segunda-feira, julho 31, 2006

Anomalias

E eis que sem qualquer tipo de aviso encontro-me novamente de férias. E tudo graças ao nosso filantropo preferido, o verdadeiro senhor da escrita indecifrável, Gulbenkian. O grande Gulbenkian trocou as férias comigo, para eu poder passar as férias em família. Este homem é um senhor, este homem é um mister. Ele ajuda sempre que pode. Vejam este exemplo que eu creio ser paradigmático da sua boa vontade. Uma personagem que tem uma biografia recentemente editada (vou só dizer que o nome começa em L e acaba em S e tem as letras ili Caneça dispostas de forma perfeitamente aleatória no meio) foi, como já é hábito, dar uma espreitadela à livraria para ver se o seu livro estaria a vender bem. Ora, desde o primeiro minuto, Gulbenkian, sempre zeloso, achou que o livro representava um desperdício de espaço na loja. Então, à primeira oportunidade, despachou o livro para o back office, no sentido de encontrar espaço para a torrente imparável de novidades. É uma prática comum, o livro nem sequer estava a vender. Espantada por não ver nenhum livro, a personagem em causa dirigiu-se ao balcão e perguntou onde parava a sua biografia. Gulbenkian, fingindo que não sabia de nada, perguntou o nome do autor. A personagem ficou ruborizada, como se aquela pergunta , como se fosse um atentado à sua dignidade e fama. Verdade seja dita, ela é apenas a biografada, não é, efectivamente, a autora. Lá surgiu a resposta e Gulbenkian, eficiente como sempre, deu rapidamente com o livro na base de dados. Mas nada podia faser prever o que viria a seguir. Gulbenkian disse à senhora que tínhamos vendido todas as unidades do seu livro. Ela ficou radiante, pensou logo em pedir ao seu editor mais exemplares. Ele desaconselhou-a, explicando que isso seria tratado centralmente. E lá partiu ela, feliz da vida. E lá foi o Gulbenkian, colocar dois ou três livros na área das biografias. O resto continua lá dentro. Mais uma boa acção de Gulbenkian. Um dia o Cosmos que ele tanto maldiz irá compensá-lo por tudo. Já alguns clientes não conseguem conter os seus sentimentos em relação ao livro da senhora. Temos um caso que ilustra bem esta situação. Duas senhoras, perto dos 65 anos de idade, passeavam despreocupadamente pela loja. Ao ver o livro em questão, a senhora pára, olha o cuidadosamente e em seguida levanta-o bem alto, dizendo para a sua amiga: "Já-me vistes bem isto? Olha só o desperdício de árvores que aqui está!". Velhinhas mas acutilantes. Tenho curiosidade em saber o que pensam do livro Arlinda Mestre, a senhora que é jovem e devora a vida, nas palavras dela. Ouvi dizer que a vida é indigesta, secalhar é por isso que ela é assim. Não sei, não sou nutricionista.
Nestas duas semanas vi-me obrigado violentamente a desempenhar funções para as quais não sou nem remunerado nem formado. Numa manhã aparentemente normal, deparo-me com um Multibanco fora de serviço. Tento ver o que se passa, mas surge sempre uma malfadada anomalia, a 4S8. Sem qualquer alternativa, lanço-me ao telefone e ligo para a assistência. Logo atende um homem prestável que parece interessadíssimo em ajudar-nos. O problema surge quando digo que a anomalia é a 4S8. "4S8? Não, não pode ser, isso não existe." Verifiquei, voltei a verificar, pedi a opinião de Mestre, o nosso colega matemático, perito em números, e ele confirmou. Aquilo, meus amigos, era um S. "Não pode ser! Não será 440?". 4-S-8, disse eu. Quanto muito seria 458, disse, mas 440 nunca. "Não, não pode ser". Depois de muita insistência, lá conseguiu perceber que a ideia era mesmo ir lá alguém à loja, e aí logo veriam o que seria. "Então vou mandar aí alguém, a anomalia é a 440 não é? Ah, 4-S-8. Pois, pois, então eu mando um técnico, para arranjar a anomalia 460. Ah, sim, sim 4S8, pois." Eu acho que ele estava a tentar hipnotizar-me por telefone ou coisa que o valha: "Não há qualquer anomalia...". Depois demonstrou o seu domínio da língua portuguesa: "Sim, bem, em 24 horas geralmente temos a resolu... A resolvi... A relosu... Pronto, isso resolve-se." Nem mais, quem fala assim não é gago! Agora, de férias, não vou estar lá quando o problema for resolvido. Há que ressalvar o facto de passado 72 horas o problema ainda persistir. Secalhar o 4-S-8 é uma anomalia tramada. "Olhe, é da assistência? É só para dizer que temos uma anomalia, o 4S8. O quê, o terminal vai autodestruir-se dentro de 5 minutos? Ah ok, está bem então." O nosso terminal é tramado, inventa anomalias.
Boas férias!

segunda-feira, julho 24, 2006

Boas Acções

Num regresso de férias que não pode ser considerado algo menor que heróico, volto para deparar-me com as adversidades e incidências rocambolescas do costume. Está tudo na mesma, basicamente. Tenho entrado 30 minutos antes da loja abrir, para tratar dos mais variados assuntos burocráticos, nomeadamente a “verificação do meu e-mail”, o protocolar “deixa lá ver o que diz A Bola hoje” e o administrativamente entediante “que CDs novos é que há aí para comprar”. Bom, é um trabalho árduo, tenho de admitir.
O problema é que, para além dos aromáticos entregadores de mercadoria, surgem alguns telefonemas que atrasam o bom funcionamento da livraria. Hoje, por exemplo, ainda faltavam 20 minutos para a loja abrir quando liga uma senhora que queria um livro de Virgílio Ferreira. Livro esse que, para não variar, encontrava se esgotado. Depois de recuperar da desilusão causada pela não disponibilidade do seu livro, a cliente diz o seguinte: “Olhe, e podia dar-me só uma informação…”. Pensei logo que queria saber o Continente estava aberto ou qualquer uma das outras perguntas do costume, mas não: “Olhe, por acaso conhece, ou sabe se está aberta, uma loja chamada FNAC, F-N-A-C, FNAC, conhece? Acho que também vende livros…”. Não amiga, eles vendem enchidos e dos bons, aquilo é qualidade… Depois quis o telefone da FNAC, e eu, num esforço desesperado para me soltar das suas amarras, dei-o de bom grado. Fiz a minha boa acção do dia...
Já diversas vezes mencionei aqui toda a problemática que envolve os pedidos de cliente. Verdade seja dita, a minha letra não é famosa. A do Santo também não é das melhores. Mas, a do Gulbenkian bate todos os recordes. A pessoa responsável pelos pedidos (vamos chamar-lhe, para protecção da sua identidade, “Noiva de Portugal”) queixa-se constantemente, e também muitas vezes, com toda a razão, da nossa letra. Nas suas palavras, a nossa “letra é má, mas a do Gulbenkian extravasa o razoável”. O meu problema em particular são os números. Entre quatros e noves, setes e uns, venha o diabo e escolha. Também, não vejo qual é o problema. Vão tentando todos os números até acertarem, as possibilidades não são infinitas. Mas, pelo menos, preencho na totalidade os dados absolutamente necessários para o bom desempenho de quem faz os pedidos. O Gulbenkian, para além da sua letra, também tem graves dificuldades no preenchimento das encomendas. Recentemente, apareceu um papel de encomenda com a letra dele (sem estar datado ou assinado) que dizia apenas México Insight Guide. Sem nome de cliente, sem número de telefone. Prevejo que, brevemente, Gulbenkian comece a deixar pedidos apenas preenchido com a palavra “LIVRO”. Apenas “LIVRO”. Para quê perder tempo com assuntos triviais? O que é a pessoa quer, afinal de contas? Um “LIVRO”, apenas e só um “LIVRO”. O resto a Noiva de Portugal que descubra. Para terem uma melhor noção da dimensão do problema do Gulbenkian, na semana passada, tive de me deslocar juntamente com ele, em mais uma boa acção, à Universidade que frequenta, numa viagem que somente posso apelidar de alucinante, para recuperar um teste de Filosofia. Digamos que o conceito de “redução” aquando de uma travagem é totalmente desconhecido para ele. Sobrevivemos. É o que importa. Gulbenkian, o primeiro filósofo-baixista-voluntário-livreiro-escritor (mas certamente não o último, tenho certeza que ele deixará um vasto legado) do Universo, recebeu, quando se encontrava na praia a vislumbrar a sombra causada pelo seu pêlo corporal na areia, um telefonema da sua professora. Esta disse-lhe que nem soletrando conseguia perceber o que estava lá escrito. Quando vi o exame, dei-lhe toda a razão. Nem o próprio Gulbenkian percebia o que estava lá escrito. E reparem, o homem tinha feito um rascunho antes. Mais valia ter entregado o rascunho. Como é que posso descrever a letra dele? Gostaria de ter um paleógrafo disponível para me ajudar neste caso, porque é deveras complexo. Ora bem, imaginem uma pessoa normal a tentar escrever, com a mão esquerda (no caso de ser dextro) enquanto se deslocava num jipe sobre as dunas, de olhos vendados. É mais ou menos esse o resultado final. Uns hieróglifos imperceptíveis, apenas ao alcance dos predestinados. Consta (e estou a tentar ao máximo trazer provas disso) que, quando Gulbenkian fez os seus hieróglifos naquele teste de filosofia, abriu-se um portal no Egipto, capaz de nos fazer viajar através do espaço e do tempo. É verídico.
Dêem graças a Deus de o blog não ser manuscrito.