sexta-feira, julho 27, 2007

Tornar-se Humano

As férias são sempre algo positivo. Permitem-nos olhar para trás, para além da névoa fresca do passado recente e analisar tudo o que se passou de modo mais calmo e eficaz. Há quem diga que as férias também dão para descansar, mas eu acho que isso são mitos do calibre, por exemplo, de clientes ao que são, ao mesmo tempo, simpáticos, gastadores, educados e agradecidos. São mitos, pura e simplesmente mitos.
Confesso que creio piamente na existência de clientes que decoram o que têm de dizer antes de passarem aquela entrada de madeira velha e se dirigirem ao devoluto balcão. Depois, sendo confrontados com alguma pergunta, perdem as estribeiras. Uma cliente chega ao balcão e despeja, sem mais nem menos, um nome de um pintor. Acontece que, em livros de arte (tal como noutras secções…) por vezes o nome do pintor é o próprio título do livro. Perguntei se era esse o título do livro que procurava. A cliente ficou ofendidíssima, e respondeu: “ELE NÃO É UM TÍTULO, É UM AUTOR!”. Quem me acode, pensei eu, que já ofendi a humanidade do tal pintor. Chamei-lhe título, o que, assim como assim, é uma ofensa gravíssima.
O que me leva a outro acontecimento. Outra cliente (qualquer dia faço uma estatística do número de homens e mulheres que figuram aqui neste espaço…) vem a andar para o balcão, acabada de entrar, com a loja praticamente vazia. Éramos dois no balcão e ficámos a aguardar que a senhora chegasse. Assim que o fez, dissemos logo bom dia e ficámos à espera do seu pedido. Ela faz uma pausa de cinco segundos e diz: “HÁ AQUI ALGUMA PESSOA QUE ME POSSA AJUDAR?”. O que foi uma pena, porque eu gosto de ajudar os clientes, mas pessoas, a trabalhar numa livraria, não costuma haver. Há uma pessoa, o Gulbenkian, esse poço de ética (consta que rejeitou um projecto com o comediante famoso e tudo, devido à ética), mas naquele momento, pessoas, nem vê-las. Lá teve de se contentar com a nossa ajuda. Dá para alguma coisa, mas não se pode comparar ao ser ajudada por pessoas. Como eu a compreendo.
Depois temos o executivo que espreita quatro ou cinco vezes enquanto estou a fazer o pagamento no Multibanco. Dobra-se todo sobre o balcão, para ver o que eu estou a fazer antes, durante ou depois. E tudo porque eu vi que era um cartão que tinha desconto, e fiz o desconto sem ele pedir. E é assim que ele agradece. Sempre a espreitar para trás do balcão, sempre a olhar para mim. Mas coragem para dizer alguma coisa? Até depois de receber o pagamento, de conferir o talão, ele volta para trás e vai espreitar. Perguntei se necessitava de mais alguma coisa, disse que não e fugiu. Totó. Nem era homem para dizer, na minha cara, que eu lhe estava a clonar o cartão. Alguma vez eu clonava o cartão dele? Ainda apanhava a totózice dele, aposto que aquilo é contagioso. Sou muito selectivo nessas coisas. Totó.
Já o nosso colega mais recente também tem a sua apetência para apanhar personagens. Numa das noites que estive com ele, apanhámos uma mãe e respectiva filha capaz de nos deixar com uma irresistível vontade de dar uns goles na benzina que temos no back office. Primeiro era o tom de voz caracterísco daquelas personagens, capaz de rebentar os tímpanos até para um admirador confesso de música aos berros cantada por gajos aos berros. Depois, vem a mãe ao balcão perguntar se o livro do Bill Bryson, “Breve História de Quase Tudo”, é tanga. Está lá escrito atrás que ganhou um prémio para melhor livro científico. Obviamente que é tanga, aquilo só está ali para enganar. Depois lembraram-se de comprar uma enciclopédia que tinha na capa várias personagens historicamente relevantes. Chegaram ao balcão, pousaram a enciclopédia, e o que se passou foi o seguinte: “Mãe, eu sei que estes são!” Diz a filha com cerca de 19 anos. “Ah sim então diga lá”. E começa a filha, apontando para o Infante D. Henrique, “Este é o Afonso Henriques!”. A mãe arregala-lhe os olhos. “Ah, então é o Colombo!”. A esta altura já eu e o meu colega estávamos a ir buscar as pipocas e a Coca-Cola, porque isto é entretenimento da melhor qualidade. Penim, põe os olhos nesta mãe e filha, está aqui o futuro da SIC. Em seguida, apontanto para Napoleão e Wellington: “Este é o Napoleão, este é o Bonaparte!”. Obviamente, Napoleão Bonaparte era o estado de fusão deles, tipo Dragon Ball, aliás, Napoleão é considerado o Son Goku da história francesa. Até nosso Senhor Jesus Cristo não escapa: “Este é Jesus Cristo. Ou não?”. É normal a confusão, porque sem a cruz nas costas podia ser só um gajo barbudo de toga branca. Até que a mãe aponta para Mandela e diz: “E este sabe quem é, Martoca?”. A jovem olhou, pensou (quer dizer, isto é algo que eu afirmo sem total certeza) e disse: “Ah. É um prémio Nobel.” A mãe sorriu. “É o George W. Bush! Prémio Nobel da Paz”. Até nos engasgámos com as pipocas. Bush, Mandela, são parecidos em tudo. Desde os ideais políticos à cor da pele, são praticamente indiferenciáveis. Tentaram (e vamos colocar aqui todo o nosso ênfase, por favor, no tentaram) preencher o folheto para aderirem ao nosso cartão de cliente. Ninguém sabia bem a morada, e muito menos o código postal. Aparentemente o novo formato de código postal é totalmente desconhecido para elas. “PONHA AÍ UM QUALQUER QUE ISSO VAI LÁ DAR Á MESMA!” Grita a mãe para a filha, do outro lado da loja. Admira-me como é que elas próprias conseguem chegar a casa.

6 comentários:

r.porter disse...

Hei, volta!

O Livreiro disse...

Volto? Para onde?

Anónimo disse...

olá sr. livreiro
por razões várias não tenho tido oportunidade de ler os seus maravilhosos relatos acerca da desgraça humana que lê (?) livros, ou pleo menos que se juntam sempre na sua livraria.
este post então está fenomenal e espero que as férias (as suas ou a dos clientes estivais!)lhe tenham servido de fonte de inspiração
Volte que está perdoado!
Boas vendas

Anónimo disse...

Simplesmente hilariante... Mas diga-me, caro livreiro, deixou o mundo da blogosfera? Tanto tempo se passou desde o ultimo relato...
Deixo-lhe um bj e um breve "até outro dia".

Anónimo disse...

Olá livreiro!!
Bem, as historias que contas,muitas fazem parte do meu dia a dia,porque sou livreira.
Entao e aquela de perguntar ao cliente se quer um saco,porque o livro que levava era muito pequeno,ao que ele me responde,-"se tiver agradeçia".Ora,vou-lhe perguntar se ele quer um saco para depois lhe dizer que não!!
E esta hem!!

O Livreiro disse...

Há coisas levadas da breca.