domingo, setembro 24, 2006

Mitos

Antes de passar à habitual e fastidiosa descrição dos mui extraordinários acontecimentos desta livraria do Portugal recôndito, tenho de dar (com um considerável atraso) os meus parabéns à Noiva de Portugal, que, por estas alturas, já é a Esposa de Portugal. É com agrado que vemos a Esposa de Portugal juntar-se ao clube dos casados. Consta que agora espalha o seu poder livreiro numa pequena arena desse Portugal (há rumores que dão conta que ela até já vende bilhetes de espectáculos, um tabu aqui nesta livraria) e que já usa bandarilhas como ninguém. Boa sorte e felicidades para os projectos futuros. E nada de sujar a carpete da loja.
Não há nada melhor do que começar a manhã, depois de uma chuvada torrencial e de filas intermináveis na Marginal, com uma torrente de insultos, queixas e reclamações de um cliente, por telefone. É bom, dizem que tem L-Casei qualquer coisa, e depois do telefonema sinto-me logo preparado para o resto do dia. Então o senhor, um suposto escritor, de longas barbas brancas e roupa do século XIX, ligou, exasperado, porque, às 10 horas e 20 minutos, ainda não lhe tínhamos ligado a avisar que o livro que tinha encomendado já tinha chegado. Ora, a loja tinha aberto à 20 minutos, era manifestamente cedo para este tipo de coisas. Claro que o facto de o livro vir directamente pelo vendedor, num favor especial para o nosso gerente (escapando assim a um mar de burocracia e tempo perdido), e de ter sido dito claramente ao cliente que poderia passar na livraria depois das 14, era completamente indiferente. Era às 10 e 20 que queria o livro, porque tinha que entregá-lo à hora de almoço. Como não tinha qualquer conhecimento do estado desta encomenda, pedi um segundo ao cliente e comecei a pesquisar na base de dados, para verificar se o dito livro tinha chegado. De repente, sem nada o fazer prever o cliente diz, irritado: “VOCÊ ESTÀ A VER NO COMPUTADOR?!”. Eu, incrédulo, olhei em volta a ver se localizava alguma câmara por onde pudesse estar a ser observado. Não posso com estes clientes omniscientes, já aquele habitual, Deus, é a mesma coisa. Com ele não erros de stock nem livros perdidos. “NÃO USE O COMPUTADOR, OBVIAMENTE QUE NÃO VAI ESTAR NO COMPUTADOR!”. Se calhar ele estava a referir-se a estar no computador fisicamente. Isso já era improvável. Atenção, improvável, não impossível. Já vi muita coisa por aqui…. Obviamente que se o livro já tivesse chegado já estaria na base de dados, foi o que expliquei ao cliente, e obtive a seguinte resposta: “SE ELE CHEGOU AGORA COMO É QUE PODE ESTAR NO COMPUTADOR?! NÃO SEI SE VEIO DA EDITORA OU DE UMA DELEGAÇÂO VOSSA, MAS NO COMPUTADOR NÃO ESTÁ CERTAMENTE!”. Tentei explicar ao cliente que assim que ele chegasse, nós ligaríamos a avisar. Mas foi basicamente o mesmo do que tentar explicar a um cão para não saltar à espinha da Tia Dolores quando esta passa lá em casa por ocasião do Natal. Voltaram os berros: “QUE INCOMPETENCIA! NÃO SE PODE DEPENDER DA EMPRESA, ÍNCOMPETENTES! SE SOUBESSE TINHA IDO EU A LISBOA!”. Lá está, o insulto fácil. Logo pela manhã. Disse ao cliente que o melhor, em situações de urgência, é o cliente ir mesmo à loja de origem, para não estar dependente de editores, estafetas, correios e livreiros em geral. São vários elos, é mais provável que algo corra mal. A reacção não se fez esperar: “QUE INFELICIDADE! QUE DECLARAÇÃO INFELIZ! AGORA É QUE DISSE TUDO, NÃO POSSO CONFIAR NA VOSSA INCOMPETENCIA!”. Sou, portanto, um infeliz, para além de ser responsável por diversas pessoas e entidades. Foi nesta altura que me despedi cordialmente, dizendo que assim que o livro chegasse nós o contactaríamos, para evitar quer tivesse de desejar ao senhor duras e longas sevícias ao som de Luís Represas. Gostei especialmente da parte em que ele mentia com todos (os quatro ou cinco) dentes que tem, quando dizia que lhe prometeram que o livro chegava de manhã, quando o próprio gerente lhe afiançou que a partir das 14 poderia vir buscar o livro, que, pasme-se chegou por volta das 11 tendo o cliente passado na loja por volta das 12. É sempre bom recebermos reclamações antes mesmo de as coisas correrem mal.
Por cada cliente mau há outro cliente mau. E de vez em quando há um bom. Ou menos mau, bom é raro. Estava acompanhado do Mestre (que nos abandonará em breve) no balcão, quando chega um cliente, envergando orgulhosamente uma camisola de treino do Benfica, do tempo do Camacho, que pergunta por enciclopédias automóveis. O Mestre indicou-lhe prontamente o local dos livros sobre automóveis, mas o cliente não se moveu: “Pois, esses eu já vi, e eu já tenho, mas é que esses livros têm dois ou três anos. Já saíram muitos modelos.” Eu e o mestre concordámos, como bons livreiros que somos, e reiterámos que eram mesmo só aqueles que tínhamos. “Eu queria assim um tipo enciclopédia, prontos, é que já saíram mais modelos nos últimos três anos.” Estava quase no ponto do adormecimento, devido à repetição incessante do pedido do cliente, quando este lança a seguinte pérola: “Prontos, eu quero assim um livro de A a Z, com os modelos desdes 1700 e tal, com os carros a vapor, até hoje em dia, com os carros a gasolina e tal.”. Ah, os famosos carros a vapor do Séc. XVIII. Muita gente pensava que isso era um mito, mas não. Tenho mesmo de arranjar uma enciclopédia dessas. .

terça-feira, setembro 12, 2006

Fresco e Fofo

Estou, sinceramente, a pensar em mudar o título do Blog. Estava eu perto do balcão, o Gulbenkian no Back Office e o Mestre algures perdido na loja, de lista na mão, tentando fazer mais uma devolução, quando um senhor, aparentemente insuspeito, se aproxima de mim e me aborda calmamente, com um bom dia praticamente inaudível. Retorqui (como manda a Norma do Bom Livreiro, capítulo III, parágrafo 8, logo a seguir à secção sobre o uso ou não de roupa interior justa e florida) e ele, antes de falar novamente, aproximou-se mais de mim. Ora bem, eu, apesar de não ser propriamente a pessoa mais afável que conhecem, ainda dou uns bons 50-70cm de distancia de tolerância para quando uma pessoa fala comigo. Ora, este senhor, aproximou-se perigosamente dos 20cm, deixando-me, naturalmente, perturbado. Mas, nada me poderia preparar para o que vinha a seguir: “Tem aí daqueles livros de higiene, pronto, higiene, pronto, higiene da vagina, assim da mulher”. Ponto número 1: quando um cliente intercala a palavra pronto entre cada frase é caso para nos preocuparmos. Ponto número 2: Ainda bem que é da vagina da mulher. Se fosse de outro ser qualquer seria bastante pior. Eu perguntei, incrédulo, “higiene da mulher?”, ao que ele respondeu, ainda a falar mais baixo: “Sim, pronto, quer-se dizer, higiene da vagina da mulher, assim para fazer uns servicinhos, o habitual”. Servicinhos? Secalhar ia abrir um bordel. Habitual? Lamento desiludi-lo, mas nada do que o senhor diz é habitual. Indiquei-lhe a zona da saúde feminina, sem saber bem o que fazer. Não conheço nenhum livro que fosse de encontro ao que ele desejava, especialmente porque o livro “Como Manter a Passarinha Jeitosa e Afins” estava esgotado. Um quarto de hora mais tarde, encontrei-o a ver um livro da Paula Bobone. Pode ser que, com boas maneiras, ninguém repare no cheiro. Sendo assim, depois destes últimos episódios, estou a pensar em mudar o título do blog para “O Ginecologista”. Parece-me apropriado.
Há clientes chatos. Não há outra forma de dizer, e peço desculpa se estou a ofender alguém. Imaginem: estou eu a tentar aturar um cliente obcecado por esoterismos e dietas fantasmas (é mesmo o termo técnico, porque ninguém as vê) quando uma cliente, que estava a ver livros de culinária a um metro de nós, ouve a conversa. O cliente dizia-me que queria livros técnicos de nutrição e NÃO de dietas. A cliente aparentemente só ouviu a parte das dietas, então, para espanto de todos, enquanto ia procurando livros para ela, ia interrompendo a minha conversa com o cliente, dizendo: “Tem aqui um livro de dietas. Tem aqui mais um livro de dietas. Tem aqui ainda outro livro de dietas” enquanto ia atirando os livros para junto de nós. Isto era especialmente querido da parte dela, especialmente porque ela fazia isto cada vez que eu dizia: “Não, não temos nada” ela respondia com um “Olhe que tem aqui mais um livro de dietas” e atirava-o para junto de nós. Se quisesse ajuda contratava um macaco.
Hoje de manhã atendi um casal na casa dos 60 anos. Era muito divertido. Ela era irritante. Ele berrava com ela. Ela ficava mais irritante. Ele batia-lhe e mandava-a calar e ir se embora. O amor é lindo naquelas idades. Queriam livros sobre Portugal, em Inglês. Dei-lhes duas alternativas. Um livro de 16€ e um de 35€. Começaram por ver o de 35€. Acharam muito melhor. Texto, fotos, tudo melhor. “Uma classe!” disse ela. “Está calada porra!” disse ele. Depois viram o de 16€. Acharam fraquinho. Depois perguntaram os preços. E, miraculosamente, o de 16€ ganhou uma qualidade brutal num espaço de 1 minuto: “Ah sim, pois, este de 16€, realmente, é de classe, tem qualidade, e tem pouco texto, eles também não querem ler aquela chacha do que é ser português!” ao que o marido respondeu: “Cala-te porra!” e bateu-lhe mais uma vez. Depois tentámos fazer uma transacção comercial normal, mas era complicado, porque cada vez que eu falava, o cliente não ouvia bem, a mulher repetia, e ele batia-lhe e mandava-a embora. E ela ria. Levaram quatro exemplares, para mandar para os Estados Unidos. O acto do pagamento foi complicado. Ele queria usar o Visa. Ela queria que ele usasse o cartão Multibanco. Mandou a logo dar uma volta, acompanhando a frase simpática com um doce cachaço no braço. E ela riu-se. O pior de tudo (e, consequentemente, o mais engraçado) é que eles voltaram atrás para comprar outro livro e fizeram o mesmo circo novamente.
Quando é que tenho férias outra vez?