segunda-feira, maio 21, 2007

A Brilhar Desde, Deixa Lá Ver... Há Muito Tempo.

É com toda a autoridade que a posição de livreiro (independentemente de não ser uma profissão reconhecida institucionalmente… este blog poderia ter o melindroso título de “O Caixeiro” o que, vistas bem as coisas, tira um pouco do romantismo inerente à profissão) me confere que faço a seguinte afirmação: o mundo está perdido. E quando digo perdido não me refiro a aquele sentimento que se apodera de nós quando damos a terceira ou quarta volta ali para os lados de Cinfães e ficamos sem saber bem onde estamos e para onde vamos. Perdido no sentido metafísico da coisa, e assim. E porquê?
Primeiro, temos uma velhinha, que, à primeira vista, facilmente mereceria o epíteto de amorosa, que queria livros do Álvaro de Campos porque, segundo ela, “eu confundo-os a todos, já não sei o quem é o Álvaro e quem é o Ricardo Reis ou o Pessoa”. O que, diga-se em abono da verdade, é perfeitamente natural. Se a senhora já tem ar de quem confunde os nomes dos filhos, o que dizer dos heterónimos de Pessoa? Depois de lhe dar o livro que ela procurava, incumbiu-me de outra missão: encontra um livro sobre a história dos Judeus. Tínhamos um sobre a história do Judaísmo, mas não era bem isso que ela queria. E aí começou o seu triunfante discurso: “Ah filho, isso do Judaísmo não quero, era mais a história dos Judeus, o povo, está a ver? Quer dizer, eu sei onde eles estão, e melhor, onde eles deviam estar, que era lá para baixo em África e não onde estão hoje em dia, e só foram para lá arranjar guerras, deviam era ter ido para África, lá para o fundo, que era para onde deviam ter ido. “ Aquele senhor alemão do bigode ridículo iria adorar esta senhora.
Depois temos o cliente que, com a loja vazia, começa a espreitar para o back Office. A princípio pensei que procurava alguém, mas quando ele se dirigiu para mim percebi que não era isso. “Então, amigo”, diz ele. O que, para ficarem a saber, é sempre mau sinal. Quando um cliente se refere a nós como amigo é caso para ficarmos de pé atrás. “Então, amigo, por acaso não tem aí quadros, nem posters?”. Respondi negativamente, e ele voltou à carga: “Não tem mesmo quadros nem posters?”. Respondi novamente da mesma forma, e ele aí ficou desarmado: “Pronto, eu digo-lhe o que queria. Sabe aqueles posters de gajas, assim, pronto, gajas nuas e boas, por acaso não têm aí?”. Há que referir em nome do rigor histórico que o senhora, cada vez que dizia "boas e nuas" fazia com as mãos o gesto universal de mulher curvilínea. É normal ele perguntar isto, visto a nossa livraria ser apenas uma fachada para um negócio de pornografia ilegal, mas de qualquer forma fiquei confuso. “ É que eu tenho uma parede vazia no quarto e queria ter assim uma gaja boa, está a ver?”. Como ele estava numa nobre demanda vi-me forçado a ajudá-lo, enviando para a Kodak mais próxima, onde, passe a publicidade, fazem uns quadros todos janotas a partir de fotos. Fica mais um acto revelador de um profundo humanismo.
Mas nenhum humanismo se compara ao do nosso colega e amigo Gulbenkian. Um cliente aproxima-se de mim e pede-me um livro alusivo ao seguinte tema: estar às portas da morte, passar para o lado de lá e depois voltar. É um tema bastante complicado, e, tanto eu como o Gulbenkian, estávamos com algumas dificuldades. Até que me recordei do livro “E Depois?”, que retrata, ficcionalmente, uma experiência de quase morte. Mas o Gulbenkian, qual herói encapuzado, decide ir mais longe. “Então e ali um livro que temos, “Viver Melhor a Quimioterapia?”. A expressão do cliente oscilou entre a surpresa, depois a tristeza e por fim uma desconsideração abismal. “A ideia era animá-lo.”, diz o cliente. Ah, como é danado este Gulbenkian.
Já hoje de manhã, o primeiro cliente foi digno de registo. Tudo parecia correr dentro da normalidade até ao momento de ele pagar e se ter esquecido do cartão de cliente. Ora, como não estava para chatices, decidiu fazer um novo. Denotou algumas dificuldades em preenchê-lo, enchendo o formulário de setas e riscos. Depois entrou num enternecedor monólogo: “Isto do cartão é bom porque a vossa loja é boa. Eu vou a muitos sítios e tenho que procurar muito, aqui não, aqui encontro muita coisa. E compro. E é barato. Sou um cliente muito antigo. Vosso e da Valentim de Carvalho. Sim, porque vocês antigamente eram uma luz no meio da MER-DA. Agora a Valentim perdeu muito com a Fnac, e levou uma batelada nos livros e nos discos. Veja lá o Top da FNAC, aquilo é para rir, é um conjunto de MER-DA! Mas eu não gosto desses franceses e prefiro vir aqui, aqui e à Valentim de Carvalho, porque sou um cliente antigo”. Foi aqui nesta altura que ele entrou em loop até sair pela porta, sempre a falar sem parar. Bela maneira de começar o dia.