está a "estudar", sobra sempre para os mesmos. Entra uma família (um casal com três filhos ranhosos) na loja. Dirigem-se ao balcão e a senhora (com mais barba que eu) empurra o homem para ser ele a chegar primeiro e para que seja ele a falar comigo. Ele, meio assustado, diz: "Tem o dicionário de Português cor-de-laranja?". Com mil raios, pensei eu, lá vêm os Cavaquistas para me aborrecer. Perguntei qual era a editora, e antes sequer do homem poder responder, surge o vozeirão da mulher, qual deus do Trovão, do outro lado do balcão: "PORTUGUÊS!!!!". Toda a gente tremeu com o grito. O homem parecia que ia chorar. Eu repeti a pergunta para o senhor. Novamente, antes sequer de o homem abrir a boca, surge um novo bramido do outro lado: "É ESSE MESMO!!!". Altamente agressiva a senhora, deve haver ali testosterona a mais. Lá percebi que não havia maneira de estabelecer qualquer tipo de diálogo com aquela família, portanto dirigi-me à secção dos dicionários para tentar, com a criança (que parecia definitivamente o ser mais inteligente do grupo) encontrar o dicionário. Logo por azar, um dos petizes tropeça no irmão e manda uma pilha de livros ao chão. Claro que ele antes de poder dizer fosse o que fosse, ou de eu dizer que não havia problema, surgiu um violento e imperceptível grito e uma mão cortou o ar e virou o miúdo ao contrário. Até a mim me doeu. Ainda por cima não havia o dicionário. Por momentos, temi que o próximo iria ser eu. Mas, lá abandonaram a loja sempre a com a mulher (?) a empurrar o homem. Já se sabe quem usa as calças. E número 52 ainda por cima.
A D. Quixote é mestre na arte de vender livros, usando várias artimanhas para atrair a atenção de potenciais compradores. Quando lançaram o livro de Leonor Sousa (que tem aquele passado condenável que toda a gente conhece, entrou na Quinta dos Celebridades. É vergonhoso. E também foi stripper, mas isso é normal) colocaram um autocolante a dizer: " PELA PRIMEIRA VEZ EM PORTUGAL! BASEADO NUMA HISTÓRIA REAL!". É a primeira, e esperávamos que fosse a última. Mas o livro vendeu desenfreadamente. Conclusão: A D. Quixote colocou uma bandana no livro, para além do primeiro autocolante. "25.000 EXEMPLARES EM MENOS DE UM MÊS! O LIVRO QUE AS MULHERES NÃO PARAM DE LER E OS HOMENS LÊEM SEM PARAR!". Imagino a conversa entre marido e mulher: "Então filha, que estás a ler? Eu tou a ler o de Leonor Sousa, leio sem parar!" diz o homem. "Eu também estou a ler esse, mas eu não leio sem parar. Eu não páro de ler. É diferente. Tarado." responde a mulher. A verdade é que o livro continuou a vender. Mas, sabem como é a D. Quixote. Quer ir mais longe. Então colocou um novo autocolante na capa. É redondo e cor-de-rosa, e nele pode ler-se "EROTISMO E SENSUALIDADE!". Parece-me uma medida extremamente correcta, porque qualquer pessoa que lesse "Diário de Uma Stripper Portuguesa" no sub-título facilmente o confundiria com um livro de índole política. Sempre a zelar pelo seu público, a D. Quixote.

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