quarta-feira, abril 25, 2007

Este é O Livreiro Sem Estudos

Como eu gosto da nova campanha do governo, “Novas Oportunidades”, onde se vê uma sorumbática e abatida Judite de Sousa a arrumar uns livros. Curioso é que 90% das pessoas que trabalharam aqui tinham ou estão a tirar formação superior. Mas pronto, o Shor Zé é que sabe de licenciaturas, quem somos nós para questionar os seus projectos? Formação é muito bonita, mas e que tal emprego? E que tal o facto de estando as pessoas em formação deixem de contar para as estatísticas do desemprego, fazendo assim parecer que as politicas do governo estão a funcionar? Se houvesse um blog chamado “O Primeiro-Ministro” eu ia visitar, seria uma barrigada de riso!
Chegou uma cliente ao balcão com um saco, dizendo aos quatro ventos que tinha um livro com defeito. Rapidamente me ofereci para trocar o livro à senhora, e mal ela começa a tirar o livro do saco eu reparo que é o “Cemitério de Pianos” do José Luís Peixoto. Tendo lido o livro (grande livro) percebi logo o que vinha seguir. “É que a partir da página cento e tal as frases não coincidem umas com as outras, e eu começo a ler uma coisa, depois aparece outra sem ligação, depois outra, depois vou apanhar o resto da primeira coisa, isto tem defeito!”. Expliquei à senhora que era mesmo assim e expliquei as razões para isso. Ela ficou desconfiada: “Mas como é que sabe? Foi mesmo o autor que disse isso?”. Ela levou o livro de volta mas não pareceu muito convencida. Ser um escritor muito à frente tem destas coisas.
Por vezes, ao arrumar a livraria, deparo-me com os livros mais estranhos que nunca me tinham passado pelas mãos. Um dos últimos casos é o da colecção “A Saúde Do Diogo”, que tem títulos muito bonitos e animadores. Vejamos o caso dos clássicos “Diogo Vai à Clínica” e “Diogo Vai Ao Hospital”. São duas bonitas experiências, diferentes entre si que merecem cada uma o seu livro. A minha questão e: para quando o livro “Diogo Vai Ás Urgências Mas Estas Estavam Encerradas”? Outro clássicos incluem o enternecedor “Diogo é Operado”, o inspirador “Diogo Tem Alergias” e o drama “Diogo Tem Diabetes”. Resta saber quando sai o resto da colecção, nomeadamente o “Diogo Morre” e o “Diogo é Autopsiado” e o final feliz, “Diogo é Cremado”.
O que dizer dum cliente que vagueia pela loja, mal ela abre, durante dez ou quinze minutos e depois passa por mim e diz, com o tom mais irado do mundo: “TAMBÉM NUNCA TEEM NADA!” e dirige-se para a porta? Pensei que ele se tinha passado, mas depois o facto de o ver, quando uma senhora deixa cair os seus dez saco do Gato Preto à frente da montra, gritar “VÁ FORÇA! FORÇA NISSO!”, fiquei com a certeza de que ele era sempre assim. Deus o ajude.
Há assuntos sobre os quais eu prefiro permanecer ignorante. Um deles são as “Provas de Fricção para o 9º ano” que um cliente me pediu, ontem. Será que o filho dele anda nalguma escola onde o deboche é um lugar comum? Lá está, prefiro não saber.
Depois temos a velhinha inofensiva que caminha para o balcão, enquanto eu vou pensando já em que livro da Sveva Modignani é que ela quer, e me deixa logo sem resposta. “Tem livros de Cientologia?”. Depois de refeito do choque, respondi afirmativamente. Claro que temos. Qualquer livraria que se preze tem livros de Cientologia, a base de todo o conhecimento humano. Levei a senhora comigo, lentamente, pelo meio das gôndolas até à secção de esoterismo. Quando chegámos, ela foi clara nos seus objectivos: “Olhe que eu quero um livro de Cientologia, mas dos sérios!”. Claro que é dos sérios, aliás, relativamente à Cientologia é dificíl encontrar algo que não seja sério. Fazem cada pergunta… Comecei a mostrar-lhe os livros que temos, e ela ficou desconfiada: “Mas isto é a sério?”. Mais a sério não podia ser, expliquei à senhora, pois os livros eram redigidos pela mão divina do criador da Cientlogia, L. Ron Hubbard. Ela ficou mais descansada. Mas agora outra dúvida inquietava a sua mente: “Então e qual é o melhor para começar?”. Aí tive de puxar dos galões de ilusionista e ludibriar a senhora, lendo o título e umas palavras da contra capa Este é o “Cientologia – Fundamentos do Pensamento”, e fala nas raízes da Cientologia e nos seus fundamentos, disse eu. A senhora ficou maravilhada: “Ahhhh, então você percebe disto…”. Na altura pensei que era bom. Agora que penso que ela acredita na Cientologia, o meu mérito sai bastante mal tratado nesta questão. Enfim.

terça-feira, abril 03, 2007

E Vão 100. Este é Dos Grandes.

Aqui estou, segundo o Blogger, a redigir o meu centésimo post. Parecendo que não, e tendo em conta que alguns dos posts são o que se denomina vulgarmente por “testamentos”, já é qualquer coisa. O quê precisamente não sei bem dizer, mas é qualquer coisa. E claro, lá por ser o centésimo post não quer dizer que não tenham que gramar com mais do mesmo. Portanto ora aqui vai.
A infância é uma época bonita na vida de uma pessoa. Permite-nos brincar, sonhar, aprender e especialmente entrar nas lojas e dirigir-nos ao balcão passando à frente de tudo e todos e interrompendo a soberana figura do livreiro. Esta criança conseguiu a minha atenção à força, e não esperou para fazer o pedido: “OLHE, QUERIA VER ALI O LIVRO DA ESTROMANIA QUE ESTÁ NA MONTRA!”. A mãe olhou para ele de lado: “Tu queres ver o quê?”, o que, curiosamente, era o mesmo que eu estava a pensar. “O LIVRO DA ESTROMANIA! TÁ ALI FORA!”. Tive de lhe pedir para me mostrar o que raio é que ele queria, porque já tinha percebido que não íamos sair dali tão cedo. Então a tal “ESTROMANIA” não era senão o livro “Bem-vindo Ao Mundo Do Wrestling”. O que é praticamente a mesma coisa. Agora percebo que ele queria dizer “Wrestlemania”, apesar de isso não estar no título ou não ser o nome do desporto em si, foi um bom esforço mas precisa de treinar mais. Talvez em vez de ver uns gajos suados a dar umas mocadas na cabeça um dos outros devia aprender a ler. Não sei, digo eu, não percebo nada de educação.
Um cliente bastante decidido aproxima-se de mim e pergunta: “Tem livros de plantas? É que eu preciso de livros sobre plantas… Onde é a secção das plantas?” Saí do balcão e desloquei-me, com o cliente a seguir-me, até à secção de plantas e disse aqui tem a secção de plantas. E o que responde o cliente? “Ah, mas eu queria era mesmo livros de árvores!”. Ah brincalhão.
Há funções deveras entediantes inerentes ao trabalho numa livraria, sendo que a conferência de créditos é uma delas. Estava eu com quatro facturas na mesa e no colo, confirmando valores um por um, num papel com letra pequena e mal imprimida, quando aparece um cliente a espreitar para dentro do back Office. Pousei as facturas e segui para o balcão. A minha colega estava a atender, estava outra senhora na fila e estava o senhor a pôr-se à frente. Perguntei quem estava primeiro, e a senhora, assustada, queria dar lugar ao senhor mas eu não o permiti. Ele não achou piada: “ISTO É INCRIVEL, QUANDO A LOJA ESTÁ CHEIA É MAIS RÁPIDO, POIS QUANDO A LOJA ESTÁ CHEIA POEM TODA A GENTE A TRABALHAR!” Pois, eu estava no escritório a brincar com as facturas às mamãs e aos papás, na esperança que dessem uns créditos bonitos quando ele me interrompeu. Ele não percebeu que eu só trabalho quando há mais de dez pessoas na loja. Menos que isso não merece a minah atenção.
Definitivamente, e voltando a um assunto que abordei no testamento, perdão, no post anterior, há qualquer coisa que faz de mim Livreiro, mesmo nas folgas. A minha pequena filha insistiu em vir dizer olá ao Santo. É o respeito pelo divino. Enquanto ela estava a conversar com ele (e se o Santo gosta de conversar com alguém que tem o mesmo nível emocional que ele) eu fiquei parado na loja, a observar. É então que chega um senhor ao pé de mim e pergunta se temos um certo e determinado livro. E eu sem farda, sem nada, era apenas um anónimo parado no meio da loja. Alguma coisa há que nos distingue. Por favor digam que não é algum odor estranho.
Dizem que as crianças são a alegria da casa, eu digo que as Tias são a alegria da loja. Elas berram, esbracejam, dançam, fazem a festa sozinhas. Depois de andarem horas a ver livros e a fazer barulho, finalmente decidiram oferecer um livro sobre armas a um amigo, e queria oferecer um postal, e passo a citar, “QUE TIVESSE ASSIM DUAS BOAZONAS COMO NÓS!”. Obviamente que não preciso de dizer que as duas senhoras na casa dos sessenta anos não se enquadravam no perfil de boazonas. Mas fica a boa disposição. Na despedida, ficou o aviso de uma das amigas para a outra: “TEMOS DE IR À NOITE, E NÃO DEIXES A TERESA BORREGAR!”. Ah, como é bonito ouvir termos de equitação ou aviação na mesma frase que nomes de mulher.
Há clientes indignados, alguns com toda a razão. E há outros que são como este cliente que passa na montra, visivelmente irritado, mete a cabeça dentro da loja, olha à volta e diz: “AQUI SÓ TEM LIVROS!”, da forma mais irritada e nervosa que possam imaginar. E continua furiosamente pelo corredor fora. Ora tendo em conta que este local é, lá está, uma livraria, penso que não estamos diante de um caso paranormal. Mas talvez isto só seja claro para umas quantas mentes iluminadas.
Para terminar, que o testamento já vai longe e ainda nem sequer decidi a quem deixar a minha Playstation2, temos a cliente que estava desesperada: “POR FAVOR, QUERO UM DECRETO-LEI!”. Tentem perguntar o que é que ela queria concretamente, mas ela só dizia: “QUERO UM DECRETO-LEI! SEI LÁ! NÃO HÁ NENHUM LIVRO QUE TENHA UM DECRETO-LEI?”. É nestas alturas que penso que dava jeito ter ali o Sr. Jurista como colega. Disse à cliente que não havia nenhum livro com esse título, tentei novamente perguntar a que era referente o decreto-lei, ou se sabia o autor ou editora. A resposta surgiu ainda mais nervosa: “ENTÃO! O AUTOR DO DECRETO-LEI É O ESTADO! O ESTADO!”. Sem mais alternativas, levei a senhora até ao local do direito para ela dar uma vista de olhos, tentando sempre fazer perguntas que a levassem a dizer qualquer coisa coerente. O melhor que consegui foi: “QUERO UM DECRETO-LEI DE LIMPEZAS! E JÁ LIGUEI PARA CASA NACIONAL IMPRENSA DA MOEDA E NÃO ME SOUBERAM RESPONDER!”. Apesar de ter feito um ar surpreendido, obviamente que no fundo sabia que ninguém lhe conseguia responder seja o que fosse. Os senhores da Casa da Moeda não são milagreiros. Lá saiu a senhora, altamente desiludida por não ter encontrado o seu decreto-lei. Boa sorte, e o que o senhor Estado, o que redige os decretos-lei, te acompanhe! Bom escritor, o gajo.
Obrigado pelas leituras, comentários bons, maus e esquizofrénicos. Obrigado.