quinta-feira, março 01, 2007

O Que Faço Aqui?

Por muito que pudesse estar alheado da realidade, nas nuvens, distraído do mundo, ouvir, mal entro na loja, uma coisa como: “Ah, isso é como ter problemas na Tiróide, mas ao contrário!”, faz me logo lembrar que, sim, sou Livreiro. E o que é um problema da Tiróide, mas ao contrário? Prefiro não saber...
Depois, antes sequer de tirar o casaco e mostrar ao mundo a bela farda, já estavam umas adolescentes espanholas a abordar-me. E antes de passar à questão propriamente dita das adolescentes espanhola, há que abordar outra questão. Como é que raio elas, estando eu de casaco e parado junto à entrada da loja, apenas a ver um livro, sabiam que eu era Livreiro? Como? Emanará o Livreiro um odor a bolor típico dos livros? Ou teremos isso estampado na testa? Eu não sei, a verdade é que por vezes estou de farda e de identificador e ainda assim amigos, ainda assim perguntam se eu trabalho na Livraria. É verídico. Que mais preciso fazer para as pessoas verem que trabalho aqui? Bem, talvez os engraçadinhos digam coisas como “ah e tal e se trabalhasses?”. É um ponto de vista. Mas a verdade é que me fazem essa pergunta mesmo quando eu carrego uma valente pilha de livros.
Passando novamente às adolescentes espanholas, a primeira coisa que a mais destemida me diz é: “Tienes un libro antigo?”. Eu tentei, através do método Socrático, fazer perguntas que desvendassem um pouco o mistério. Qual seria o livro antigo? Autor, editora, título? Nada disso. Ela apenas repetia “libro antigo” como se a vida dela dependesse disso. Depois, sempre que tentava estabelecer alguma comunicação, dizia “no entiendo” e elas e as amigas riam-se nervosamente, agarradas umas às outras. Onde é que está o Gulbenkian, esse verdadeiro poliglota, quando precisamos dele? E onde estava o Santo, esse dominador de pitas nacionais e estrangeiras? Se há um livro engraçado que costumamos ter junto ao balcão é a agenda Maria Raquel. É uma bonita agenda, azul na edição deste ano, com uma senhora de fato de treino a correr em direcção a parte incerta. E a agenda vem dentro de uma embalagem que inclui um pedaço de cartão que anuncia, além do preço, as ofertas e qualidades da agenda. E que fantásticas oferendas são estas, cortesia da agenda Maria Raquel? O belo do avental e do bloco de compras, ficando assim munidas, desde já, com as mais importantes ferramentas que uma mulher pode necessitar. Se quiserem incluir o direito ao voto e à equidade no trabalho entre homens e mulheres, estão à vontade, mas isso é muita emancipação para a Maria Raquel. A agenda inclui também segredos de culinária, conselhos de beleza, medicina doméstica e anedotas. A prenda ideal para aquelas três ou quatro dona de casa que ainda existem neste vosso Portugal.
Depois temos aquela cliente que andava a vasculhar os álbuns colocados em cima da mesa, mexendo e remexendo freneticamente e que, sem qualquer aviso prévio ou saudação educada, berra lá da outra ponta da mesa: “O QUE É QUE ESTE HOMEM FAZ DA VIDA?”. Uma pessoa fica sempre na dúvida, estará a falar connosco? Haverá alguém debaixo da mesa? E este homem quem? Decidi aguardar por novos desenvolvimentos. A senhora levantou um livro e disse: “O AUTOR DESTE LIVRO, O QUE FAZ NADA VIDA?”. Desloquei-me até à senhora, pois se continuasse a berrar daquela forma a senhora acabaria por perder a voz e, sem voz, não seria capaz de dizer parvoíces. E sem parvoíces não há blog. Lá fui eu, então, e antes de chegar junto a ela, já estava a falar outra vez: “É QUE EU NÃO VOU COMPRAR ISTO SEM SABER O QUE É QUE O AUTOR FAZ!”. Eu tentei procurar na capa e contracapa alguma indicação biográfica do autor, mas sem sucesso. Não havia qualquer informação disponível. A senhora não ficou nada contente: “DESCULPE LÁ, EU NÃO VOU COMPRAR UM LIVRO SEM SABER QUAL É A PROFISSÃO DESTE JOAQUIM VIERA! PODE SER PESCADOR, PODE SER QUALQUER COISA, SEI LÁ!”: É, é isso mesmo, é pescador, e nos intervalos da faina anda a recolher informações e fotografias para fazer um livro sobre o Portugal dos anos 50. Típico, aliás, de qualquer pescador. E que tal, não sei, vamos fazer assim um exercício louco, que tal se a profissão dele for, imagine-se lá, escritor? Sei que parece uma loucura, mas pode acontecer. Qual é a profissão deste escritor? É escritor. Seria o choque total.